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A verde timidez de Bush

OESP, Aliás, p. J6
Autor: ABRANCHES, Sérgio
28 de Jan de 2007

A verde timidez de Bush
Ao incorporar pela primeira vez o risco climático a seu discurso, ele vai muito além do que desejaria

Sérgio Abranches

O "sério desafio da mudança climática global": a expressão saiu no final do raciocínio sobre segurança energética, meio a contragosto, em um tom abaixo do restante usado no discurso sobre o "Estado da União", que abre o ano político nos Estados Unidos. Foi a frase mais importante que George W. Bush pronunciou sobre meio ambiente nos seus seis anos na presidência. Disse quase nada, só que, em breve, nos EUA, novidades tecnológicas ajudarão a manejar melhor o ambiente e a confrontar esse desafio. Mas usou a expressão que negava.

Perto do que dizem outras lideranças mundiais, como Toni Blair, Angela Merkel e Jacques Chirac, é quase nada. Mas representa o abandono da negação e da repressão ao debate sobre a mudança climática. Se não é uma ruptura, é uma fissura na lógica de um presidente que demonstrou enorme resistência a qualquer concessão em suas idéias. Bush usava a tese da dependência energética dos EUA e das implicações geopolíticas de risco para a segurança nacional para afastar uma política de energia voltada para o clima. Não a abandonou. Voltou a dizer que a dependência ao petróleo estrangeiro deixa o país "vulnerável a regimes hostis e a terroristas". Mas incorporou o risco climático.

O reconhecimento da mudança climática global como séria ameaça soa quase como uma capitulação contrariada. Ainda no ano passado, o renomado climatologista James Hansen denunciou censura aos estudos sobre mudança climática nas duas principais agências federais de pesquisa sobre o clima: a NASA e a NOAA (Administração Nacional Oceanográfica e Atmosférica). Hansen dirige o Centro Goddard de Estudos Espaciais da NASA e tem alertado para o fato de que o atraso de mais uma década no enfrentamento desse desafio pode ser "um risco colossal".

O que o presidente propôs está aquém do que a Europa discute no momento e do que está na pauta do novo Congresso dos Estados Unidos, de maioria democrata. Ele propõe uma redução de 20% no consumo de combustíveis em dez anos, um mercado de mais de 130 bilhões de litros de combustíveis alternativos e US$ 2,7 bilhões de investimento em pesquisa em energia só no ano de 2008. O Congresso dá sinais de ter chegado a um acordo sobre economia de combustível mais exigente que o de Bush. O presidente quer uma regra flexível e que fique sob controle do Executivo. O Congresso está discutindo um padrão compulsório e mais alto de economia de combustível. Além disso, avança na discussão de um sistema de cotas e comércio de emissões, definindo limites compulsórios para as emissões de carbono, coisa que Bush não admite. No limite, pode ter que vetar uma proposta apoiada pela maioria da população, como mostrou pesquisa recente do MIT e por grandes empresas do país, como as reunidas na "Parceria para Ação sobre o Clima", entre elas Alcoa, Duke Energy, Cartepillar e a General Electric.

A adoção de cotas obrigatórias virá. É inevitável. Pode sair com ele ou depois dele. Os EUA não ratificaram o Protocolo de Kyoto, mas não conseguirão ficar de fora do próximo acordo, que deve entrar em vigor em 2012. Na Europa, o consenso é reduzir, antes da revisão do Protocolo, as emissões de 8% para 20% até 2020 em relação aos níveis de 1990.

Os debates no Fórum Econômico Mundial também mudaram de tom e intensidade em relação à ameaça climática. Não é acaso. Nos últimos dois anos consolidou-se firme consenso mundial entre os cientistas sobre a gravidade da mudança climática global. Nenhum dirigente sério, político ou empresarial, pode mais negar ou desconsiderar esse conhecimento. O relatório coordenado por Nicholas Stern, que foi economista-chefe do Banco Mundial, a pedido do governo britânico, reuniu essa evidência científica para mostrar o impacto econômico da mudança em escala mundial. Afirma que os custos da inação, sob a forma de longos anos de recessão, superam muito os custos da ação. Há um debate técnico, entre os economistas, sobre a taxa de desconto utilizada por ele nesse cálculo. Mas independentemente das simulações econômicas, os fatos e as previsões sobre a biofísica da mudança climática e seus impactos ecológicos se impõem. Some-se a isso a crescente preocupação da opinião pública com o clima e a demanda por medidas de controle públicas e privadas, e se tem os fatores de persuasão que podem salvar o planeta.

Na política, o pequeno passo que atravessa a fronteira da negação para a admissão do fato é o mais difícil e importante. Basta uma fissura na carapaça ideológica que bloqueia a mudança. A partir dela pode se iniciar um processo sem volta. Nos últimos três anos são visíveis as rupturas e fissuras nos raciocínios que bloqueavam a busca de novo modelo energético mundial e de novos padrões de produção e consumo, criando uma economia de baixo carbono. A mudança é muito difícil. O risco, colossal. O conflito de interesses em jogo de máxima potência. Mas os nossos limites biofísicos vão ficando cada vez mais visíveis.

A tímida frase do presidente Bush tem impacto que vai muito além do que ele desejaria. Preside a economia que mais emite carbono. Era o pivô do veto na Convenção do Clima. Os outros dirigentes do G8 comemoraram como grande mudança. São políticos. Sabem quanto vale. Diante de um Congresso de maioria democrata é quase um incentivo para que aprovem novas idéias. Elas virão, mas aquém do necessário. Refletirão o consenso bipartidário, até porque no Senado o balanço de forças é muito equilibrado. Mas agora é possível ver um cenário de iniciativas se sucedendo ao longo dos próximos anos, tentando alcançar o ritmo com que as geleiras permanentes do mundo desaparecem diante dos nossos olhos.

Sérgio Abranches Cientista político, diretor de O Eco

OESP, 28/01/2007, Aliás, p. J6

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