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A vanguarda do atraso

Diário Catarinense
Autor: Washington Novaes
04 de Mai de 2002

Mais uma vez, chega-se ao momento de graves decisões sobre uso do solo, conservação da biodiversidade, sustentabilidade ambiental, sem que o País se tenha sequer aproximado, no Congresso, de uma discussão competente sobre temas vitais para o seu futuro e o das próximas gerações. É o caso do substitutivo do deputado Moacir Micheletto à Medida Provisória 2.080, sobre o Código Florestal.

Como se sabe, alguns meses atrás, ante a ameaça de aprovação de outro substitutivo desse parlamentar, também gravemente atentatório ao meio ambiente, o presidente da República acolheu proposta do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) e editou a medida provisória no formato hoje em vigor. Agora, entretanto, retornam as ameaças.

Como tem sido observado por numerosas análises, principalmente do Instituto SocioAmbiental (ISA), o substitutivo pode elevar para 80% a possibilidade de desmatamento em certas áreas da Amazônia, abre caminho para desmatamento em áreas de proteção ambiental (para empreendimentos econômicos e obras de infra-estrutura), ameaça mangues (o berço da vida no mar), estimula o desmatamento em áreas urbanas de proteção permanente, assim como em locais escolhidos para abertura de rodovias, implantação de dragas e de transporte aquaviário. Além de dispensar de recuperação áreas de reserva legal em pequenas propriedades.

E tudo isso, principalmente, para permitir a expansão da fronteira agropecuária, em especial na Amazônia. E exatamente na hora em que fartos estudos - inclusive na recente reunião da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) - demonstram que a quase totalidade dos solos amazônicos é imprópria para a agropecuária segundo modelos de outras partes do País. Para citar apenas um desses estudos (Jornal do Brasil de 15 de abril), a Embrapa da Amazônia Oriental está demonstrando na região de Paragominas (PA) uma queda de mais de um terço na produção de soja em poucos anos, devida à inadequação dos solos, ao excesso de umidade, à proliferação de fungos e doenças nesse clima, dada a riqueza da biodiversidade. Em conseqüência, o plantio na região já caiu para metade.

Continua-se a desprezar, na Amazônia, o que a natureza tem demonstrado à exaustão - ou seja, a inadequação da maior parte da área para essas atividades. O Censo Agropecuário de 1996 mostrou que já foram abandonados, no mínimo, 20% das porções amazônicas de floresta e cerrado desmatadas e convertidas para a agricultura e a pecuária. Nada menos que 165 mil km2, equivalentes aos Estados de Santa Catarina e Espírito Santo, juntos. E, em mais de outros 400 mil km2 convertidos, a produtividade é baixa.

A taxa média de retorno da pecuária - quase sempre extensiva -, ali, tem sido de 4% ao ano, em regra com meia cabeça de gado ou menos por hectare (no Sul, é 1,3 cabeça) e baixíssima taxa de ocupação de mão-de-obra. Enquanto isso, na exploração madeireira sustentável chega a 33% ao ano.

O substitutivo do deputado, entretanto, não é uma iniciativa isolada. Longe disso, infelizmente. Na verdade, tem-se uma estratégia não declarada, de parte da administração federal, de expandir a fronteira para o agribusiness nessa região e nos cerrados, principalmente por meio dos projetos denominados em conjunto de Avança Brasil - e que, essencialmente, se traduzem na abertura e pavimentação de rodovias, implantação de hidrovias, ampliação da oferta de energia. Quase só para exportar mais grãos e eletrointensivos (arcando com os custos ambientais, sociais e econômicos que os importadores recusam em seus países). Embora se tenha noticiado a criação de um grupo destinado a avaliar o impacto ambiental desses projetos, na prática, o que se tem visto é o avanço a qualquer preço.

Ainda num recente simpósio do ISA e do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Inpa), demonstrou-se que uma parcela expressiva das próprias unidades de conservação já existentes e das áreas indígenas reconhecidas será afetada por esses projetos. Na reunião da SBPC, afirmou-se sem rodeios que essas e outras ações humanas tornam cada vez mais provável um cenário de savanizacão da Amazônia - o que implicaria forte redução das chuvas e ameaçador aumento da temperatura na região, ambos com forte repercussão na área das mudanças climáticas.

Enquanto isso, outro estudo - do Instituto de Estudos Sócio-Econômicos (Inesc) - evidencia o baixíssimo nível de prioridade para a questão ambiental na Amazônia. Em 2000, nada menos que 83% dos investimentos federais naquela área se deveram a gastos na implantação de infra-estruturas e incentivos ao desenvolvimento econômico, aos quais se somam 13% na área militar. Para proteção ambiental, 4%. O orçamento para este ano não é muito diferente - 85% para a infra-estrutura, 9% para gastos militares e 6% para proteção ambiental.

Como é possível, assim, uma estratégia adequada para a Amazônia, que respeite suas vocações naturais, decisivas para o futuro brasileiro? Como não se leva isso em consideração, avança a legislação que abre caminho à devastação - como a que aprovou recentemente a Assembléia Legislativa de Rondônia, autorizando desmatamento de até 80% em mais de um quarto do Estado, se não se implantar a curto prazo um zoneamento econômico-ecológico que disponha em contrário.

Ao mesmo tempo, nuvens pesadas rondam no horizonte, com outros estudos mostrando que os reflorestamentos plantados para extração de madeira no País vão chegando ao fim - o que coloca como hipóteses a importação de madeira ou a intensificação do desmatamento na Amazônia.

É por esses e outros caminhos que nos vamos qualificando, nessa área, como vanguarda do atraso ambiental.

Uma lástima.

Washington Novaes é jornalista E-mail: novaes@ih.com.br

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