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Um rio de duvidas

Veja, Brasil, p.72-74
12 de Out de 2005

Um rio de dúvidas
O governo se prepara para se lançar em uma obra faraônica no São Francisco cuja utilidade divide os especialistas
Ronaldo França
"O São Francisco é um erro da natureza", sustentava o ensaísta gaúcho Clodomir Vianna Moog (1906-1988), para quem, se corresse de oeste para leste, o rio da integração nacional teria realmente merecido esse nome. Correndo de sul a norte, paralelo à costa, o São Francisco foi, na visão de Moog, mais uma barreira para a interiorização do progresso do que uma via de escoamento de riquezas. Eis um bom ponto do hoje quase esquecido escritor, que ocupou a cadeira número 4 da Academia Brasileira de Letras – uma pesquisa no Google mostra que o escritor concorre em verbetes com a banda de rock Viana Moog. Sinal dos tempos. Vianna Moog, o escritor, saiu de moda, mas o São Francisco voltou às paradas. O governo aguarda apenas a última etapa do licenciamento ambiental para ligar os tratores e começar o projeto de transposição do Rio São Francisco, apontado, há um século e meio, como solução para as secas do Nordeste.
Resolvidos todos os impasses jurídicos e messiânicos (veja a reportagem anterior), estará tudo pronto para o início. Nos últimos quatro meses, no entanto, cresceram contra a concretização do projeto barreiras tão ou mais intransponíveis do que as dúvidas técnicas que pairam sobre ele. As questões técnicas são de monta. A transposição pode ser a maior obra de infra-estrutura brasileira desde a construção da Usina Hidrelétrica de Itaipu, na década de 80. A obra de transposição consiste na construção dos dois canais de concreto que atravessarão, ao todo, 703 quilômetros de sertão. Na maior parte de sua extensão, terão 25 metros de largura por 5 de profundidade. A água será bombeada até chegar aos rios e, de lá, aos açudes. No caminho, terá de vencer morros e cortar o sertão em dois grandes eixos: o norte partirá da cidade de Cabrobó, em Pernambuco, e, depois de vencer 180 metros de altura na Chapada do Araripe, levará a água até os rios que chegam a Fortaleza, abastecendo açudes e reservatórios pelo caminho. O eixo leste começará na barragem de Itaparica, na divisa da Bahia com Pernambuco, e subirá a uma altitude de 500 metros.
O semi-árido nordestino tem características únicas no mundo que o tornam refém das secas, que ocorrem a intervalos de dez anos. Mesmo nos períodos chuvosos, a água é rara em boa parte da região. Na média anual, chove no sertão brasileiro mais do que em Paris, Londres ou Roma, por exemplo. É quase a metade do que chove em São Paulo, onde os efeitos das tempestades são conhecidos. É muita água. Mas as chuvas são mal distribuídas. Caem torrencialmente por apenas três ou quatro meses e param no resto do ano. Como o subsolo é rochoso em boa parte da região, a chuva é impedida de penetrar na terra, o que a faz correr direto para o mar. O calor intenso e os ventos fortes quase o ano inteiro provocam a evaporação da água que sobrou nos açudes e nas barragens.
Não se discute, portanto, a necessidade de resolver o problema de abastecimento do semi-árido. A questão é se o projeto proposto funciona. Embora o Ministério da Integração Nacional tenha feito uma série de palestras, ainda restam dúvidas fundamentais entre alguns dos cientistas e engenheiros mais respeitados do país. "O regime de chuvas no Nordeste seco é coincidente com o do baixo e médio São Francisco, quando ele atravessa a caatinga. Como vai ser possível jogar mais água no semi-árido quando ela estaria mais escassa?", questiona o geógrafo Aziz Ab'Saber, um dos mais prestigiados cientistas do país. "Não está claro quais serão os reais beneficiários desse projeto. Se a sociedade brasileira vai fazer esse investimento, e ele terá, em grande parte, finalidade econômica, é preciso ver quem vai ganhar com isso e de que forma vai pagar por isso", afirma Carlos Morelli Tucci, professor titular do Instituto de Pesquisas Hidráulicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Há outras dúvidas, inclusive sobre o risco de prejudicar o abastecimento de energia elétrica no caso de uma seca como a que ocorreu em 2001, quando a barragem de Sobradinho chegou a apenas 7% de sua capacidade. Outra questão no centro da polêmica é o impacto ambiental na própria bacia do rio. Estudou-se o impacto sobre a região onde vão passar os canais, mas não se sabe o que acontecerá na própria bacia do São Francisco quando houver a ligação com outras bacias hidrográficas. Essa foi uma das razões pelas quais a juíza da 14ª Vara Cível da Justiça Federal de Salvador concedeu uma liminar, na semana passada, suspendendo os efeitos do processo de licenciamento. "Não há impacto algum na bacia. A quantidade de água a ser retirada é ínfima", afirma o coordenador do projeto, Pedro Brito. No entanto, os órgãos competentes ainda não atestaram isso.
Uma questão ainda sem solução diz respeito ao pacto entre os estados que receberão a água e os que a doarão – ou seja, aqueles por onde o leito do rio se estende hoje. Quanto maior o impacto, maiores devem ser as compensações, mas esse assunto está longe de ser resolvido. A oposição política, que já era grande, aumentou na semana passada, quando o governador Ronaldo Lessa, de Alagoas, retirou seu apoio ao projeto por não ver atendidas suas precondições. O governador de Pernambuco, Jarbas Vasconcelos, não admite publicamente, mas, embora tenha assinado um termo de compromisso com o governo federal, se mostra contra o projeto nas conversas reservadas.
A desconfiança se estende a alguns números fundamentais. O governo tem dito que o total de água a ser retirado é de apenas 1,4% da vazão média do rio, o que é verdade e é pouco, se comparado ao de outras transposições. A cidade de São Paulo, por exemplo, consome 78% da água do Rio Piracicaba, que corre na região de Campinas. O Rio de Janeiro fica com 63% da água do Rio Paraíba do Sul. E, nesses casos, não há danos significativos. O que está em xeque é a forma de analisar esse número. Os 65 metros cúbicos de água por segundo que, em média, serão retirados do rio correspondem a 25% do total permitido pela Agência Nacional de Águas. O presidente do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco, José Carlos Carvalho, aponta a existência de estudos segundo os quais esse volume de água, se retirado, impedirá o desenvolvimento de municípios localizados na própria bacia do rio. Mais uma razão de desconfiança que deverá ser sanada antes da obra. Some-se a todas as dúvidas técnicas a suspeição que paira sobre o tratamento dado ao dinheiro público pelo atual governo e o que se tem é a necessidade urgente de reavaliar a oportunidade desse projeto.
Não menos poderosa é a barreira da credibilidade do projeto. Pesa muito a revelação de que integrantes do primeiro escalão do atual governo e do partido que o sustenta, o PT, promoveram ou fizeram vista grossa a uma farra de irregularidades sem precedentes na história brasileira. Quando a transposição está mais perto de acontecer, o governo que a conduz talvez tenha perdido a credibilidade necessária para levar adiante uma obra orçada em 4,5 bilhões de reais. O constrangimento se dá principalmente porque ela estará sendo executada no auge do período eleitoral, quando o calor da disputa pelos votos torna ainda mais insaciáveis os sempre vorazes caixas de campanha. "A obra tem um sentido eleitoral e econômico. É muito perigoso fazê-la em ano de eleições. Um governo sob suspeita deveria, pelo menos, estar submetido a mecanismos adicionais de controle", afirma o deputado Fernando Gabeira, do PV.
Não é uma preocupação sem sentido, como demonstra a torrente de suspeitas acumuladas nos últimos meses, muitas delas já comprovadas. A obra envolve números estratosféricos na contratação de empreiteiras, compra de máquinas, apólices de seguro e tudo o que monta o velho arsenal das chamadas "operações não contabilizadas", para usar o termo com que o ex-tesoureiro petista Delúbio Soares se refere ao caixa dois das campanhas eleitorais. Toda vigilância é pouca para que a obra não venha a ser um dia conhecida como uma formidável operação de transposição de verbas.

Geyson Magno/Ag. Lumiar

Veja, 12/10/2005, p. 72-74

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