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Um "lago proibido" para agricultores em Goiás

OESP, Política, p. A6
Autor: CAMPOREZ, Patrik
04 de Fev de 2020

Um "lago proibido" para agricultores em Goiás

Agricultores goianos perdem o rio Batalha para usina hidrelétrica: entenda este e outros casos de conflito pela água no interior do Brasil

Texto: Patrik Camporez / Fotos e vídeos: Dida Sampaio

04 de fevereiro de 2020 | 06h00

Quem chega ao povoado de Vista Alegre, uma região montanhosa de cerrado, na divisa de Minas Gerais e Goiás, se impressiona com um extenso lago verde formado pelo Rio Batalha. Uma placa informa que o acesso ao espelho d'água de 13 mil hectares é proibido até mesmo aos moradores.

Em Vista Alegre vivem 287 famílias de produtores rurais. Elas foram transferidas para lá após o represamento do rio e a formação do lago para movimentar as turbinas da Usina Hidrelétrica de Batalha. A promessa de fartura de água, simbolizada pelo grande reservatório, virou decepção quando os produtores receberam as primeiras "cartinhas" de Furnas, que administra a usina, avisando que todos estavam proibidos de se aproximar do lago.

A vila fica a 80 quilômetros do mercado mais próximo. Farmácia só a três horas de lá e, mesmo assim, de carro. Quando o Estado chegou à comunidade, os moradores estavam reunidos para discutir o conflito sobre a água, que se arrasta há duas décadas. Em círculo, e de pé, eles se revezavam no microfone. Duas mulheres, representantes da empresa de energia, faziam anotações enquanto os produtores descarregavam, com visível desesperança, suas queixas.

Ao pedir a palavra, o produtor José Aparecido, o Cidão, de 52 anos, logo disse que se tratava de uma reunião para falar de água. Antes da barragem, afirmou ele, olhando para a câmera da reportagem, as pessoas tinham muita água para beber e plantar. "O rio que a gente pescava, as veredas e as palmeiras foram roubados. Agora não podemos nem tocar na água porque é proibido. Queremos um trabalho de irrigação, para ter emprego, circular dinheiro", afirmou.

Ao Estado, a Agência Nacional de Águas (ANA) confirmou que nega, desde 2012, todos os pedidos de outorga na Bacia do São Marcos, região onde está inserido o lago de Batalha. A agência disse que o aumento da demanda por irrigação ocorreu em paralelo à escassez hídrica e nunca fez restrições entre pequenos e grandes proprietários. "É importante notar, no entanto, que os pedidos vêm sendo negados independentemente do porte", destacou a ANA, em nota, ao observar que os pivôs foram liberados anteriormente.

Instalados antes de 2012, os pivôs - como são conhecidos os equipamentos para irrigação de grandes áreas agrícolas - revoltam os produtores de Vista Alegre. Motivo: eles argumentam que à época não tinham recursos para implantar projetos de irrigação. Uma parte dos produtores tenta há 20 anos receber o título definitivo da terra do Incra, mas o modelo adotado antes de 2012 impossibilitou a obtenção de financiamentos para os projetos.

"Esse mundo de água que vocês estão vendo aqui é proibido para nós", disse o produtor Joseli Machado dos Santos , de 54 anos. "Os senhores lá de cima (autoridades) não veem isso. Agora, os grandes produtores montam pivôs e mais pivôs. Nós não podemos tirar a água nem para beber e dar aos animais."

Sem acesso à água, os produtores reclamam, com boletos de pagamento em mãos, do alto custo da energia elétrica na vila. "Aqui é o seguinte: a água gera energia. E a energia aqui é mais cara que dentro da cidade. Um pequeno produtor pagar R$ 700 por mês de energia não tem lógica", afirmou Joseli. "Onde está a cabeça desse povo? A escravidão já acabou. Aí, se você tira água do lago, vão dizer que é ladrão", emendou ele, com olhos marejados. "Nós chegamos aqui antes deles, quando não tinha barragem e isso aqui era o rio correndo."

No período em que a reportagem esteve em Vista Alegre, os assentados não queriam desgrudar da câmera. Um a um, eles faziam fila para dizer por que a comunidade precisava ter acesso à água. A expressão "lago proibido", usada pelos produtores, permeou boa parte dos depoimentos. "As pessoas vão ficar aqui com um mundo velho desse de água, sem poder irrigar, sem poder ter uma fruticultura, sem poder criar peixes?", questionou o produtor Milton Alves dos Reis, 53 anos. José Ribamar, de 56 anos, tem dois apelidos: JR e Ceará. Prefere o segundo, pois lembra o período da infância, antes de deixar o Nordeste em busca de terra com água. No final dos anos 1990, ele conseguiu um pedaço de chão em Vista Alegre.

Ribamar se apresenta à reportagem como um "clandestino". "Não tenho medo. Eu quero enfrentar quem tiver que ser. Cansei de viver nessa situação humilhante e ver meus companheiros passando o mesmo."

A engrenagem que Ribamar construiu para retirar água é manual. "Se eu desço uma bomba ou uma máquina para pegar água, eu saio daqui como um bandido, com risco de ir para a cadeia. Então, eu coloquei uma bomba em cima do morro e desci a mangueira até embaixo no lago", contou.

A bomba de Ribamar está longe da potência dos equipamentos de irrigação das fazendas mais próximas. A quantidade de água que ele consegue retirar dá apenas para encher a caixa que abastece a casa e que mata a sede de algumas cabeças de gado. "A polícia já deu a ordem, em nome de Furnas: 'Não pode tirar água'. Mas o que eu faço? É a briga do cachorro grande contra o cachorro pequeno", disse ele, gesticulando muito. "Quem é sequeiro não tem água nenhuma. Sobrevive de carregar tambor nas costas igual no Nordeste."

O Estado procurou a assessoria de Furnas, que administra o reservatório da Usina de Batalha, para apresentar todas as críticas e denúncias dos moradores de Vista Alegre. A reportagem pediu, ainda, esclarecimentos sobre as promessas que a empresa teria feito à comunidade na época da formação do lago. A concessionária, no entanto, limitou-se a enviar uma nota destacando que sua "função prioritária" é gerar energia elétrica para o Sistema Interligado Nacional (SIN), além de propiciar "usos múltiplos", como regularização de vazão, controle de cheias, abastecimento de água e irrigação.

A responsabilidade sobre a utilização desses recursos, no diagnóstico de Furnas, é da própria ANA. "Quem define o uso dos recursos hídricos é a Agência Nacional de Águas e os níveis dos reservatórios, o Operador Nacional do Sistema Elétrico."

Em guerra com hidrelétricas, fazendeiro se junta a pequeno produtor
A capital federal está cercada por 2.558 pivôs de água. Os três municípios mais irrigados do Brasil estão em volta da cidade modernista. Unaí e Paracatu, em Minas Gerais, e Cristalina, em Goiás, lideram a expansão das lavouras irrigadas no País, que cresceu 47 vezes de 1985 para 2019, segundo dados da Embrapa. Concentram também disputas pelo controle dos mananciais.

Os produtores travam uma queda de braço com o setor de energia. Eles miram as Pequenas Centrais Hidrelétricas, as PCHs. "Há dez maneiras de produzir energia. Alimento, só usando água, não tem outro jeito", afirmou Alécio Maróstica, presidente do Sindicato Rural de Cristalina. "Não tem produção a seco de alimento."

Maróstica conta que os produtores, assim que sabem do plano de uma nova hidrelétrica, se mobilizam para "espaná-la". "É sempre quebra pau aqui", resume. Nas paredes da sede do sindicato, mapas do município indicam fazendas e mananciais.

Cristalina conta hoje com 63 mil hectares irrigados, o dobro do registrado em 2007. Foi naquele ano que o conflito da água na cidade começou. Maróstica era secretário estadual de Irrigação. A ANA avisou ao então gestor que não seria mais possível liberar irrigação porque era preciso sobrar água para as PCHs. "Eu disse: 'Vou reunir todos os produtores, inclusive os pequenos, e vocês vão lá falar isso com eles. Eu garanto uma coisa: Se saírem vivos de lá, está aprovado'. Foi uma climão", descreveu.

Nas reuniões realizadas pela Agência Nacional de Águas, os produtores foram alertados de que a área irrigada do município havia chegado ao limite. Ao Estado, a ANA informou ter dificuldades de dar novas licenças não apenas para a região de Cristalina, mas para todo o País, e fez uma previsão preocupante. "Os conflitos tendem a se agravar, pois a demanda por água só tende a aumentar", disse a assessoria da ANA.

Um "mapa da irrigação", estampado na presidência do Sindicato Rural do município, é a representação de um campo de batalha em constante movimento. Cada pivô de irrigação e cada produtor rural representam um ponto no mapa. Na parte de cima são 180 fazendeiros, que detêm 60% da área irrigada. Na parte de baixo do mapa vivem 1.500 produtores com os 40% restantes da disponibilidade hídrica.

Na guerra com as hidrelétricas, os grandes proprietários flertam com os pequenos. A aproximação tem motivo: tradicionalmente em confronto, grandes e pequenos foram surpreendidos por outra força. O setor de energia chegou há poucos anos. Agora, o porta-voz dos fazendeiros afirma que pretende representar os pequenos produtores na luta pela água. Ele diz não ter interesse na terra dos sitiantes, mas quer aumentar a capacidade de irrigar dos grandes. Nesse caso, os pequenos não são um obstáculo. "Você acha que os pequenos não vão querer irrigar?", questiona Maróstica, mostrando a parte do mapa onde estão as menores propriedades de Cristalina. "É a área de maior tensão e conflito. A água não é um bem para servir a uma meia dúzia."

Um dos representantes dos pequenos não vê com maus olhos a sedução do tradicional adversário. Afinal, os sitiantes têm pouca força para enfrentar a atual política de outorga.

O secretário da Agricultura Familiar de Cristalina, Gilmar de Oliveira Matos, que também é assentado, prevê a qualquer momento a revolta dos pequenos contra o governo, pois apenas quem tem grande área consegue licença para irrigar.

Nas regiões das hidrelétricas vivem quase duas mil famílias de pequenos produtores que não podem beber água dos mananciais. "Enquanto isso, os fazendeiros metem suas bombas para retirar água para irrigar o mundo", protesta Matos. "Parece que é pecado encostar nos reservatórios. É uma água proibida. Tudo o que representa essa maravilha que é a irrigação, para nós, pequenos, não é possível."

Maróstica, por sua vez, tem motivos para comemorar. Ele foi nomeado recentemente pela ANA para mediar a zona de tensão de água de todo o Planalto Central e dá pistas sobre a posição que adotará. "Vai gerar energia no inferno", afirma, numa crítica contundente às hidrelétricas.

Em Goiás, 50 municípios vivem situação de conflito e disputa por água. São regiões onde a oferta de recursos hídricos não é mais suficiente para atender à demanda. Levantamento feito pelo Estado, com auxílio da Secretaria Estadual de Segurança Pública, identificou 1.885 Boletins de Ocorrências (BOs) envolvendo disputa por água, nos últimos cinco anos, somente em Goiás. A secretária estadual de Meio Ambiente, Andréa Vulcanis, afirma que a situação de conflito chegou à região metropolitana de Goiânia, onde moram 44% da população do Estado. Na Bacia do Meia Ponte, que abastece a capital, por exemplo, 12 municípios vivem da produção rural. "Dou água para a cidade ou ao pequeno produtor?", pergunta ela.

A opção foi aumentar a fiscalização no meio rural até com helicópteros. Foram identificadas nove mil barragens clandestinas. Pela legislação brasileira, a água é um bem de domínio público, dotado de valor econômico. A gestão dos recursos hídricos deve proporcionar os usos múltiplos das águas, de forma descentralizada e participativa, contando com a participação do poder público, dos usuários e das comunidades. A lei também determina que, em situações de escassez, o uso prioritário da água é para o consumo de seres humanos e bichos.

OESP, 04/02/2020, Política, p. A6

https://www.estadao.com.br/infograficos/politica,rios-roubados,1063367

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