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Um freio na devastação

O Globo, Rio, p. 27
07 de Dez de 2003

Um freio na devastação
Parque Nacional da Tijuca será ampliado para deter ameaças à sua volta paraíso secreto na mata

O Barão do Bom Retiro ficaria orgulhoso. Depois que ele salvou o Maciço da Tijuca ao sugerir seu reflorestamento no século XIX, época em que os vales e morros eram dominados por cafezais, uma nova medida protegerá o verde da região. O Parque Nacional da Tijuca, unidade de conservação ambiental que compreende cerca de um terço do maciço, será ampliado em mais de 10% para conter as novas ameaças em seu entorno, como construções irregulares, caça indiscriminada e queimadas criminosas. Aos 3.300 hectares já existentes, serão acrescentados 400, correspondentes às áreas da Serra dos Pretos Forros e do Morro da Covanca..
Os administradores do parque - Celso Junius, da prefeitura do Rio, e Sônia Peixoto, do Ibama - anunciaram a ampliação, a ser regulamentada ano que vem, mas reconheceram a ameaça vinda da cidade.
- O café foi o problema do século XIX. Hoje, a briga é contra a pressão da ocupação e outras questões do homem. A ampliação é uma defesa. Ao estendermos a proteção à nova área, tentamos mudar um processo histórico de degradação do entorno do parque - diz Junius.
A pressão sobre o Maciço da Tijuca foi medida pelo Laboratório de Geo-Hidroecologia (GeoHeco) da UFRJ. Estudos mostram que, de 1972 a 1984, a taxa média de perda florestal era de meio quilômetro por ano. Entre 1984 e 1996, essa taxa dobrou para um quilômetro. Ana Luiza Coelho Netto, professora titular da UFRJ e coordenadora do GeoHeco, diz que a ampliação já havia sido sugerida pelo laboratório e alerta para os riscos ambientais:
- O entorno é o problema, como se a floresta desaparecesse pelas beiradas. Legal a ampliação, mas é preciso incorporar todos os remanescentes verdes. Não porque é fresco e bonitinho, e sim pelo fato de oferecer serviços indispensáveis, como a regulação da distribuição de água e a estabilização da encosta.
Em outro estudo, o pesquisador da Embrapa Jesus Baca fez uma projeção de desmatamento: até 2092, o maciço poderá perder 80% do verde. A ampliação, porém, muda o cenário:
- É a interferência do homem alterando o cenário futuro.
1.500 espécies, 80 ruínas e 91 trilhas
Para identificar outros aspectos de uma das maiores florestas urbanas do mundo, repórteres do GLOBO passaram a última semana no Parque Nacional da Tijuca. Percorreram algumas das 91 trilhas, visitaram pelo menos três das mais de 80 ruínas de fazendas perdidas na mata e avistaram parte das 1.500 espécies catalogadas da flora e dos 148 anfíbios, répteis e aves existentes. O parque não dispõe do número de mamíferos da região.
O analista de sistemas Flávio Gondim, que dedicou 39 dos seus 45 anos ao desbravamento das matas, mostrou o lado desconhecido do parque, chamado Vale dos Ciganos. A caminhada, que começa no Largo do Barão do Bom Retiro - ponto asfaltado mais alto da Floresta da Tijuca - e acaba na Estrada Grajaú-Jacarepaguá, dura até cinco horas. Logo no início da trilha, um jequitibá secular gigante e duas figueiras com raízes que se espalham num raio de 30 metros do tronco impressionam o caminhante. O jequitibá, enfraquecido por uma praga, está abandonado pelo parque.
Adiante, entre galhos, um porco-espinho descansa. Um pouco à frente, uma cobra caninana de um metro e meio atravessa o caminho. Ela não ataca, diz Gondim. O guia leva a equipe à Cachoeira Celso Campos, nome dado em homenagem a um morador do Alto da Boa Vista. Não há trilha aberta para o local, só é possível chegar lá por dentro da mata. Trata-se de um paraíso secreto: uma queda d'água de 20 metros ornamentada pelas raízes de um bambuzal que descem até o pé da cachoeira.
- Ninguém conhece. Foi descoberta por um amigo, que me falou a respeito. Demorei anos para conseguir encontrá-la - diz Gondim.
No meio do Vale dos Ciganos, também há surpresas desagradáveis, como as clareiras de caçadores, outra ameaça ao parque. O agente de fiscalização do Ibama Schubert Damião Moço, há 24 anos na Floresta da Tijuca, explica que eles escolheram o local pela dificuldade de acesso. Schubert garante que as operações realizadas nos últimos anos reprimiram a caça. Mas o dano, diz, já foi causado.
- Animais que são alvo de caçadores, como a paca, antes comuns no parque, são cada vez mais raros.
Na descida do vale, surgem represas da Cedae e outros problemas: o acesso descontrolado e a criminalidade. A área é invadida em fins de semana por centenas de moradores de favelas das cercanias, que ignoram a proibição e ocupam os reservatórios onde o cloro é misturado à água. Alguns depósitos, pichados com siglas de facções criminosas, estão completamente destruídos.
A trilha termina na Grajaú-Jacarepaguá, atual limite do parque. A Serra dos Pretos Forros, hoje uma área de proteção ambiental (APA) municipal, e o Morro da Covanca, ambos do outro lado da estrada, serão o quarto setor do parque - atualmente, a unidade é composta por Floresta da Tijuca, Serra da Carioca e Maciço da Gávea. Do Pico da Tijuca, ponto mais alto do parque, com 1.022 metros, é possível identificar as razões da ampliação: favelas ameaçam o verde e o capim colonião é combustível de queimadas.
- A região fica numa área com risco de incêndio e tomada por construções irregulares. Se não interviéssemos ali, perderíamos a mata e, pior, a chance de alcançarmos pela Zona Oeste o Parque Estadual da Pedra Branca, formando o corredor verde do município - diz Junius.
O diplomata Pedro da Cunha e Menezes, ex-diretor do Parque da Tijuca, visitou 15 unidades semelhantes em todo o mundo nos últimos três anos e concluiu que a unificação é a saída:
- Seria interessante ter um quadro único de funcionários, como se Tijuca e Pedra Branca fossem um só parque. Hoje, já são interdependentes.
Até 1861, um grande cafezal
No século XIX, a paisagem do Rio era menos verde que hoje. O boom do café transformou as serras da Carioca e da Tijuca num enorme cafezal, com plantações distribuídas por fazendas como a da Boa Vista, que deu origem ao bairro. As encostas logo ficaram degradadas e, como conseqüência, a água potável dos rios tornou-se escassa. Em 1861, por influência de Luís do Couto Ferraz, conhecido como Barão do Bom Retiro, dom Pedro II autorizou o reflorestamento com plantas nativas na região e encarregou o major da Guarda Nacional Manoel Archer da tarefa. Na época, havia apenas 16.075 árvores na Serra da Tijuca. Archer teria plantado, segundo o livro "Trilhas do Rio", de Pedro da Cunha e Menezes, outras 80 mil.
Um século mais tarde, em 1961, foi criado o Parque Nacional do Rio, com limites pouco precisos. Seis anos mais tarde, tornou-se Parque da Tijuca, já com as três áreas atuais. A área que fará parte do parque também tem história: Serra dos Pretos Forros era o local onde se refugiavam os escravos alforriados.

O Globo, 07/12/2003, Rio, p. 27

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