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Um dia esportivo na aldeia

OESP, Esportes, p. E4-E5
13 de Out de 2008

Um dia esportivo na aldeia
Na tribo Gavião Kyikatêjê, no Pará, os índios jogam futebol, fazem tiro ao alvo, correm com tora...

Daniel Akstein Batista, Bom Jesus de Tocantins, Pará

A mão que segura a flecha é a mesma que ostenta um belíssimo relógio dourado. Com o corpo pintado, pronto para mais uma corrida de tora, o jovem indígena escolhe as músicas no seu MP3 - o vermelho extraído do jenipapo contrasta com o branco do fone de ouvido do aparelho musical. À tardinha, já com o sol baixando, as meninas se preparam para o futebol diário - não no campinho de areia, onde estão habituadas, mas no gramado em que os homens costumam treinar. O esporte é parte fundamental na tribo Gavião Kyikatêjê, localizada em Bom Jesus de Tocantins, sudeste do Pará. A tradição de centenas de anos se confunde com o mais tradicional dos esportes brasileiro. Tudo com uma pitada de modernidade que foi injetada na aldeia. A flecha que ainda serve como instrumento de caça também é usada na prática esportiva. Difícil olhar o jeito simples de suas tradições e não relacioná-la com os hoje esportes olímpicos. O tiro com arco realizado nos Jogos nos remete aos costumes indígenas. E eles correndo com uma tora em seus ombros, e passando aos companheiros, em muito lembra o revezamento no atletismo.

A corrida de tora costuma ser realizada nas festas indígenas. No começo do ano, ocorre a principal delas, a do milho. Mas outras brincadeiras, como eles definem, acontecem no decorrer do ano - há também as corridas do peixe, da arara, do gavião... As brincadeiras ocorrem normalmente antes de o sol nascer. Afinal, não é nada fácil carregar uma tora que pode ultrapassar 100 quilos num percurso de mais de 10 quilômetros com o sol na cabeça. As provas, no entanto, também são realizadas à noite, em mato fechado. "Uma vez estava correndo e vi um dos (índios) mais antigos parado, só observando. Que susto levei", lembra Aru, de 21 anos, também jogador de futebol.

Não são todos os povos indígenas que praticam a corrida de tora. E entre as diversas tribos há rituais diferentes - como o tamanho da tora e o percurso realizado. O Estado acompanhou uma dessas brincadeiras. Era para ser apenas uma demonstração, mas acabou virando uma verdadeira disputa - ninguém aceita perder, mesmo sem prêmios para o vencedor.

O ritual começa cedo, com a pintura dos corpos nas cores vermelha e preta. Cada um tem o seu desenho. De braços abertos, os homens esperam o graveto colorido entrar em contato com sua pele, geralmente marcada por seus familiares - mãe, esposa ou irmã. O desenho varia de acordo com o seu 'time', Arara ou Gavião. E como é escolhido quem vai fazer parte de cada equipe? "Passa de padrinho para afilhado", explica Aru.

Divididos em dois grupos, e descalços, eles se colocam em prontidão para começar a corrida. Em algumas brincadeiras, vários deles ficaram no meio do percurso, cada um em uma parte, de acordo com sua especialidade: arranque e força (nas subidas) ou velocidade (em retas e descidas). Na atividade apresentada como exibição, os participantes partiram do mesmo ponto. Em vários momentos, alguns deles passeavam lentamente para chegar ao ponto de início - apenas para acompanhar. O ex-pagé Homprynti - "Ele deve ter perdido seus poderes por ter matado cobra", explica Aru - , por exemplo, andava com arco e flecha na mão, pronto para eventual caçada.

Quando menos se espera, gritos são ouvidos ao longe. E, de repente, dezenas de índios são vistos numa louca correria, dois deles com a pesada tora no ombro, com outros atrás esperando a sua vez de carregá-la. Poucos ficam no meio do caminho e, já sentados após a corrida, é difícil ver um ar de cansado neles. Estão acostumados e, na brincadeira do milho, por exemplo, chegam a percorrer 10 km diariamente durante duas semanas. Depois dos homens, é a vez de as mulheres fazerem sua parte. Mas, mesmo com uma tora mais leve e numa distância menor, poucas delas se perdem das primeiras colocadas.

A corrida de tora virou esporte e nos VI Jogos dos Povos Indígenas de 2003, em Palmas, houve a primeira competição do tipo entre as tribos. A chamada Olimpíada indígena, tradicional e bastante disputada, conta ainda com outras provas que vieram das aldeias: arremesso de lança, lutas corporais, tiro com zarabatana e arco-e-flecha. No total, já foram realizadas nove edições dos Jogos - a primeira foi em 1996, em Goiânia, e a próxima será no segundo semestre do ano que vem, em local ainda a ser definido.

OLHA A FLECHA

Antes do almoço e da demonstração de arco-e-flecha, Kojykyrie junta todos no meio de uma das partes mais rústicas da aldeia para conversar com os jovens e explicar a tradição da corrida. "É para todos ganharem resistência", brada na língua jê timbira, logo traduzida para o português por Ropre, que fez o papel de guia turístico. "Tem um significado social e religioso."

Instrumento de guerra e caça, o arco-e-flecha tornou-se modalidade esportiva, e a tribo Gavião Kyikatêjê sabe muito bem como manejá-lo. Eles praticam quatro diferentes tipos de provas, duas delas com alvo e as outras de distância. O alvo principal tem o formato de peixe - e tanto os homens quanto as mulheres participam.

Os jovens não são tão adeptos a esse esporte quanto os antigos. Com cocares na cabeça, e uma proteção na mão tal qual os atletas olímpicos, eles ficam a uma distância do alvo de pelo menos 10 metros. Enquanto descansam, comem cará colhido da terra e tiram sarro dos companheiros que mandam a flecha para longe do objetivo.

A brincadeira é realizada na parte mais rústica da aldeia, onde as cabanas foram construídas por eles próprios, com madeira e folhas das árvores, por exemplo. Os mais antigos costumam ficar por lá o dia inteiro, sentados em suas cadeiras e redes. Eles realmente moram a alguns metros dali: 38 casas de alvenaria formam um grande círculo - no centro há outra construção, espécie de amplo salão de festas, e um campinho de areia. Há ainda outras casas maiores, usadas para escritório, ambulatório, sala de internet... Sim, na aldeia há internet, e a visão que se tem dessa parte da tribo (das casas bonitinhas, com carros importados estacionados em frente) não lembra em nada aquelas figuras e fotos estudadas em livros escolares. A aldeia dos Kyikatêjê tem ar de modernidade que se mistura à tradição de as mulheres andarem com o peito nu e os corpos pintados.

As casas foram construídas e entregues pela Companhia Vale do Rio Doce, que ainda paga cerca de R$ 230 mil mensais à tribo, mais cesta básica e gás, por causa da exploração de terra - há uma linha de trem usada pela empresa que passa bem no meio da aldeia. A questão financeira causou, inclusive, um racha na tribo Gavião - os Kyikatêjê moravam juntos com os Parkatêjê numa área a poucos quilômetros de distância da atual, mas divergências sobre o dinheiro causaram problema e o cacique Kykyre resolveu levar sua turma para outro local.

Estabelecidos há seis anos, eles ganharam as simples, mas aconchegantes, casas da Vale - e gastaram dinheiro em carros como Pajero e Ecosport. Entre os jovens, é indisfarçável o fascínio pela tecnologia e modernidade. Ainda com o sol nascendo, e com o vermelho e preto desenhado no corpo, um dos indígenas aguardava o início da corrida de tora ouvindo música no MP3. Apesar de os antigos tentarem ao máximo preservar as tradições, eles também caem na "tentação" de comprar mimos que seus ancestrais nunca imaginariam - relógio de pulso quase todos eles possuem.

Mesmo com a extravagância, os Kyikatêjê conseguem organizar bem suas finanças. Zeca Gavião é o responsável por manter a ordem na aldeia neste sentido, e é ele quem faz a ponte entre tribo e mundo externo. Zeca é também o técnico do time masculino que disputa o campeonato amador de Marabá e foi eleito vereador de Bom Jesus de Tocantins - ainda não sabe se poderá ocupar o cargo, pois seu partido, o PPS, não prestou contas da campanha.

Mesmo com toda influência vinda de fora - e adorada pela maioria -, existe ainda o medo de suas raízes se perderem no tempo. "No ano que vem vamos construir lá pra dentro do mato casas como antigamente", explica Ropre durante o almoço - arroz, feijão e carne de porco-do-mato, caçado por eles. Enquanto comiam, os mais jovens assistiam ao Campeonato Inglês e a mais uma prova de F-1, transmitidos graças à parabólica instalada em cada uma das casas.

Antes do almoço, corrida de tora. Durante, programação na tevê. Depois, arco-e-flecha. E já à tardinha, no começo da noite, futebol para homens e mulheres. Pés descalços disputando a bola com outros de chuteira.

Na aldeia dos Kyikatêjê, a modernidade se mescla com a antiguidade. Tudo rodeado por um espírito guerreiro - característico da tribo - e esportivo.

Futebol faz a alegria dos mais jovens
Rapazes e meninas gostam mesmo é de ver a bola rolar. Alguns até pensam em atuar profissionalmente
Daniel Akstein Batista, Bom Jesus de Tocantins, Pará
A pequenina criança ainda aprende as primeiras palavras - tanto em português como em jê timbira -, mas já chuta a pesada bola, maior que suas pernas. Acompanhada dos irmãos ou dos pais, a paixão pelo futebol começa cedo na aldeia dos Kyikatêjê, assim como em qualquer lugar do Brasil. O sonho de se tornar um Ronaldinho Gaúcho ou uma Marta é alimentado pelos gols que assistem pela tevê. Eles - e elas - são fanáticos pelo futebol e querem um dia deixar a aldeia onde moram para jogar num grande clube.

Alguns têm talento ou já tentaram a sorte em outros lugares. Outros - a maioria, na verdade - sabem que nunca deixarão a aldeia para virar profissional da bola: jogam por prazer.

Prazer é a palavra certa para definir por que, todos os dias, as meninas se reúnem no acanhado campinho de terra que fica no centro do círculo formado pelas 38 casas de alvenaria. "Aqui à noite está sempre cheio", diz a vascaína e atacante Terekwyi, de 17 anos. "Jogamos aqui porque os homens não nos deixam jogar lá", declara. O "lá" dela é no campo grande, de grama, palco de treinamento dos times masculinos - que disputam a primeira e a segunda divisão do Campeonato Marabaense de Futebol Amador.

No dia da visita à aldeia, as meninas tiveram a chance de fazer um joguinho no campo principal. Algumas delas se empolgaram com a oportunidade a ponto de calçar a chuteira que estava guardada fazia tempo - desde o ano passado não é realizada uma partida oficial.

O time dos Kyikatêgê já participou oito vezes da Copa Norte de Futebol (foram realizadas 11 edições) e sempre ficou nas últimas colocações, juntamente com a aldeia vizinha dos Parkatêjê. Em 2008, elas devem jogar novamente o torneio (terá início em dezembro), apesar de ainda não terem dado entrada no ofício para disputar o Campeonato Intermunicipal, que começa em novembro. "Mas pode colocar aí que elas vão jogar, é só eu fazer o convite", avisa Francisco Marques Bastos, do departamento feminino da Federação Paraense de Futebol.

Cerca de 25 jogadoras vestiram o uniforme para o treino de exibição. Organizadas, algumas das meninas sabem e ensinam táticas e jogadas para as outras. Raiane, de 15 anos, é uma dessas garotas que sonham um dia mudar de ares. Quer ser como Marta, premiada pela Fifa como melhor jogadora do mundo em 2007. "A gente tenta, mas sabe que é difícil", diz. A flamenguista chama a atenção com as bola nos pés. Joga como atacante, cai pelos dois lados, tem visão de jogo e ainda sabe marcar. É, sem dúvida nenhuma, o destaque da equipe. "Ela tem futuro", confirma Aru, técnico e um dos craques do time masculino.

Terekwyi, parceira de ataque de Raiane, também mostra que entende do assunto. "Eu via as meninas pela tevê e me apaixonei pela bola", conta a atleta, imaginando ser como a também paraense Formiga, que saiu do Norte para vestir a camisa da seleção. "A Formiguinha já até jogou no nosso time."

Mesmo que um dia não consigam alçar vôos tão altos, elas querem ao menos imitar os companheiros do time masculino. A equipe principal, com o nome de Castanheira, lidera o Campeonato Marabaense de Futebol Amador e dá uma canseira nos adversários. O preparo físico é a principal arma do time. Afinal, é só lembrar que no treinamento deles está incluída uma cansativa corrida de tora praticada desde a infância.

Apesar de na 2ª divisão os Kyikategê jogarem com o nome da aldeia, na elite eles foram obrigados a assumir outra nomenclatura. "Nunca nos deram espaço e tivemos de representar outro clube", reclama o técnico Zeca Gavião. "Talvez seja preconceito", desconfia.

O veloz Aru usa a mesma palavra para explicar por que nunca deu certo em outros clubes. O jovem de 21 anos já passou dois meses treinando no Águia, de Marabá - o time disputa a fase final da Série C do Brasileiro -, tentou a sorte no Democrata (MG) e no Ypiranga (PR), mas sempre teve de voltar para casa decepcionado. "Acho que há um pouco de preconceito", afirma o atacante, que, aos poucos, vai abandonando o sonho de virar profissional.

DIA DE JOGO, DIA DE FESTA

Dia de jogo do Castanheira é dia de festa na aldeia. A caravana parte de Bom Jesus de Tocantins e percorre pouco mais de 30 km até o Estádio Municipal Zinho de Oliveira, em Marabá. O time entra em campo e a barulhenta torcida começa a gritar. O fôlego dos atletas é proporcional aos berros dos fãs - quanto mais os jogadores correm em campo, mais gritaria é ouvida na arquibancada. No jogo contra o D'Paschoal, em 29 de setembro, a vitória por 2 a 1 foi de virada e, lógico, construída com muita correria de Aru & Cia.

No dia seguinte, nada de relaxar. A bola iria rolar novamente na tribo. Lá, o esporte não pára nunca. E a bola tem poucos minutos de descanso. Porque logo em seguida já terá um pé - descalço ou não - para movimentá-la mais uma vez.

OESP, 13/10/2008, Esportes, p. E4-E5

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