VOLTAR

Um conflito federativo

OESP, Economia, p.B2
Autor: OLIVEIRA, Ribamar
10 de Out de 2005

Um conflito federativo
Ribamar Oliveira
Os interessados em formar uma opinião mais sólida sobre o projeto de transposição do rio São Francisco devem ler a nota técnica 390/2005, preparada pelos especialistas da Agência Nacional de Águas (ANA) e disponível no endereço da instituição na internet. Ao ler o trabalho, chega-se à conclusão de que toda a polêmica criada em torno do projeto, e que levou um bispo da Igreja católica à greve de fome, tem pouco a ver com questões técnicas. Os especialistas da ANA informam que há disponibilidade de água no "velho Chico" para ser levada ao Ceará, Paraíba, Rio Grande do Norte e Pernambuco e que haverá em 2025, nestes Estados, um déficit de água estimado em 66,6 metros cúbicos por segundo.
Atualmente são retirados 90,9 metros cúbicos de água por segundo do rio para consumo humano e outros usos - entre eles o mais importante é a irrigação, segundo a nota técnica. O Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco (CBHSF), órgão responsável pelo plano de recursos hídricos da bacia, recomendou que o limite de retirada de água do rio seja de 360 metros cúbicos por segundo. Este é o limite para atender a todos os usos de águas na bacia até o horizonte de 2025, incluindo os projetos de irrigação. Com essa retirada máxima será possível, segundo o CBHSF, manter uma vazão mínima ecológica de 1.300 metros cúbicos por segundo na foz do rio, que preserve os ecossistemas existentes e a biodiversidade aquática. O limite fixado também preserva a geração de energia elétrica.
A previsão do Plano de Recursos Hídricos da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco (PBHSF) é de que o consumo médio anual das populações existentes na bacia será de 262,2 metros cúbicos por segundo em 2025. A nota técnica constata que haverá uma disponibilidade de 97,8 metros cúbicos de água em relação ao consumo previsto para 2025 (360 - 262,2). O projeto de transposição vai retirar do rio somente 26,4 metros cúbicos de água por segundo (veja o gráfico abaixo).
Os especialistas da ANA analisaram também as disponibilidades de água nas bacias das regiões que serão beneficiadas pela transposição e a demanda projetada para 2025. Eles concluíram que haverá um déficit (ou seja, a demanda será maior do que a oferta) de 66,6 metros cúbicos por segundo. Eles dizem, na nota técnica, que essas bacias necessitam de um aumento da oferta hídrica, que será obtida principalmente por meio de aportes hídricos externo, como é o caso da transposição.
É importante identificar as razões para a polêmica sobre a transposição, uma vez que existe disponibilidade de água e a previsão é de um elevado déficit de água em 2025 nas regiões que serão beneficiadas pelo projeto. A primeira pode estar associada ao custo da obra: R$ 4,5 bilhões apenas na etapa inicial. O dinheiro será aplicado a fundo perdido. Ou seja, a população beneficiada não pagará pelo investimento.
Outra razão seria a falta de cuidados com o "velho Chico". Algumas pessoas alegam que o governo não investe na revitalização do rio, que padece de décadas de desmatamento irresponsável. O desmatamento torna o solo desprotegido, que termina sendo carregado para o leito do rio. O rio está cada vez mais assoreado, dando a impressão de que está secando.
Mas não é só este o problema. Por décadas, os esgotos de cidades estão sendo jogados no rio e em seus afluentes. O deputado Fernando Ferro (PT-PE), relator da emenda constitucional que cria o Fundo de Revitalização do São Francisco, diz, em seu parecer, que em apenas 33 municípios, de um total de 218 que fazem parte da bacia, é feito algum tipo de tratamento dos esgotos sanitários. Estima-se, segundo ele, que mais de 95% do volume coletado são lançados brutos nos rios.
O deputado diz ainda que a mesma coisa ocorre quanto ao lixo coletado, estimando-se que 93% dos municípios o dispõem de forma inadequada, em lixões, terrenos baldios e em cursos de água. Ele calcula que só para coletar e tratar os esgotos e dispor adequadamente o lixo, gerados pela população urbana da bacia hidrográfica do São Francisco, serão necessários investimentos de R$ 4,5 bilhões.
Uma terceira razão seria o destino dado à água. Alguns críticos dizem que a transposição vai beneficiar os projetos de irrigação, as grandes fazendas voltadas para a exportação e as atividades industriais. Ou seja, o pobre sertanejo não será beneficiado. Para os críticos, essa é mais uma "solução hidráulica" no combate à seca, daquelas que têm sido adotadas ao longo de décadas, sem resultados para a maioria da população.
A razão mais forte, no entanto, parece resultar de um conflito federativo. O vale do São Francisco possui milhares de hectares de terras férteis que podem ser utilizadas em projetos de irrigação. Os governadores dos Estados banhados pelo "velho Chico" questionam porque deveriam doar água para irrigar terras que estão a centenas de quilômetros de distância do rio, se podem fazê-lo, com menor custo, ao lado. Alegam que, depois que for retirada água pelo projeto, não sobrará praticamente nada para novas outorgas. Esta questão só será satisfatoriamente resolvida se a União se comprometer a compensar, de alguma forma, os Estados doadores.

OESP, 10/10/2005, p. B2

As notícias aqui publicadas são pesquisadas diariamente em diferentes fontes e transcritas tal qual apresentadas em seu canal de origem. O Instituto Socioambiental não se responsabiliza pelas opiniões ou erros publicados nestes textos. Caso você encontre alguma inconsistência nas notícias, por favor, entre em contato diretamente com a fonte.