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Transposicao: uma ideia ultrapassada

FSP, Tendencias e Debates, p.A3
Autor: VILLA, Marco Antonio
16 de Fev de 2005

Transposição: uma idéia ultrapassada
Marco Antonio VillaO presidente Lula insiste em fazer uma grande obra no Nordeste. Deve ser louvado o interesse em fazer algo na região, que, por sinal, sequer foi citada no programa de governo apresentado nas eleições de 2002. Como não tem projeto para a região, e muito menos para o semi-árido nordestino, onde vivem 15 milhões de pessoas, resolveu cumprir promessas de antigos presidentes de levar água ao sertão.Agindo mais como candidato à reeleição do que como presidente da República, Lula retirou da poeira dos arquivos o projeto de transposição das águas do rio São Francisco -que está para completar o bicentenário, pois foi originalmente apresentado pelo primeiro ouvidor do Crato, em 1818. No início do século 19, a proposta parecia boa, mas, depois de quase 200 anos de estudos sobre o semi-árido, o projeto parece uma idéia doidivanas, algo como propor a utilização de dromedários -experiência (fracassada) tentada na metade do século 19, no Ceará- como solução para o problema das estradas esburacadas no sertão.O ponto positivo de toda a discussão sobre a transposição é que é preciso fazer algo urgente pelo semi-árido, que, inclusive, está passando por um período de estiagem e que pode se transformar em uma grande seca, com as mazelas já conhecidas. A presença do governo federal na região é quase nula. Quando faz algo, como a parceria com as ONGs, a timidez é escandalosa. Está sendo apoiada a construção de 28 mil cisternas: a meta é edificar 1 milhão. Seguindo nesse ritmo, em cinqüenta anos teremos as cisternas necessárias para o abastecimento de água para consumo doméstico.Para realizar uma intervenção eficaz na região é necessário ter projeto. Todavia, o governo não tem o que apresentar. Por um lado, porque diz querer acabar com a indústria da seca, mas, estranhamente, busca aliança no Congresso Nacional com os representantes dessa "indústria". Por outro, porque considera uma construção das elites nordestinas a concepção de que temos uma questão Nordeste -e está errado duplamente. Dessa forma, não consegue dar um rumo planejado para uma eficaz intervenção federal na região.Outro fator da desorientação governamental é a pífia atuação do Ministério da Integração Nacional. O ministro Ciro Gomes tem caracterizado sua gestão pela absoluta omissão. Em dois anos não foi sequer meia dúzia de vezes à região, não incentivou, não participou nem organizou nenhuma atividade que pudesse dar sustentação a um programa federal. Só fez política, no mau sentido da expressão, mais preocupado com o destino político da família Ferreira Gomes no Ceará do que com a sorte de milhões de sertanejos.É possível que o absoluto desconhecimento do Nordeste explique a reapresentação da proposta da transposição. A idéia sempre foi retomada quando não se sabia bem o que fazer. Nunca foi levada a sério. Sabe-se que o principal problema do semi-árido não é a falta de água. O índice pluviométrico é razoável. A questão é como conservar e dar uso racional à água. Mas não só: o ponto central é a elaboração para o semi-árido de um programa que contemple a diversidade social e econômica lá existente e dê viabilidade econômica à região.Sair do senso comum é apenas o início do caminho. É descabido pensar tanto no modelo israelense, pois as condições naturais são absolutamente distintas, como em qualquer solução que exija grandes recursos financeiros. É possível, com investimentos localizados, incentivar a lavoura seca, a pequena agroindústria, a pecuária e o artesanato, em conjunto com a ação coordenada dos diversos órgãos federais, viabilizando, em poucos anos, uma verdadeira revolução econômica.Para isso, o governo poderia criar um grupo executivo vinculado diretamente à Presidência da República, tais quais os existentes durante a presidência JK. Não seria mais uma daquelas inúteis comissões, mas um grupo que planejaria e agiria, acompanhando os programas e a aplicação dos recursos federais. O custo financeiro de um projeto com este perfil é muito inferior ao da transposição e teria efeitos sociais amplos, mobilizaria a sociedade civil, motivaria as agências federais e respeitaria o meio ambiente. Evidentemente, as propostas de transformação do sertanejo em cidadão -pois a independência econômica é pré-requisito para a liberdade política- não têm efeitos imediatos. É necessário dar um certo tempo. Algumas propostas terão êxito, outras podem fracassar. Afinal, significa ter de enfrentar uma estrutura socioeconômica marcada pelo mandonismo e por relações clientelísticas.Será que o destino de milhões de sertanejos terá de ser sempre o de Sinhá Vitória e Fabiano? "Por que haveriam de ser sempre desgraçados, fugindo no mato como bichos? Com certeza existiam no mundo coisas extraordinárias." Como disse Fabiano: "O mundo é grande". Mas as coisas extraordinárias não estarão mais no Sul do Brasil, como no clássico "Vidas Secas", mas no próprio semi-árido, sem migração, sem pau-de-arara, sem abandono da família, dos costumes ou de sua própria história. É lá que o mundo é grande.

Marco Antonio Villa, 49, é professor de história da Universidade Federal de São Carlos e autor de "Vida e Morte no Sertão. História das Secas no Nordeste nos Séculos XIX e XX" (Ática).

FSP, 16/02/2005, p.A3

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