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Transposição: o foco do debate

JB, Outras Opiniões, p. A11
Autor: CAMPOS, José Nilson B.
17 de Jan de 2005

Transposição: o foco do debate

José Nilson B. Campos
Presidente da Associação Brasileira de Recursos Hídricos

Uma grande parte do Nordeste tem rios intermitentes que, nas grandes secas, permanecem secos por dois anos ou mais. Há uma adversa combinação de alta variabilidade das vazões e intensa evaporação. A construção de açudes tem sido a principal política utilizada para dar segurança hídrica ao sistema de oferta de água. Esses açudes transportam água ao longo do tempo e pagam à natureza o tributo da evaporação.
Engana-se quem afirma que o açude Orós, no Ceará, está somente a perder água por evaporação. De fato, para transportar água no tempo, dos anos chuvosos para os anos secos, o Orós tem perdido muita água por evaporação. Quanto maior a variabilidade hidrológica, maior o tempo de permanência de águas estocadas e maiores essas perdas. Quais então as estratégias para prover água com confiabilidade a uma região de regime hidrológico altamente variável? Vejamos o exemplo de San Diego na Califórnia.
Na década de 1990, uma seqüência de seis anos secos atingiu a Califórnia. A cidade de San Diego passou a ser abastecida com 95% de águas importadas, além de sofrer sérios racionamentos. Diante da persistência da seca, muitas medidas foram tomadas. A cidade conviveu com a crise usando os poucos recursos hídricos locais, importando águas de outras bacias, reusando água, reduzindo o consumo e aumentando o suprimento por dispendiosas águas do mar dessalinizadas.
Com as reservas locais recompostas, a usina de dessalinização foi descomissionada em função de seus altos custos operacionais. Contudo, dez anos depois (2004), a Autoridade de Águas de San Diego planeja retomar a dessalinização. Dessa maneira, San Diego está construindo um sistema de suprimento de águas confiável e menos vulnerável às incertezas hidrológicas.
Façamos agora o paralelo entre a Califórnia, San Diego e o Nordeste, particularmente com o Ceará. Tal como na Califórnia, o regime hidrológico dos rios cearenses é altamente variável e sujeito a intensa evaporação. O comprometimento das águas locais já está em nível elevado. Ademais, existe sempre a possibilidade de secas prolongadas, como ocorreram na década de 1990 na Califórnia e no Ceará. Quais são as alternativas? Tal como em San Diego, são: importação de águas de outras bacias e dessalinização de águas do mar e usar melhor as disponibilidades existentes. Mesmo assim, durante as secas mais intensas, tal como em San Diego, ações reduzindo a demanda serão necessárias.
Em minha opinião, é nesse contexto que a transposição do São Francisco deve ser debatida. Como ferramenta de gestão de águas para tornar o sistema mais eficiente e confiável. Um projeto de tal monta deve ser encarado como um projeto de Estado que transcende governos e requer elevados investimentos, competência técnica e habilidade política.
Vai resolver as mazelas das secas das populações rurais difusas? Certamente não. A transposição não deve ser justificada por esse objetivo. Porém, isso não é motivo para invalidá-la. Este debate, onde a obra é justificada por virtudes inexistentes e condenada por não tê-las, ainda se faz presente na mídia e mesmo em alguns segmentos técnicos.
Não há como negar a importância de inserção de uma fonte de água perene para um sistema de suprimento em uma região vulnerável. Aceitando-se esse fato de natureza técnica, e tomada a decisão política de fortalecer o sistema, pode-se passar às fases subseqüentes do debate. Estaremos debatendo a essência do problema e caminhando em busca de uma solução da dose certa e do tempo certo.

JB, 17/01/2005, Outras Opiniões, p. A11

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