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Transpor para quem?

JB, Outras Opiniões, p. A11
Autor: CORTEZ, Henrique
01 de Mar de 2005

Transpor para quem?

Henrique Cortez
Ambientalista

A transposição do rio São Francisco sempre foi um tema polêmico e assim deve ser como qualquer grande projeto de impacto federativo. Independente da discussão técnica, entendo que seja necessária a sua avaliação a partir de sua justificativa ética e moral - levar água a quem tem sede. Esta é a primeira razão a ser discutida porque ela é a questão principal, ficando o debate técnico como acessório.
Em setembro de 2004, em entrevista, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva disse que o projeto de integração da bacia do São Francisco às bacias hidrográficas do Nordeste setentrional ''é uma questão humanitária''.
No entanto, este projeto foi essencialmente concebido para a segurança hídrica dos grandes reservatórios do semi-árido e, justamente por isto, surge a primeira dúvida sobre a veracidade do argumento humanitário. Isto porque os açudes e reservatórios, públicos e privados, do Nordeste possuem potencial de armazenamento superior a 30 bilhões de metros cúbicos de água. Este volume já seria mais do que suficiente para atender à demanda da população do semi-árido.
Ao longo do tempo e dos mais diversos governos federais, ficou demonstrado que, independente dos problemas crônicos de gerenciamento da açudagem, este conjunto de obras não atendeu a sua razão primeira - garantir à população do semi-árido uma convivência com a seca que fosse minimamente digna. Surge o segundo questionamento da veracidade, porque o projeto não trata do acesso à água, da regularização fundiária e do desenvolvimento do semi-árido a partir da pequena produção e da agricultura familiar.
A veracidade do argumento ''levar água a quem tem sede'' desmorona, porque 70% da água estocada nos reservatórios serão destinados à agricultura irrigada, 26% para os centros urbanos e 4% para os usos difusos, nos quais está incluída a maior parte da população.
Para levar água a quem tem sede já existem muitas soluções eficientes, baratas e socialmente justas, concebidas para a inclusão social, com destaque para as cisternas de placas, os microreservatórios, as barragens subterrâneas, as mandalas etc.
O mais importante e significativo é o P1MC (Programa de Formação e Mobilização Social para a Convivência com o Semi-Árido: Um Milhão de Cisternas Rurais), coordenado pela Articulação no Semi-Árido Brasileiro (ASA), lançado em 2000 e que tem como meta construir, em cinco anos, um milhão de cisternas de placas na região, que proporcionarão água limpa e de qualidade para cinco milhões de pessoas. O programa já construiu mais de 54 mil cisternas, que beneficiam 260 mil pessoas.
Sua importância pode ser compreendida a partir do fato que uma cisterna, com 15 mil litros em média, pode garantir o fornecimento de água para uma família de 5 pessoas por 8 meses, que é o período normal de estiagem na região. O apoio do MDS, através do Programa Fome Zero, tem sido de fundamental importância para a concretização do P1MC, mas ainda não é uma política pública, um projeto de estado.
Os recursos previstos no orçamento de 2005 para a transposição (mais de R$ 600 milhões) já seriam suficientes para construir mais de um milhão de cisternas de placas. Um amplo e bem organizado programa de apoio à construção de cisternas não apenas seria uma micro-solução importante para a sobrevivência do sertanejo, como também, ao eliminar a indústria dos carros e jegues-pipa, seria um grande golpe no modelo mais demagógico do coronelismo.
Se for para levar água a quem já tem não há necessidade de qualquer projeto, basta aumentar a eficiência no gerenciamento e nos usos da açudagem disponível. Para isto, não é necessário fazer nada, muito menos um projeto como a transposição do rio São Francisco. Esperemos que o presidente Lula questione os mentores deste equivocado projeto com uma simples pergunta - a quem realmente serve a transposição do rio São Francisco? A resposta certamente não será a que ele gostaria de ouvir.

JB, 01/03/2005, Outras Opiniões, p. A11

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