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Transição no Indigenismo

Fernando Schiavini
Autor: Fernando Schiavini
29 de Nov de 2002

Prezado Antônio Carlos
Participamos juntos de uma reunião com o pessoal do PT encarregado da transisão
na questão indígena ( Gilney Viana e Márcio Meira). Infelizmente após a isso não tivemos mais oportunidadede conversar. Tive acesso também ao documento que a ABA encaminhou ao Conselho Indigenista da Funai.Sobre tudo isso gostaria de fazer algumas considerações, já que me convidaram para participar também deste debate.
Pra começar, gostaria de dizer que concordo com praticamente tudo o que vai no documento a que me referi. Algumas pequenas ressalvas irão no bojo das considerações.
Após quase trinta anos de prática na Funai como Técnico Indigenista, entre idas e vindas, demissões, reconduções, perseguições, processos e, finalmente, anistia, tenho percebido os inúmeros grupos de interesse que passaram por ele, sem ter feito parte de
nenhum deles, o que talvez tenha me possibilitado qu exercitasse uma visão crítica do processo.
A partir do início da década de oitenta, esses grupos envolveram inúmeras populações indígenas em seus movimentos, cooptando-os, manipulando-os e colocando-os durante muito tempo a defender seus interesses em trocas de favores, distorcendo o máximo possível a concepção da tutela. Isso se refletia nas constantes invasões do
órgão pelos Xavante, depois pelos Kayapó e finalmente pelos grupos do Nordeste, esses também atiçados por pessoas e entidades estranhas à Funai Esse movimento, aliados a outros espontâneos e legítimos, fizeram com que o cotidiano da FUNAI se
tornasse um verdadeiro caos. Com o decorrer do tempo e a implantação gradativa do estado de direito no país, essas práticas começaram a ser criticadas
internamente, arrefecendo um pouco a violência com que os grupos reinvidicavam seus "direitos", mas jamais deixando de pressionar no estilo que aprenderam,
chegando em Brasília em grandes grupos, fazendo demonstrações de força.

Em reação criou-se na Funai um grupo de pessoas especialistas em diluir e "pacificar"
esses movimentos, cuja técnica consiste em receber naturalmente esses grupos de pressão e despacha-los com algumas promessas e pequenas concessões, logicamente pagando todas as despesas de locomoção e hospedagem. Esse grupo é o que hoje administra a Funai.
Os grupos de pressão à FUNAI são representados principalmente pelos Xavante, Kaiapós, Xinguanos Nordestinos e Sulistas. Formam, no meu entendimento
um dos dois grandes "blocos" do movimento indígena atual. O outro "bloco" seria representado pelos Grupos da Amazônia, hoje razoavelmente organizados em
entidades próprias, Conselhos, Confederações, etc.,e que contam com o apoio de inúmeras Organizações Não Governamentais. O antagonismo entre esses dois blocos
reflete claramente na definição do novo Estatuto do Índio, um querendo a eliminação total da interferência governamental nos assuntos das etnias e outro querendo
de alguma forma preserva-la.
Aqui gostaria de fazer um parênteses para reflexão, inclusive com vistas a formulação de estratégias futuras: o grande movimento de organização dos Povos da Floresta Amazônica, no meu entender, aconteceu em grande parte pela injeção maciça de recursos que instituições estrangeiras fizeram na região, inclusive através do governo, interessados nem tanto na preservação das culturas indígenas, mas da floresta. O
outro bloco nada recebeu que influenciasse o aparecimento dessas organizações. Mas eles podem e devem se organizar e algumas experiências positivas com esses povos demonstram isso. Quem sabe no futuro não fosse o caso de direcionar prioritariamente ações de capacitação e apoios institucionais a esses grupos "sem floresta", com recursos do orçamento.
O certo é que o problema existe e não adianta apenas ignora-lo, discriminando os grupos não organizados como se fossem inviáveis, como tenho visto a postura
de algumas entidades.

É certo também que o órgão governamental indigenista terá que continuar lidando
diretamente com esses grupos no cotidiano, além de inúmeros outros "pepinos" que acontecem diariamente, envolvendo terras, conflitos internos e externos, garimpos, roubos de madeira, empreendimentos em Terra Indígenas, biopirataria, violações ao direito autoral, de imagem, etc. É por conta desse cotidiano infernal, aliado à deficiência quantitativa e qualitativa do quadro técnico do órgão é que as decisões do Conselho Indigenista não são ao menos consideradas. E o mesmo poderá acontecer com o Conselho de estado proposto pela ABA.
O que poderá ser feito então? O que tenho defendido nas reuniões que tenho participado e essa visão já começa a ser compartilhada com representantes de várias entidades, é que seja costurado um pacto entre índios e indigenistas, aqui pensados enquanto aldeias, etnias, organizações , lideranças por um lado e antropólogos, técnicos indigenistas (da Funai), pessoas, ONGs e quem mais queira participar, de outro. Seria escolhido um representante indígena, por eles próprios, para ocupar a presidência da Funai, cuja composição poderia contemplar outros cargos de direção. Por sua vez os "indigenistas" dariam suporte técnico e político na sede e nas regiões, tanto para tocar o cotidiano do órgão como para elaboração de um programa que seria construído durante o ano de 2003 com a colaboração de todos, através de formação de grupos de trabalho, seminários, oficinas, etc.. Existem alguns nomes indígenas eindigenistas que conseguiriam costurar uma "trégua" nas pressões, dand tempo para que o programa fosse estruturado. Internamente, já vimos trabalhando há algum tempo na identificação de pessoas e iniciativas positivas dos Técnicos da Funai, que por incrível que possa parecer, existem e algumas muito boas. É outro aspecto que gostaria de colocar: Assim como não se pode ignorar a existência de organizações fora das fronteiras do estado, também não se pode ignorar a experiência acumulada dos técnicos da Funai, muitos deles antropólogos, engenheiros florestais, ecólogos, agrônomos, geógrafos, historiadores, geólogos, lingüistas e, por que não, técnicos com nível de segundo grau, como este que vos fala. Tenho notado uma certa resistência quando se fala no técnico indigenista. Para mim o Técnico Indigenista é tudo aquilo que vocês falaram no documento, apenas incluindo também as pessoas com nível de segundo grau.
Afinal há muitas críticas hoje a esse elitismo de que tudo no Brasil precise de diploma universitário, sendo que apenas uma pequena parcela da população tem acesso
à Universidade. É claro que houve equívocos na formação e orientação das funções dos técnicos indigenistas no decorrer do tempo, como de resto houve também na antropologia e em todas as atividades e áreas do conhecimento. Mas como em todas as outras, houve também evolução. Na verdade o termo Técnico Indigenista nasceu na FUNAI já no regime militar, por concepção dos antropólogos que então trabalhavam no órgão. Eu recebi aulas de Mellati, Alcida Ramos, Roque de Barros Laraia e outros que não me lembro. O Técnico Indigensita era formado para exercer a função de "Chefe de Posto". Eles tentaram (e conseguiram) modernizar a função do "Inspetor" do SPI., que por sua vez havia sucedido o "Diretor de Índios" do período Pombalino. E, da década de setenta para cá, essa evolução não parou. Ela foi debatida e questionada cotidianamente por nós, que temos hoje outra visão. E, na prática,
participamos da concepção e aplicação do último curso de Técnico Indigenista realizado, em 1985, onde tentamos dar mais uma modernizada na função. Provavelmente terá sido a primeira vez em que se começou a falar em "assessoria" às populações indígenas. Nesse curso as pessoas não eram mais formadas para exercerem apenas a função de Chefe de
Posto, mas também outras funções. Vou tentar enviar dois artigos que escrevi sobre o assunto na revista da Funai e você vai ver que nossa posição não está tão
longe das de vocês.
Na verdade, o termo não importa. O que importa é que as instituições governamentais e não-governamentais e as etnias e organizações indígenas necessitam hoje, quase desesperadamente, de assessorias para elaboração, execução e prestação de contas de projetos, que cada vez ficam mais complicados. Todos têm que lidar também com temas atuais como Biodiversidade, Propriedade Intelectual, Direitos Autorais e de Imagem, Licenciamentos Ambientais, Gestão Territorial, Arquitetura e Construções, Desenvolvimento Sustentável, Medicina Tradicional, Educação Diferenciada, Legislações Nacionais e Internacionais. Não há nenhuma categoria profissional, com nível universitário ou não, que abarque atualmente esses temas e é por isso que defendo a inclusão também de pessoas com nível de segundo grau. E é claro que existem também os índios com capacidade de absorverem esses temas e exercerem a função, em suas ou outras etnias.A esses eu não chamaria de indigenistas, mas de brasilianistas. A Funai tem grande experiência acumulada e documentaçã teórica e prática sobre o assunto, que não pode e não deve ser ignorada.
Bem, Antônio Carlos, acho que já tomei demasiado o seu tempo. Mas espero ter contribuído para alguma reflexão. A minha intenção no momento é colaborar na dscussão e evolução do indigenismo, da forma que for possível. Sempre fui meio bicho do mato, não freqüento muito os encontros, os debates, continuo trabalhando em campo. Mas já que, pela primeira vez, me chamaram para opinar, estou tentando faze-lo.
O que vejo também é que chegou a hora de uma trégua geral, uma composição de forças que alavanque coisas positivas. Aliás parece ser esse o tempo inaugurado pelo novo governo. Há anos tenho ouvido de lideranças indígenas que o que atrapalha a articulação de todos eles são as divisões existentes entre os segmentos de nossa sociedade, que os puxam para lados diversos.
Não acho que seja apenas isso, mas não tenho dúvidas que é também isso.
Obrigado pela paciência e, se quiser, pode encher a minha também

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