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Taba Paradiso

Revista Época - http://ccr6.pgr.mpf.gov.br/institucional/clipping/clipping-indice (dia 27/10/09)
Autor: Juliana Arini
26 de Out de 2009

Um cacique do Xingu usa o cinema e descobertas arqueológicas para manter viva a tradição
indígena

Juliana Arini, do Parque Indígena do Xingu

No Alto Xingu, em Mato Grosso, um curioso ritual ocorre todos os dias, depois do pôr do sol.
Crianças, mulheres e jovens se reúnem em uma grande oca oval de palha, construída no estilo
tradicional xinguano. Eles disputam lugares em bancos de madeira até que as primeiras
imagens iluminam o ambiente. À frente do grupo, entre esculturas de barro na forma de onça
e de jacaré - símbolos do poder dos chefes -, está Afukaka Kuikuro, um dos líderes mais
respeitados do Parque Indígena do Xingu. "Tisügühütu ongitegoho", diz o cacique, apontando
para uma televisão de 29 polegadas. (Não tente pronunciar essa frase, é uma sentença
anasalada, e isso aí em cima é uma transliteração feita por uma especialista em línguas
indígenas. )

Ver televisão na oca de um índio já é algo comum em muitas terras indígenas do Brasil. A
diferença na aldeia cuicuro é a programação. Ali, eles não assistem apenas a novelas,
noticiários ou jogos de futebol. Os cuicuros se reúnem para ver filmes sobre índios feitos por
índios. "Tisügühütu ongitegoho", afirma novamente Afukaka e ri de minha expressão de
incompreensão. "É para guardar nosso costume", diz o cacique, traduzindo sua fala entre
gargalhadas. No filme a que assistimos, duas índias começam a representar o mito de criação
do pequi, uma fruta do Cerrado que divide com a mandioca posição essencial na dieta
indígena. Cantos e rituais desenrolam-se por duas horas, o tempo exato que dura a energia do
gerador de luz. Os índios usam baterias de carro abastecidas por placas solares para ter
eletricidade em momentos especiais, como ligar o radiocomunicador, trabalhar no computador
da escola e assistir aos filmes indígenas.

O grupo acompanha as cenas sobre o pequi com as mais diversas reações. Às vezes caçoam
uns dos outros, às vezes fazem mesuras de respeito. A energia do gerador acaba, a sessão de
cinema também. A oca fica na mais completa escuridão. O grupo começa a ir embora cantando
em caribe, a língua dos cuicuros. A família do cacique vai para as redes espalhadas pela casa.
Moram na oca cerca de 30 pessoas, entre elas as quatro mulheres de Afukaka, algumas de
suas nove filhas, a família de seu único filho homem e muitos netos. Tateando entre crianças e
panelas, consigo finalmente encontrar a rede dos visitantes. Os índios continuam a conversar
sobre cinema até um silêncio não programado invadir o ambiente.

Os vídeos que os índios veem todos os dias vieram de um sonho de Afukaka. Ele queria
guardar as histórias de seus antepassados para os jovens cuicuros não perderem suas
tradições. O cacique é conhecido por dedicar sua vida à missão. Afukaka divide com o índio
Aritana Ywalapiti a posição de líder máximo do Xingu. Um status conquistado apenas pelos
guerreiros que vencem as disputas corporais executadas durante o Festival do Quarup, o ritual
dos mortos do Alto Xingu. "Os caciques herdam a liderança das aldeias de seus pais, mas para
ser chefe do Xingu tem de vencer muitos quarupes", afirma Afukaka, mostrando suas orelhas
deformadas como as de um lutador de artes marciais. Além de um grande guerreiro, Afukaka é
sobrevivente das três maiores ameaças que pairam sobre os índios: a perda de suas terras, as
doenças trazidas pelo contato com os brancos e a desintegração cultural. Processos que
chegam com a velocidade de instalação de fazendas e cidades na vizinhança.

A paisagem das aldeias é um exemplo do desafio de Afukaka. Antenas parabólicas e casas
onde lonas de plástico preto tomam o lugar da tradicional palha de buriti (uma árvore do
Cerrado) são evidências claras de que o Xingu mudou. Um dos principais indutores dessa
transformação é o fascínio dos índios pelo "papel do branco", o modo como designam o
dinheiro. Uma influência que pesa principalmente sobre os jovens, seduzidos pelo consumo nas
cidades. Um problema comum a todas as aldeias do Brasil, que também invadiu a vida no
Parque do Xingu. Mesmo ali, distante 400 quilômetros da cidade mais próxima, onde 5 mil
índios dominam um território de 2,6 milhões de hectares, é praticamente impossível ver um
jovem sem celular e um aparelho digital para ouvir música. Muitos adolescentes também usam
sites de relacionamento na internet. O principal problema desse estreito contato com a cultura
de fora é o crescente desinteresse em relação às tradições. "Muitos jovens querem ter carro,
viajar para as cidades, jogar futebol e ouvir rádio", diz Afukaka. "Alguns nem entendem mais
nossos rituais."

Aos 58 anos, Afukaka luta para evitar que essa transformação cultural seja uma catástrofe.
"Eu visitei os índios dos Estados Unidos há dez anos. Lá, eles têm cassinos e muito dinheiro,
mas seus chefes lamentam por não saber mais nada sobre a história de seus avós e por ter
perdido até a própria língua", diz Afukaka, durante um café da manhã em que as índias
serviam o biju, uma espécie de tapioca feita de farinha de mandioca. "Viajei muito e vi museus
em Washington, em Nova York e no Canadá. Conheci também os museus dos nossos parentes
índios americanos. Voltei com todas essas ideias na cabeça", diz, dando um salto da cadeira e
caminhando em direção a uma casa amarela, pintada com desenhos indígenas. Ele abre a
porta e diz: "Aqui vai ser o nosso museu".

A imagem de computadores, livros e arquivos de DVD me faz viajar de um Xingu indígena para
uma repentina modernidade. "São eles que filmam nossos rituais", diz o cacique, apontando
dois índios concentrados nos computadores da sala. Takumã e Mahajugi nos recebem com um
sorriso. Eles são índios cuicuros que estudam cinema fora das aldeias. Em três anos,
aprenderam a usar filmadoras digitais, trabalhar com iluminação e editar os filmes. Quando eu
era criança, via os jornalistas filmando no Xingu. Daí, pensava: 'Quero fazer isso também',
afirma Takumã. Entre os DVDs que já gravou está O cheiro do pequi, a que assistimos na noite
anterior. "Nunca imaginei que iria conseguir."

A ideia de os próprios índios documentarem seus rituais surgiu em 2004, incentivada pelo
antropólogo Carlos Fausto, um dos maiores estudiosos da cultura xinguana e pesquisador do
Museu Nacional, no Rio de Janeiro. Ele apresentou Afukaka ao projeto Vídeo nas Aldeias,
dirigido por Vincent Carelli, um dos grandes vencedores do último Festival de Cinema de
Gramado. Carelli recebeu dois prêmios, por melhor direção e filme, com o documentário
Corumbiara, em que relata um massacre de índios de Rondônia em1980. Ele trabalha há 30
anos documentando a cultura indígena e, hoje, também ensina as técnicas de cinema aos
índios. "Foi um processo natural, no começo minhas câmeras ficavam a serviço dos índios,
agora estou ensinando tudo a eles", diz.

Uma das revelações dos vídeos cuicuros é o domínio indígena sobre a linguagem do cinema.
"Eles sempre surpreendem com soluções criativas, como usar bicicletas para substituir
equipamentos profissionais de cinema", afirma Carelli. O cinema nas aldeias também estimula
os jovens a buscar o conhecimento dos índios mais velhos. "Precisamos fazer muitas
entrevistas para escrever o roteiro. No começo, os velhos ficavam bravos e não entendiam
nosso trabalho", afirma Takumã. "Até que mostramos os primeiros filmes e todo mundo gostou
de se ver na televisão. Aí ficou bem mais fácil." O cinema despertou uma curiosa vaidade: as
índias ficam bravas quando aparecem descabeladas ou velhas. Outro ponto interessante é que
a produção obriga os índios a resolver conflitos culturais. Eles brigam para decidir qual versão
do mito que vai prevalecer e também discutem sobre quem vai atuar. "No filme sobre o pequi
ninguém queria deixar sua mulher fazer o papel da moça que trai o marido com o jacaré.
Depois de muita negociação, conseguimos selecionar as atrizes, entre as mulheres mais
velhas", diz Carelli.

Além do cinema, Afukaka está executando outro feito inédito. Ele conseguiu fazer uma
refinada documentação dos cantos dos cuicuros. "Virei o Roberto Carlos do Xingu", diz o
cacique, cuja aparência física não podia estar mais distante do cantor. Afukaka diz que a
referência se justifica porque o canto é o laço mais importante dos índios com sua cultura.
"Não temos livros, nossa história é guardada nas canções. Quem sabe cantar é muito
respeitado no Xingu."

Apesar da importância dos cantos e do cinema, Afukaka é famoso por outra iniciativa. Ele é o
precursor dos estudos científicos no Xingu. Foi o primeiro índio brasileiro a assinar um artigo
na renomada revista americana Science. A pesquisa começou em 1996, quando Afukaka
conheceu o arqueólogo americano Michael Heckenberger, em uma viagem ao Rio de Janeiro,
para discutir a situação do Xingu com políticos. O pesquisador procurou os índios para buscar
ajuda em um estudo sobre a história do povoamento da Amazônia. Ao conversar com Afukaka,
Heckenberger ficou fascinado pelos relatos de grandes cidades perdidas no Alto Xingu e decidiu
pedir autorização para pesquisar nas aldeias. Passou dois anos morando na casa de Afukaka.
"O cacique é uma das pessoas mais cultas e extraordinárias que conheci", diz Heckenberger,
coautor do artigo, publicado em 2008.

Em 15 anos de pesquisa, o americano conseguiu mudar a história arqueológica da Amazônia.
Heckenberger provou a existência de uma civilização avançada que viveu no Alto Xingu entre
os séculos IX e XIV. Uma sociedade com núcleos urbanos de até 5 mil pessoas, que
praticavam o comércio, fabricavam uma refinada cerâmica, construíam estradas e fossos com
fortificações de palha para proteger as cidades. Essa civilização teria atingido seu apogeu no
século XII, antes da chegada dos europeus às Américas.

Afukaka faz um convite para visitarmos as ruínas da civilização descrita na Science. Fico em
dúvida se aceito a carona do cacique em uma motocicleta parada perto da casa do cinema. Ele
parece que vai cair a qualquer momento. Uma de suas filhas me confidencia que a condição
física de Afukaka é fruto de uma grande tragédia. "Ele ficou assim depois que meus irmãos
morreram."

Descubro que Afukaka é um líder sem sucessor definido. Seu único filho homem vivo não
decidiu se vai ser um cacique e o neto mais velho, que herdou seu nome, mora em São Paulo -
e quer estudar administração. Não ter um sucessor preparado é um drama entre os índios, que
passam o comando das aldeias de forma hereditária.

O problema sobre a sucessão de Afukaka começou há 15 anos. Seu filho mais velho morreu
durante os rituais que marcam a passagem da vida das crianças para a fase adulta. A causa da
morte pode ter sido a reclusão obrigatória em uma casa construída no centro da aldeia. Seis
meses depois, Afukaka sofreu outra perda. Seu segundo filho, ainda criança, morreu de
meningite. Abatido pelas mortes, o cacique entrou em depressão e adoeceu. Tratado com
corticosteroides, hormônios usados para combater alergias, Afukaka acabou deformado pelos
remédios. O forte guerreiro virou um homem calvo, encorpado e com uma expressão inchada.
"Foi depois da morte dos filhos que Afukaka passou a ter essa preocupação cada vez maior em
registrar a cultura de seu povo", diz Fausto, do Museu Nacional.

Decido aceitar a carona para conhecer as ruínas. Depois de alguns minutos em uma trilha na
mata, paramos em uma clareira. Atrás das árvores, grandes valetas que lembram fossos de
castelos medievais seguem como serpentes cortando a floresta até as margens de um lago de
águas transparentes. A aldeia cuicuro é considerada um dos lugares mais bonitos do Parque
Indígena do Xingu. Dá para entender por que as antigas cidades eram erguidas ali, próximas
do impressionante rio. Afukaka aponta para as escavações de Heckenberger. Vejo três grandes
covas de 10 metros de largura e 3 metros de profundidade. O cacique caminha entre as
escavações arqueológicas e me mostra pontas de lança e cacos de cerâmica. Penso na
dimensão impressionante que as cidades teriam e compreendo o entusiasmo de Heckenberger.
"Aqui moravam meus antepassados, os avós das histórias que meu vovô contava", diz
Afukaka, com orgulho. "Fico feliz de vir aqui. Sinto que finalmente está tudo registrado, e os
índios não vão mais esquecer nossa história. Tisügühütu ongitegoho", afirma, com um sorriso
no rosto.

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