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Sul vive novo ciclo do carvao

OESP, Economia, p.B6
11 de Dez de 2005

Sul vive novo ciclo do carvão
Leilão de energia da próxima sexta-feira pode se tornar um marco na recuperação do mercado perdido para o gás natural
Agnaldo Brito Enviado especial CRICIÚMA (SC)
Um olhar de soslaio para o nicho, um gesto sutil para erguer o capacete. Reverência breve, obrigatória. Com a bênção de Santa Bárbara, protetora dos mineiros, começa o turno de 7 horas e meia numa das 8 minas de carvão da região de Criciúma, Sul de Santa Catarina. O elevador, ligeiro e tosco, sobe até a luz. Embarque feito, hora da descida, 150 metros terra a dentro, equivalente a um prédio de 50 andares. Carlos Roberto Fidelis, o Veneza, cumpre a mesma liturgia há oito anos, desde quando largou o futebol profissional para abraçar o trabalho de mineiro em Criciúma.
Veneza, um dos 4,7 mil mineiros que vivem do subsolo de Santa Catarina e Rio Grande do Sul, ajuda a Carbonífera Criciúma a abastecer parte do Sistema Elétrico Brasileiro. Agora, se prepara para extrair mais carvão para a indústria cerâmica, a siderurgia e mais termelétricas.
Das 100 mil toneladas de carvão extraídas da mina, parte alimenta o Complexo Termelétrica Jorge Lacerda, de propriedade da belga Tractebel, com capacidade instalada de 857 MW. O carvão, o mesmo que provoca arrepios nos ambientalistas e que deu à região de Criciúma um dos maiores passivos ambientais do País, articula o retorno ao mercado brasileiro. Aproveita o embalo do chamado 'novo ciclo' do carvão no mundo. O combustível mineral, ao contrário do que se pensa, embasa atualmente planos de construção de usinas que vão gerar milhões de megawatts de energia pelo mundo nos próximos anos. No jogo da geopolítica mundial, com o petróleo em alta, o carvão amplia a sua importância.
A ausência de uma política estratégica para o uso do carvão no Brasil não impede que o setor privado construa a própria. As carboníferas acham que o carvão terá de ser considerado opção na necessidade anual de geração de nova energia para o Brasil, cujo cenário de escassez está ali, 2009 ou 2010.
Por isso, quatro projetos termelétricos com base no uso do carvão nacional entrarão no leilão de energia nova que a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) fará na próxima sexta-feira. São 1.857 megawatts que tentarão vencer a corrida. "Acho que pelo menos dois empreendimentos terão preços de energia imbatíveis neste leilão", avalia Fernando Zancan, secretário executivo do Sindicato das Indústrias da Extração de Carvão de Santa Catarina (Siecesc).
A vitória no leilão será considerada um marco, a ressurreição do setor carbonífero. O leilão tem o poder de duplicar a demanda de carvão, extraído hoje por Veneza e seus companheiros. A capacidade de geração térmica com carvão pode sair dos atuais 1.414 MW para 3.271 MW, pode mais que dobrar, se todos os projetos entrarem na lista. Até 2010, a quantidade de usinas a carvão pode dar ao País 3,9 mil MW em capacidade instalada.
AÇO
O setor siderúrgico, que entre 1945 e 1990 foi o principal cliente das carboníferas do Sul, quer voltar a comprar carvão nacional. A forte demanda da China (que cresce por ano o equivalente ao mercado brasileiro de aço), associada aos planos de expansão da siderurgia nacional, cuja meta é duplicar a produção até meados da próxima década, já trouxeram para Criciúma grupos siderúrgicos.
"Podemos voltar a produzir, mas isso vai exigir investimentos", diz Alfredo Fedel, engenheiro de minas, na Carbonífera Criciúma.
Para a produção de 35 milhões de toneladas de aço, o Brasil precisa de 13 milhões de toneladas de carvão, volume hoje integralmente importado. "Será de 26 milhões de toneladas a demanda de carvão se o setor siderúrgico cumprir o plano de duplicar a produção. Hoje, o setor não tem condições de fornecer, mas com investimentos esta capacidade reaparece", afirma Zancan. O setor não quer fazer substituição de importação. Planeja fornecer parte da demanda, cerca de 2 milhões de toneladas ao ano, o que se somaria ao volume atual de 11 milhões de toneladas, somadas as produções do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina.

Dano ambiental foi imenso
Empresas tentam recuperar estragos feitos pela extração
Há uma razão adicional para o aumento da exploração do carvão mineral em Santa Catarina. E o motivo não está exclusivamente na sobrevivência de uma indústria com mais de 110 anos e com receita anual de R$ 450 milhões. Por mais polêmico que pareça, o aumento da produção de carvão pode servir como a única fonte de dinheiro capaz de colocar em marcha um plano amplo de recuperação ambiental da região sul do Estado.
Quarenta anos de exploração do combustível, período no qual ajudou na produção de aço no Brasil, resultaram também num dos maiores passivos ambientais do País. Uma destruição de 5,5 mil hectares e de custo estimado em US$ 200 milhões. A exploração desordenada inutilizou parte de três bacias hidrográficas da região.
A Justiça já deu o veredicto sobre este desastre. Obrigou as carboníferas, a Companhia Siderúrgica Nacional e a União a recuperarem a região. Mas o conserto é lento. A missão está entregue ao Núcleo de Meio Ambiente do Sindicato das Indústrias da Extração de Carvão do Estado de Santa Catarina (Siecesc). Cleber Baldoni Gomes coordena as primeiras intervenções. A principal: evitar que a mistura de enxofre e ferro, presente no rejeito do carvão, tenha contato com a água.
A indústria diz que ou o setor cresce, ou dificilmente terá capacidade econômica para resolver a questão. "A solução deste problema passa pelas garantias de que a atividade irá continuar", diz Gomes.
Mensalmente, 3% do faturamento do setor é revertido para custear a recuperação e projetos ambientais. Porém, a rentabilidade de 1% da atividade carbonífera, que tende a melhorar com as novas opções de mercado, não é suficiente para a despesa.
Fernando Zancan, secretário-executivo do Siecesc, diz que a atividade tem de gerar recursos para custear o investimento em recuperação, mas ao mesmo tempo evitar novos impactos e, principalmente, investir em pesquisa para a abertura de novas minas.

Produto será relevante no cenário energético global
O carvão mineral terá um papel relevante no crescimento mundial do consumo de energia nas próximas décadas. Os combustíveis fósseis representarão cerca de 90% do crescimento da demanda energética de 2005 a 2030, e o carvão está dentro dessa conta. É o que indica a Agência Internacional de Energia (AIE). Até 2010, mais 221 gigawatts (GW) de capacidade de geração funcionarão a carvão. O número se expande nas duas décadas seguintes: 500 GW entre 2011 e 2020 e 670 GW entre 2021 e 2030.
Os conflitos em zonas de produção de petróleo, como o Oriente Médio, e o aumento gradativo do preço do gás natural - situação já observada no Brasil - recolocam o carvão como opção energética. Ambientalmente questionado, o setor acha que o desenvolvimento tecnológico aplicado ao uso do carvão é capaz de torná-lo menos nocivo do que foi. Uma das idéias, que no Brasil já começou a ser olhada, é associar o consumo de combustíveis fósseis com projetos de seqüestro de carbono.
De acordo com Fernando Zancan, secretário executivo do sindicato das carboníferas do Sul de Santa Catarina, já ocorreram conversas entre o setor e a Petrobrás para o desenvolvimento de estudos capazes de associar o uso de fósseis com o seqüestro de carbono. "É o que o mundo começa a estudar", diz.
Outra opção igualmente considerada é a produção de hidrogênio pela rota carbonífera - segundo avaliações, a forma mais barata de se obter o que o mundo considera a energia do futuro.
No Brasil, o estágio é bem mais modesto. O País ainda discute como resolver os problemas ambientais que afetam a região do carvão. O desmonte do setor no início da década de 90 ainda reverbera. Reduziu a uma fração a base industrial, que agora começa a se recuperar, e principalmente abortou todo plano tecnológico que indicaria rumos mais sustentáveis no uso do carvão. É uma das provas da descontinuidade do planejamento do Brasil.

Custo leva ceramistas a desistir do gás natural
O pólo ceramista de Santa Catarina fez as contas e tomou uma decisão: iniciar um lento retorno ao passado. Desde o fim da década de 90, acreditou e investiu milhões de dólares em equipamentos e tecnologia para queimar gás natural em fornos, além de usar o combustível em partes do processo industrial. A noção de combustível do futuro trombou com um problema insolúvel: preço.
A Cecrisa, uma das maiores indústrias de cerâmica do País, com produção anual superior a 30 milhões de metros quadrados, deu a largada para abrir mão do gás natural. Vai investir na produção de gás a partir do carvão e da turfa, um combustível fóssil farto no Brasil.
Dic Freire, responsável pelos projetos energéticos da Cecrisa, já comemora o resultado dos primeiros testes da unidade piloto de gaseificação. "Com o resultado obtido nessa instalação, vamos redesenhar o projeto para aplicar em escalas maiores em outras fábricas. O objetivo é deixar o gás natural", diz Freire. O investimento em 11 gaseificadores consumirá R$ 15 milhões.
MAIS BARATO
Segundo José Zimmermann, diretor de Operações da Cecrisa, 60% da demanda de energia da empresa é abastecida pela concessionária de gás natural de Santa Catarina, a SC-Gás. Com os novos aumentos do gás aplicados pela Petrobrás, a diferença de preços entre os dois energéticos tornou a situação insustentável. "Em outubro, o custo que a Cecrisa pagou por gigacaloria consumida de gás natural chegou a R$ 81, enquanto o de carvão ficou em R$ 14", compara.
A diferença é tão grande que é capaz até de um senão no plano ambiental, que amparou, no passado, a decisão da empresa de adotar o gás natural no final da década de 90. "Não era o que desejávamos. O gás natural é um insumo muito mais simples de ser usado. O gaseificador, pelo contrário, requer uma nova unidade industrial e isso exige cuidados, mas a diferença de preço é muito elevada", diz Zimmermann.
A mudança da Cecrisa é mais simples. A empresa havia decidido, desde o início da oferta de gás natural, não usar o insumo em todos os processos industriais. Da demanda total, 45% era e continua a ser atendida pelas carboníferas. Carvão usado para produzir vapor, que seca a argila utilizada na produção de placas cerâmicas.
"Creio que a indústria cerâmica abandonará primeiro o gás natural utilizado para os secadores. O investimento em gaseificadores de carvão e turfa dependerá dos resultados", avalia.
Murilo Bortoluzzi, presidente da Associação Sul-Brasileira de Cerâmica para Revestimento, acha que a decisão é um retrocesso, mas vale, nesse caso, a garantia de competitividade de um setor que exportou US$ 327 milhões em 2004.
A indústria carbonífera gosta desse movimento das cerâmicas e quer lançar, em breve, um projeto para dominar a tecnologia de gaseificação. "A Cecrisa saiu na frente, mas o conhecimento que a empresa terá com o próprio desenvolvimento não será repassado para o concorrente. O setor do carvão fará esta oferta", diz Fernando Zancan, do Sindicato das Carboníferas.

OESP, 11/12/2005, p. B6

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