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Autor: Fabiana Reinholz
29 de Abr de 2024
Livro de Rodrigo da Silva mostra as várias violências sofridas pelos indígenas no Rio Grande do Sul no regime militar
Qual o tratamento recebido pelos indígenas do Rio Grande do Sul durante os 21 anos do regime implantado em 1964? Sabe-se que, no Brasil, o período teve efeito devastador sobre os povos originários. E no extremo sul do Brasil?
É a pergunta que o livro Os Indígenas do Rio Grande do Sul e a Ditadura Civil-Militar (1964-1985): um período de intensificação de um habitus colonial violador pretende esclarecer. O Brasil de Fato RS entrevistou seu autor, o advogado e ouvidor da defensoria pública do Rio Grande do Sul, Rodrigo de Medeiros Silva. Veja como foi a conversa:
Brasil de Fato RS: Nos últimos anos, começamos a computar as mortes causadas pela ditadura entre os indígenas da Amazônia (como fez o livro Os Fuzis e as Flechas, de Rubens Valente). De acordo com o relatório da Comissão Nacional da Verdade, finalizado em 2014, indica que, apenas na investigação de dez povos, foram estimadas mais de oito mil mortes decorrentes do governo militar. O que aconteceu no Rio Grande do Sul com os indígenas durante a ditadura?
Rodrigo Silva: Houve muitas violações, descasos e omissões. Primeiro, temos que lembrar que, com os indígenas, as violações não foram inauguradas na ditadura e nem acabaram com o fim da ditadura. Mas, por ser um regime autoritário, as violações terminaram se intensificando.
Daquelas três fases que o (jornalista) Elio Gaspari sempre cita, do primeiro momento da ditadura, teve uma continuidade de violações. Inclusive, a ditadura promoveu inquéritos, tanto parlamentares quanto a partir do executivo, para conseguir fazer a crítica aos governos anteriores. Mas o que ela percebeu no Relatório Figueiredo (documento produzido pelo procurador estadual Jáder de Figueiredo sobre a questão indígena no regime militar), nos relatórios da CPI da Assembleia Legislativa do RS, e também do Congresso Nacional foi um quadro de violações e corrupção.
Na verdade, a ditadura conseguiu fazer provas contra si mesma, tanto que o Relatório Figueiredo sumiu, só apareceu em 2012, e o relatório da CPI da Assembleia Legislativa ficou inócuo. Depois, teve a época mais violenta dos anos de chumbo, com (a edição do) AI-5 e tudo se perdeu. A própria CPI do Congresso Nacional, de 1968, que visitou o Rio Grande do Sul e constatou inúmeras violações, não conseguiu ter continuidade por causa do ato institucional.
Houve ainda a época de intensificação das violações, no final da década de 1960 e começo dos anos 1970. Vamos ter o projeto soja na década de 1970. Até hoje temos um desdobramento disso nos arrendamentos de terra, causando conflitos nas terras indígenas. Vamos ter a intensificação dos trabalhos forçados, análogos à escravidão. Trabalhavam (até) crianças e não havia retorno para a comunidade indígena. Isso foi visto na CPI de 1977, já na derrocada da ditadura.
E existia toda uma cultura de, praticamente, um campo de concentração. Para os indígenas saírem (da reserva) e venderem seus artesanatos tinham que ter uma autorização do chefe do posto. Sofriam penas de prisão ilegal, tortura, proibição de falar a língua. A ditadura tinha uma política muito forte integracionista para transformar o indígena em trabalhador nacional que, na verdade, serviriam para os empreendimentos dos parceiros da ditadura, haja visto os arrendamentos e tudo o mais.
E desaparecimentos...
O documentário Índios Memórias de uma CPI, do Hermano Penna , vai tratar da CPI de 1968, que teve seu foco na região do Bico do Papagaio, em Tocantins, no Maranhão, no Pará, e no Rio Grande do Sul, mostra que tinham várias remoções forçadas acontecendo. Tanto que, por exemplo, teve ajuda da CPI da Assembleia/RS. Lugares visitados pela CPI da Assembleia havia poucas semanas a CPI do Congresso foi lá e não tinha mais ninguém. Botavam no caminhão e removiam. Isso causava desagregação social e conflito entre as comunidades indígenas.
Havia muita dificuldade (para obter dados) com as pessoas no meio rural, falta de documentação. Para você fazer essas afirmações é muito difícil. Um exemplo é o Reformatório Krenak, que aconteceu em Minas Gerais, no território Krenak. Tem no livro Os Fuzis e as flechas, do Rubens Valente, que o administrador que assumiu o local encontrou dezenas de pessoas que não tinham o porquê estarem presas lá. E na relação tem um Kaingang, não sabemos se do Paraná, de Santa Catarina ou do Rio Grande do Sul. A falta de dados, até por ser uma ditadura, é um desafio.
No romance Tom Vermelho do Verde, Frei Beto trata do massacre de indígenas, pela ditadura militar, durante a abertura da rodovia BR 174, a Transamazônica, que liga Manaus à Boa Vista. E aqui no estado, quais eram os interesses?
Os mesmos interesses da colonização, uma colonização preconceituosa, de entregar terras para colonos de ascendência europeia. E colocar (força de trabalho barata) na produção agrícola, que a gente chama hoje de agronegócio, em desrespeito ao modo de vida e de relação com a terra que os indígenas tinham.
Essa política, que sempre existiu no estado, foi intensificada com a ditadura militar: remoções, limitações de ir e vir, proibição de falar a língua e de seus costumes, perda dos territórios. Temos o caso da terra indígena Borboleta, no município de Salto do Jacuí, terra Kaingang, perdida na época da ditadura.
Na Amazônia, as violências e mortes foram atribuídas, em parte, a quem deveria justamente proteger o indígena, ou seja, ao Serviço de Proteção ao Índio, o SPI, e à Funai, que o substituiu. E aqui?
Aqui temos o mesmo problema em relação às autoridades, porque eram políticas públicas do SPI e, depois, da Funai. Eram políticas públicas de cortar madeira, de produzir milho, de produzir soja. A produção do milho já é anterior à ditadura, mas teve continuidade. A produção de soja é do tempo da ditadura. Eles pensavam os projetos sem pensar nas pessoas, sem pensar no entorno, inclusive nos não indígenas. Vamos lembrar que o projeto da Mina Guaíba (projeto de mineração de carvão nas imediações de Porto Alegre) é de 1978 e impacta inclusive indígenas.
A Comissão Nacional da Verdade, em seu relatório final, apresentou 13 recomendações relacionadas aos povos indígenas. Entre elas, um pedido público de desculpas do Estado brasileiro pela tomada das terras e demais violações de direitos humanos, além da instalação de uma Comissão Indígena da Verdade. Isso é um avanço na sua avaliação?
É importante ter a Comissão Nacional Indígena da Verdade, mas precisa avançar mais. Precisa demarcar os territórios. Em 2019, foi apontado que o Rio Grande do Sul é o estado da federação com mais pendências de processos de demarcação. E sabemos que, durante todo o governo Bolsonaro, não ocorreu
nenhuma demarcação.
A situação continua grave. É um desafio para o atual Ministério dos Povos Indígenas. Além da demarcação, é cabível a reparação, se as pessoas sofreram com trabalho forçado, se seus parentes foram submetidos ao trabalho análogo à escravidão. Se sofreram prisões ilegais, tortura, maus tratos, a proibição de uso do idioma, remoções forçadas. E a perda, ainda, do meio ambiente. O modo de vida originário fica perdido também se o meio ambiente foi destruído.
No dia 26 de março, o Ministério Público Federal (MPF) ajuizou ação pedindo reparação coletiva por danos causados aos indígenas do Rio Grande do Sul durante a ditadura. A ação aconteceu antes do Brasil conceder as primeiras reparações coletivas da história, pedindo desculpas aos indígenas Krenak e Guarani Kaiowá por perseguições no regime militar. Que significado isso tem para as comunidades?
Significa que as instituições públicas começaram a cumprir o seu papel em relação aos povos originários. É o início. O pedido de desculpas é importante. Mas não se pode parar só no pedido de desculpas. Tem que fazer as reparações. A ação civil pública também, da mesma forma, vai ter que ter um retorno do Judiciário e do Estado brasileiro, se quiser entrar em acordo. E o estado gaúcho também, se quiser entrar em acordo nesse sentido.
Na ação civil pública há pedidos de reparação, por exemplo, para o PNGATI [Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental em Terras Indígenas], uma política de recuperação ambiental, gestão e uso sustentável de uma determinada área.
Estamos no mês da descomemoração dos 60 anos do golpe cívico militar e também do Abril Vermelho. O que representa essa invisibilidade indígena durante a ditadura?
No livro, faço a defesa de que existe um habitus, um conceito do [sociólogo francês] Pierre Bourdieu, de colonizador, que não foi superado.
Para as pessoas, para o senso comum, e infelizmente, para quem está à frente das decisões, se você sabe que tem minério ali naquele chão, a lógica é retirar aquele minério. Se ganhar dinheiro cortando as árvores, retira o dinheiro cortando as árvores. É uma marcha colonial de conquista e de exploração continua
No Brasil, ainda não foi superada essa marcha de conquista de território e submissão dos povos. Submissão para ser mão de obra barata ou mão de obra escrava para esses empreendimentos. E, se não se submeterem, serão aniquilados pela omissão ou pela violação mesmo da dignidade e das suas vidas. A marcha colonial não foi superada. O que aconteceu na ditadura, por ser um regime autoritário, foi a sua intensificação.
Falamos também da cultura indígena. O que mais que a ditadura deixou para os povos indígenas?
Nas comunidades indígenas Kaingang, por exemplo, a gente vê uma herança que não é só da ditadura. É da época do SPI, também anterior à ditadura, que é da militarização, com cargos, com a referência a ser "capitão" [cargo hierárquico criado entre os indígenas] e tudo o mais.
Mas a grande marca que a ditadura deixou foi a diminuição dos territórios indígenas, a degradação ambiental, os conflitos a partir do arrendamento de terra para plantar soja nesses territórios e o apagamento das violações que os próprios indígenas sofreram.
E a grande maioria da sociedade não sabe o que aconteceu. Quem cometeu esses crimes não foi responsabilizado e ainda não houve reparação para as vítimas.
Como resgatar os direitos humanos dos povos originários?
Tem males que não tem como recuperar. Mas cabem indenizações por danos imateriais e morais. Cabem também políticas públicas efetivas, tanto de demarcação do território como de recursos para a recuperação ambiental, gestão sustentável do meio ambiente, alternativas de renda que não sejam incompatíveis com o modo de vida deles. Todas essas políticas públicas precisam ser feitas.
O que te levou a estudar o tema que se transformou num livro?
Trabalho com a questão há muito tempo. Participo da Rede Nacional de Advogadas e Advogadas Populares, a Renap. Tenho quase 21 anos de advocacia, moro no Rio Grande do Sul há 10 anos, mas já atuava no Ceará com o movimento indígena e nacionalmente com algumas causas.
Aqui, comecei a estudar dano existencial coletivo nas comunidades tradicionais e povos originários. O que também se tornou livro lá atrás. Também acompanho os quilombolas. Quanto aos indígenas do RS, eu pude acompanhar o debate do marco temporal, inclusive, assessorando as comunidades na ação do STF, em amicur curiae. Como querem exigir um marco temporal a adoção da Constituição de 1988 se os indígenas sofriam tantas violações e não estavam no território por causa das ações dos governos militares?
No mestrado, pude debater o que aconteceu com os Krenak durante a ditadura. Percebi que também tinha muito material a ser buscado e registrado para alimentarmos uma possível ação civil pública do Ministério Publico Federal, aqui no Rio Grande do Sul, que foi impetrada em março
Uma mensagem final...
São múltiplas as violações e também são específicas de cada área. É preciso a responsabilização do Estado e da sociedade, buscar essas informações, ouvir e resgatar o que houve para que essa reparação seja o mais justa possível. E dizer não ao marco temporal. Do contrário, estaremos efetivando todas as violações da ditadura cometidas contra os indígenas.
Fonte: BdF Rio Grande do Sul
Edição: Ayrton Centeno
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