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Ruralismo de fronteira

CB, Opinião, p. 15
Autor: SANTILLI, Márcio
27 de Fev de 2014

Ruralismo de fronteira

Márcio Santilli
Sócio-fundador e assessor do Instituto Socioambiental (ISA)

"É ali que estão aninhados quilombolas,
índios, gays, lésbicas. Tudo o que
não presta ali está aninhado."
Deputado Luís Carlos Heinze (PP-RS),
presidente da Bancada Ruralista

Um imenso território fértil, inúmeros atores sociais vivendo da terra apesar da forte urbanização das últimas décadas, uma exuberante diversidade de culturas indígenas, africanas e europeias associadas a campos e florestas, uma produção agropecuária planetariamente relevante: não faltam indicadores da importância da questão rural no Brasil, que seguirá sendo constitutiva do nosso futuro.

Sendo assim, o ruralismo também pode, ou poderia, abarcar um conjunto grande e diverso de perspectivas sobre o país e o território. Mas a expressão acabou sendo apropriada por parte de quadros partidários e estruturas corporativas que vão lhe cunhando significados restritivos e pejorativos, ligados a posições políticas extremadas. Assim foi com a União Democrática Ruralista (UDR), que comprometeu o significado da palavra, conferindo-lhe o sinônimo de obscurantismo, prepotência, violência e patrimonialismo descolado da produção.

Mas nem sempre foi assim. Está ainda recente na memória nacional a importante atuação de empresários referenciais para implementar e dar visibilidade à pujança produtiva do agronegócio, sua capacidade de agregar tecnologia para alavancar produtividade, de superar adversidades para conquistar mercados e ampliar sua inserção internacional. Pessoas como Roberto Rodrigues, Marcos Jank, Luís Furlan, José Penido e tantos outros, há alguns anos, davam o tom da agenda agropecuária para a opinião pública. Não por acaso, temas contemporâneos marcaram esse debate: etanol, biomassa, transgenia, protecionismo comercial etc.

De repente, mudaram os atores e o teor do discurso. A Confederação Nacional da Agricultura (CNA) deixou-se aparelhar politicamente como nunca com a ascensão da senadora Katia Abreu (PMDB-TO) à presidência, ao mesmo tempo em que a bancada ruralista crescia na Câmara, fomentada pelas distorções na representação na casa, que reduz a representação relativa de estados que são grandes produtores (SP, PR e MG), enquanto infla as bancadas de outros estados que contribuem com pequena parte da produção agropecuária (RR, RO e TO, por exemplo).

O esvaziamento programático dos partidos favorece a maior visibilidade da bancada ruralista. Transversal, ela abriga deputados de vários partidos e articula movimentos de pressão e chantagem sobre o governo, potencializando a influência de seus membros, que também integram o baixo clero do Congresso e partidos de oposição. Com eles, a agenda ruralista foi relegando a plano secundário as demandas relativas à produção para priorizar plataforma reacionária, fundada na exclusão de direitos no Brasil rural: admissão legal de relações desumanas de trabalho, privatização de assentamentos de reforma agrária, ameaça a direitos de índios e de quilombolas, desobrigação com o meio ambiente, desinformação aos consumidores, desprezo à ameaça das mudanças climáticas. Esse programa e os seus protagonistas valem-se, retoricamente, do sucesso produtivo dos segmentos mais dinâmicos do agronegócio para legitimar um ruralismo de fronteira e preconceituoso.

No entanto, uma minoria muito pequena dos produtores rurais está em desacordo com a legislação que proíbe o trabalho escravo, ou ocupando assentamentos de reforma agrária, ou mantendo conflitos com índios e quilombolas, ou praticando desmatamento ilegal. A grande maioria está trabalhando, enfrentando dificuldades burocráticas, concorrenciais e climáticas, procurando aumentar a produção e a produtividade, com demandas objetivas que não têm interface com a plataforma da bancada ruralista.

Não se trata só do sequestro programático da representação ou da manipulação política da produção rural, mas do fato de que essa agenda agressiva está conduzindo à radicalização ideológica e à multiplicação de conflitos de terra. Se não, me digam: no que interessa aos produtores, ou à produção, a desqualificação de gays e minorias com base em preconceitos, como o manifestado pelo presidente da bancada ruralista na Câmara, Luís Carlos Heinze (PP-RS)? Ele afirmou, em vídeo divulgado na semana passada, que quilombolas, índios e homossexuais são "tudo o que não presta". Os precedentes históricos similares não recomendam tal atitude, como a ascensão do fascismo, no passado, ou a discriminação a imigrantes.

Correio Braziliense, 27/02/2014, Opinião, p. 15

http://impresso.correioweb.com.br/app/noticia/cadernos/opiniao/2014/02/…

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