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Rio canibal

O Globo, Ciência, p. 34
21 de Abr de 2004

Rio canibal
Escavações revelam passado antropofágico dos goitacazes

Roberta Jansen

Comedores de gente, guerreiros ferozes e arredios. As características mais citadas para definir os índios goitacazes são também uma boa pista para entender por que se sabe tão pouco sobre essa tribo, de grandes caçadores e pescadores, que chegou ao litoral por volta do século II. A maioria dos relatos existentes foi feita com base em informações de segunda mão, muitas vezes fornecidas pelos tupis, seus inimigos, que cultivavam uma relação mais amistosa com os colonizadores e, portanto, eram melhor retratados por estes.

Os goitacazes tampouco se relacionavam com portugueses ou franceses que por essas bandas andavam e pouquíssimos negócios faziam com eles.

Para esses nativos, todos eram inimigos. E inimigo, em sua língua, jê, significa "gente de comer" (tapouyest). Para conhecer melhor essa tribo, que ocupou o Rio de Janeiro de São Pedro da Aldeia até a fronteira com o Espírito Santo entre os séculos II e XVII, pesquisadores do Museu Nacional estão escavando sítios na Região dos Lagos. Sempre associados a Campos - não por acaso, dos Goitacazes - esses nativos ocuparam também a serra e o litoral fluminenses.

Últimos vestígios estão ameaçados
0 Só na Região dos Lagos já foram encontrados 11 sítios, estudados sob a coordenação da arqueóloga Jeanne Cordeiro, da equipe de Maria Dulce Gaspar. Os sítios mais importantes estão em Búzios, São Pedro da Aldeia e Saquarema, muitos deles ameaçados pelo descaso do poder público em relação a sua preservação, como denuncia Jeanne.

Esses sítios guardam informações preciosas sobre os goitacazes, sobretudo algumas relacionadas à organização das aldeias e à prática do antropofagia. Os arqueólogos já encontraram diversos sepultamentos de inimigos - ou seja, de gente que foi capturada e comida por eles. A forma de sepultamento é diferente daquela reservada aos amigos, como frisa Jeanne. Os ossos foram empilhados e os alimentos depositados por cima já que, para eles, era preciso homenagear o inimigo morto.

Toda pessoa diferente era um tapouyest - diz a arqueóloga. - Diferentemente do tupi, que convivia com o inimigo, dava a ele um nome e uma casa na tribo até que fosse morto em ritual, o goitacaz capturava, matava e comia.

O canibalismo entre os goitacazes, bem como entre outros nativos, era uma prática ritualística - não comiam carne humana para se alimentar. A idéia era de que a força do guerreiro inimigo poderia ser incorporada por meio de sua ingestão.

A carne não era bem cozida porque precisava guardar os humores do corpo, como se dizia na época, a umidade - conta Jeanne.

Num dos sítios, o Sítio Grande do Una, houve uma descoberta macabra. Entre os quatro corpos de inimigos encontrados, o de uma criança de não mais de 3 anos de idade.

- Criança também era inimigo, também era gente de comer, desde que fosse de outra tribo - diz Jeanne.

Ferrenho treinamento para a guerra
Goitacazes aprendiam a flechar desde crianças, tendo os pais como alvo 0 Mas não apenas o canibalismo contribuiu para a reputação dos goitacazes (especialistas grafam sempre goitacá). Os poucos relatos em primeira mão existentes sobre esse povo indicam, por exemplo, um treinamento ferrenho para a guerra e, conseqüentemente, para a autodefesa. É o caso dos textos do padre francês André Thevet, estudados pela arqueóloga Jeanne Cordeiro.

- Segundo o padre, que conviveu com eles, os nativos eram treinados desde muito novos para a guerra - conta Jeanne. - E as crianças treinavam atirando flechas de verdade contra seus próprios pais.

Além disso, tinham fama de grandes corredores - goitacaz é uma palavra tupi que indica essa habilidade. Segundo alguns textos, seriam capazes de pegar um veado na corrida. Os goitacazes seriam mais altos e fortes do que os demais nativos.

- Eu pensava que essa era uma imagem criada pelo pânico, mas, em alguns sítios, achamos indivíduos que realmente eram mais altos do que a média, chegando a cerca de 1,65 m - diz Jeanne.

Para a arqueóloga, os nativos só foram derrotados pela doença.

- Eles foram vencidos por gripe, sarampo e cólera porque não tinham anticorpos. Roupas de doentes eram deixadas nas trilhas para os contaminar.

O Globo, 21/04/2004, Ciência, p. 34

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