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Resistência de como a ambição massacra um povo

Revista Continente n. 196, abr., 2017, p. 22-27
Autor: NASCIMENTO, Débora
30 de Abr de 2017

Resistência de como a ambição massacra um povo
Desde a chegada dos europeus, população nativa do país luta para manter seu direito originário à terra tradicional, que vem sendo ameaçado de modo constante e violento

Debora Nascimento
CONTINENTE ABRIL 2017

"...um povo que sempre viveu à revelia de todas as riquezas, um povo que habita casas cobertas de palha, que dorme em esteiras no chão, não deve ser identificado de jeito nenhum como povo que é inimigo dos interesses do Brasil, inimigo dos interesses da nação e que coloca em risco qualquer desenvolvimento." (Ailton Krenak, na Assembleia Nacional Constituinte, em 4 de setembro de 1987)

Na manhã do dia 8 de março, Valtenir Lopes saiu de sua terra Kurusu Ambá, para ir ao centro urbano do município de Coronel Sapucaia (MS). Levava, num automóvel, uma geladeira velha. Na metade do trajeto de 30 quilômetros, policiais o abordaram e o prenderam, sob a suspeita de que havia roubado o eletrodoméstico. Atiraram contra a sua perna, que saiu ilesa devido ao rápido reflexo. Na delegacia, Valtenir jurava que não havia furtado o objeto, estava levando para trocar o gás. Foi agredido. Horas depois, após sua família convencer os oficiais de que o produto, comprado há 12 anos pela sogra, não era fruto de um crime, o liberaram. Na realidade, o crime estava sendo cometido, naquele momento, não pelo suspeito, que insistiu em fazer o exame de corpo delito, para provar as agressões sofridas. Os mesmos policiais o conduziram ao hospital para realizar o procedimento. No percurso, o ameaçaram, caso contasse o que realmente acontecera.
Valtenir é um Guarani-Kaiowá que mora em uma área de retomada - expressão usada pelos indígenas para a ocupação de uma terra que pertenceu aos seus ancestrais. O tekoa - o lugar do modo de ser guarani - Kurusu Ambá é um dos territórios ocupados pelos Guarani-Kaiowá na luta cinquentenária pela demarcação de suas terras e está localizado numa região fronteiriça do Mato Grosso do Sul com o Paraguai, onde os ataques cometidos por jagunços são frequentes, acobertados, ignorados e impunes. Em 2007, duas lideranças foram mortas. Entre 2009 e 2015, mais duas. E, em 2016, como numa cena típica de faroeste americano, um dos três acampamentos, incendiado.
Ao escapar com vida da prisão arbitrária, Valtenir livrou-se do mesmo destino de Samuel Pataxó, da Aldeia Coroa Vermelha (Santa Cruz Cabrália, BA), que, em julho de 2014, foi vender artesanato em Belo Horizonte e acabou alvejado por vários tiros, com apenas 19 anos; de Genilson Lima dos Santos Pataxó, morto, aos 39 anos, com um tiro à queima-roupa por um policial, também na capital mineira, em março de 2015; de Marinalva Manoel, líder Kaiowá, morta a facadas, aos 27 anos, em Dourados (MS), em novembro de 2014, 17 dias depois de voltar de um protesto em frente ao prédio do Supremo Tribunal Federal, em Brasília; e do Índio Galdino Jesus dos Santos, queimado vivo, aos 44 anos, por quatro rapazes brancos, enquanto dormia num ponto de ônibus na capital federal, em 20 de abril de 1997, 24 horas após participar de uma manifestação no Dia do índio.
Exatos 20 anos após o cruel assassinato do líder Pataxó, os povos indígenas continuam sendo vítimas de agressões, ataques, assassinatos, tramoias, usurpações de seus direitos, sendo um deles o direito à terra - mais antigo motivador de toda a violência desde que os europeus, em busca de ouro, chegaram a este território na América do Sul, imaginando terem aportado na Índia.
De acordo com números da Secretaria Especial da Saúde Indígena (Sesai), do Ministério da Saúde, 137 indígenas foram assassinados em 2015; 138, em 2014, e, 53, em 2013. Desde 2003, quando o relatório Violência contra os povos indígenas no Brasil, do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), passou a ser realizado, foram registrados 891 homicídios, sendo a maioria no Mato Grosso do Sul, onde se situa o povo Guarani-Kaiowá. No estado, em 2015, ocorreram 36 casos de homicídios, e a cidade com maior número de registros é Dourados - onde foi morta a citada líder Kaiowá Marinalva Manoel, deixando dois filhos órfãos.
Outro dado alarmante é o número de mortes de crianças indígenas com até cinco anos de idade. Em 2015, foram registrados 599 óbitos - 100 deles no Mato Grosso do Sul. A explicação, segundo o relatório, é a falta de atendimento médico nas áreas, as precárias condições de vida e/ou envenenamento por agrotóxicos usados na região. Além disso, também aconteceram, naquele ano, 87 suicídios de indígenas no país.
DIZIMAÇÃO
Hoje é mais fácil contabilizar e divulgar números como esses, mas precisar o quantitativo dos indígenas que existiam e dos que foram mortos desde a colonização no Brasil é improvável. A população nativa no século XVI, segundo alguns autores, era estimada entre 2 e 4 milhões de pessoas distribuídas em 1 mil povos diferentes. Segundo Darcy Ribeiro, em O povo brasileiro (1995), só na primeira metade do século XX, a população total teria diminuído de 1 milhão para 200 mil pessoas, sendo dizimados mais de 80 povos indígenas. Tal como uma fantasiosa chegada de extraterrestres trazendo consigo embates linguísticos, corporais e doenças, a vinda do europeu foi um evento terrível do qual a população indígena até hoje sofre as consequências. Darcy relatou, em seu estudo, as séries de enfermidades que acometeram os nativos. "A branquitude trazia da cárie dental à bexiga, à coqueluche, à tuberculose e ao sarampo. Desencadeia-se, ali, desde a primeira hora, uma guerra biológica implacável. De um lado, povos peneirados, nos séculos e milênios, por pestes a que sobreviveram e para as quais desenvolveram resistência. Do outro lado, povos indenes, indefesos, que começavam a morrer aos magotes. Assim é que a civilização se impõe, primeiro, como uma epidemia de pestes mortais. Depois, pela dizimação através de guerras de extermínio e da escravização. Entretanto, esses eram tão só os passos iniciais de uma escalada do calvário das dores inenarráveis do extermínio genocida e etnocida." O princípio do etnocídio é descrito pelo antropólogo: "As crônicas coloniais registram copiosamente essa guerra sem quartel de europeus armados de canhões e arcabuzes contra indígenas que contavam unicamente com tacapes, zarabatanas, arcos e flechas. Ainda assim, os cronistas destacam com gosto e orgulho o heroísmo lusitano. Esse é o caso das loas do padre Anchieta a Mem de Sá, subjugador das populações aborígenes para escravizá-las ou colocá-las em mãos dos missionários. Sem embargo, mais ainda que as espadas e os arcabuzes, as grandes armas da conquista, responsáveis principais pela depopulação do Brasil, foram as enfermidades desconhecidas dos índios com que os invasores os contaminaram. A magnitude desse fator letal pode ser avaliada pelo registro dos efeitos da primeira epidemia que atingiu a Bahia. Cerca de 40 mil índios reunidos insensatamente pelos jesuítas nas aldeias do Recôncavo, em meados do século XVI, atacados de varíola,
"A civilização se impõe, primeiro, como uma epidemia, depois, através de guerras e escravização" Darcy Ribeiro morreram quase todos, deixando os 3 mil sobreviventes tão enfraquecidos, que foi impossível reconstituir a missão". Em Os sertões, Euclides da Cunha relata o quanto a população indígena, mesmo assim, ainda estava em vantagem, no início da colonização, e toma como exemplo a Bahia: "Quando alguns anos mais tarde se povoou melhor a Bahia, a desproporção entre o elemento europeu e os dois outros continuou desfavorável, em progressão aritmética perfeita. Segundo Fernão Cardim, ali existiam 2 mil brancos, 4 mil negros e 6 mil índios. É visível durante muito tempo a predominância do elemento autóctone". Embora o Brasil fosse a terra do "em se plantando, tudo dá", os colonizadores logo perceberam que poderiam não apenas viver da agricultura, como enriquecer bastante a partir dela, mas não da agricultura diversificada que encontraram nas terras indígenas (TIs), e, sim, da monocultura em latifúndio.
Com a instalação do primeiro engenho de cana-de-açúcar, em 1533, na capitania de São Vicente, o agronegócio dava seus primeiros passos. "Já antes da invasão holandesa (1624), do Rio Grande do Norte à Bahia havia 160 engenhos. E esta exploração, em dilatada escala, progrediu depois em rápido crescendo. O elemento africano de algum modo estacou nos vastos canaviais da costa, agrilhoado à terra e determinando cruzamento de todo diverso do que se fazia no recesso das capitanias. Aí campeava, livre, o indígena inapto ao trabalho e rebelde sempre, ou maltolhido nos aldeamentos pela tenacidade dos missionários", destaca Euclides. A rebeldia à qual se referia o autor de Os sertões pode ser comprovada ainda hoje nos vários movimentos encampados pelos povos indígenas em busca de seu direito à terra. À beira de completar, em 2018, 30 anos de promulgação da Constituição, que garantia esse bem e que estabelecia, inclusive, um prazo de cinco anos para o cumprimento dos preceitos da lei, os indígenas continuam sendo vítimas da ambição dos não índios, mas, por outro lado, permanecem dispostos a resistir.
RELATÓRIO FIGUEIREDO
As violências cometidas contra os indígenas no século XX, entre 1946 e 1988, foram apuradas na Comissão Nacional da Verdade Indígena (2014), que recebeu denúncias de diversas violações, muitas delas cometidas pelo Serviço de Proteção aos Índios (19101967), órgão cuja extinção deu lugar à Fundação Nacional do Índio (Funai), em 5 de dezembro de 1967. Alguns dos dados da comissão foram obtidos no Relatório Figueiredo - documento de mais de 7 mil páginas, realizado pelo procurador Jáder Figueiredo Correia e que esteve desaparecido durante quatro décadas, sendo encontrado no Museu do Índio, no Rio de Janeiro, em abril de 2013, lançando luz à parte obscura da história do país. O documento relata atrocidades, como "caçadas" com metralhadoras, dinamites atiradas de aviões, inoculações de varíola e doações de açúcar com veneno. Várias tribos sofreram baixas consideráveis, como os Rikbaktsa, que vivem no estado do Mato Grosso. Da década de 1950 até o início de 1960, foram vítimas de fazendeiros, seringalistas, madeireiros e mineradores, resultando na morte de 75% da sua população. A comissão revelou que, na época da ditadura militar, oito mil índios foram assassinados durante a construção de quatro rodovias pertencentes ao Plano Nacional de Integração (PIN), do governo Médici: a BR-174 (Manaus a Boa Vista); a BR-210, Perimetral Norte; a BR 163, que liga Cuiabá (MT) a Santarém (PA), e a BR-230, a Transamazônica.
Obra grandiosa, a construção da Transamazônica, entre 1968 e 1974, vitimou 29 grupos indígenas, dentre eles, 11 viviam completamente isolados. Houve extermínio quase total dos Jiahui e dos Tenharim. Durante as obras da Usina Hidrelétrica de Tucuruí, no Pará, aconteceu o massacre dos Paracanã, e da rodovia Perimetral Norte ocorreu a morte de, pelo menos, dois mil Yanomamis. "O povo indígena tem regado com sangue cada hectare dos 8 milhões de quilômetros quadrados do Brasil. Os senhores são testemunhas disso", denunciou Ailton Krenak, em sua fala histórica no dia 4 de setembro de 1987, no plenário da Assembleia Nacional Constituinte. O discurso aos parlamentares constituintes foi fundamental para a aprovação dos artigos 231 e 232 da Constituição Federal de 1988, que formam a primeira e mais clara legislação em favor dos indígenas.
A Carta Magna quebrava a ideia integralista do Estatuto do Índio, de 1973, reflexo ainda das expedições do Marechal Rondon, no início do século XX, que tratava os nativos como seres que precisavam ser adestrados. "Antes da Constituição, a maior parte das políticas queria transformar esse índio numa mão de obra assalariada, deixando de lado sua identidade, tentando atingir uma identidade homogênea de povo brasileiro. Eram políticas equívocas e falhas, porque a identidade é um algo muito forte", avalia a advogada do Instituto Socioambiental, Juliana de Paula Batista.
RETROCESSOS
No entanto, a Constituição e outras conquistas dos indígenas no campo jurídico estão ameaçadas por possíveis retrocessos, como a Proposta de Emenda à Constituição 215. Apresentada em 2000, a PEC pretende transferir ao Congresso Nacional a aprovação definitiva das demarcações. "Com essa proposta danosa, a questão deixa de ser baseada em critério técnico e passa a ser orientada pelo critério político, analisada por um congresso, cuja maioria é composta pela bancada ruralista, não comprometida com os direitos das minorias vulneráveis. Já temos projetos de lei que querem retirar direitos e um executivo extremamente moroso - há comunidades aguardando há 20, 30 anos pela demarcação efetiva, o que gera muitos conflitos", analisa Juliana.
Dentre os projetos de leis que estão contra os direitos indígenas, os que se referem à mineração (1610/1996), à construção de rodovias, ferrovias e hidrovias em TIs (273/2008) e à revisão da demarcação de terras em processo de retomada (349/2013).
No Judiciário, a causa indígena sofreu um baque com o julgamento sobre a demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em 2009. Embora tenha julgado favorável à demarcação, o Supremo Tribunal Federal utilizou a tese do "marco temporal" - segundo a teoria, só poderiam ser consideradas terras tradicionais aquelas que estivessem sob posse dos indígenas no dia 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição. "Trata-se de um contrassenso, pois muitos povos indígenas foram obrigados a saírem de suas terras para fugir de perseguições e mortes", critica Juliana de Paula Batista.

Revista Continente n. 196, abr., 2017, p. 22-27

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