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Resgate do paraíso perdido

OESP, Planeta, p. H1 a H5
26 de Set de 2012

Paraíso inóspito
Viagem pelo Atol das Rocas, uma das mais isoladas unidades de conservação do País, expõe um cenário de beleza brutal, com cores e formas que mudam continuamente de acordo com a maré

Herton Escobar (textos) e Jonne Roriz (fotos)

Resgate do paraíso perdido
Como uma técnica e uma ONG florestal se uniram para proteger a unidade de conservação marinha mais antiga do País

Herton Escobar

"Cuidado onde você pisa. Daqui pra lá é delas, e daqui pra lá é delas", avisa Maurizélia de Brito Silva, logo que chegamos à Reserva Biológica do Atol das Rocas.
Em resumo: só podemos caminhar pela praia e por uma trilha de areia que leva até a escada da base de pesquisa. Qualquer passo em falso para a direita ou para esquerda significa pisar na cabeça ou no ninho de alguma ave. É época de reprodução, e a areia de ambos os lados da trilha está forrada de trinta-réis, ou "esterninhas", cada uma delas deitada sobre um ovo. Aqui, o homem pede licença para passar.
É assim que se caminha pelo Atol das Rocas, uma das mais belas, isoladas e inóspitas unidades de conservação do Brasil. Um recife coralíneo circular incrustado no topo de uma montanha submarina a 270 km de Natal, que passa metade do tempo dentro d'água, metade fora.
Chegar lá exige mais de 20 horas de navegação a vela, quando o vento ajuda. À primeira vista, é uma paisagem surreal, que poucas pessoas além de pesquisadores, navegadores e pescadores intrometidos têm o privilégio ocasional de contemplar.
Um filete de areia branca que se eleva timidamente do mar, adornado de duas casinhas, algumas ruínas e uma meia dúzia de coqueiros que parecem brotar do oceano como um oásis flutuante.
Quem desembarcar neste paraíso em busca de silêncio, sombra e água fresca, porém, vai dar de cara com uma beleza brutal. O atol não tem água doce, as sombras esparsas dos coqueiros não oferecem refresco do sol e as 150 mil aves que se reproduzem ali fazem uma algazarra constante, dia e noite, 24 horas por dia.
Sem falar que esse oásis é guardado há mais de 20 anos por uma fera humana, muito mais eficiente em afastar intrusos do que os tubarões que patrulham suas águas: a natalense Maurizélia, ou Zelinha, como é mais conhecida.
Com pouco mais de 1,60 metro, 53 quilos, 46 anos, cabelos pretos, pele queimada de sol, muita dedicação e um comprometimento inabalável com a conservação, Zelinha é uma lenda do ambientalismo brasileiro. Pequenina, ex-alcoólatra e sem nível superior, nunca portou arma nem ostentou diploma, mas conhece o atol melhor do que qualquer cientista e já botou muito pescador casca-grossa para correr dali. Uma fera para tubarão nenhum botar defeito.
"Se o atol fosse fácil de cuidar eu não seria a chefe; seria algum doutor", resume Zelinha.
Funcionária da reserva desde 1991 e chefe desde 1995, ela fala do atol como uma mãe que fala de um filho. E a lista de dificuldades que enfrentou para defendê-lo é enorme. Sua maior batalha foi com os pescadores, que, atraídos pela abundância de peixes no entorno do atol, recusaram-se por muitos anos a manter suas redes e anzóis fora da reserva.
Armada apenas com um bote, uma câmera e uma filmadora, Zelinha usava de sua autoridade e malícia caiçara para afugentar os invasores. "Quando tinha de peitar a gente peitava; quando tinha de correr a gente corria; quando tinha de conversar, a gente conversava", conta. "A gente fiscalizava sem arma, sem nada, só indo pra cima e não deixando os caras pescar."
"A gente saía feito doido atrás de barco. Era todo dia", lembra Jarian Ribeiro da Silva, de 39 anos, braço direito de Zelinha desde 1996. Mais um que, como ela, chegou ao atol, se apaixonou pelo lugar e nunca mais saiu. Antes, vivia de bicos em Natal, como segurança, pedreiro, marceneiro. Até que seu irmão casou com uma pesquisadora do atol e Zelinha lhe ofereceu um cargo de ajudante, com salário que ela paga do próprio bolso.
Beleza inóspita
A rotina nos primeiros anos era duríssima. Zelinha e Jarian chegavam a passar meses sozinhos no atol, enfrentando os pescadores. A reserva não é aberta a visitação, e as expedições científicas eram esporádicas, pois a infraestrutura era mínima. Nos dois primeiros anos de ocupação havia apenas um acampamento precário, infestado de ratos e escorpiões. Em 1993 inauguraram um pequeno abrigo de dois cômodos, quarto e cozinha, onde Zelinha morou e trabalhou durante 15 anos.
Água doce sempre foi o bem mais precioso, usado a conta-gotas, exclusivamente para alimentação. A comida também precisava ser racionada, pois não havia entrega rotineira de mantimentos. Zelinha e Jarian viviam de doações feitas por barcos de passagem, pela Marinha, ou trazidas por pesquisadores.
"A gente tinha de pedir comida e água para todo mundo", recorda Zelinha, com lágrimas nos olhos. "Tinha dias que a gente só sentava e chorava. Chorávamos escondidos dos pesquisadores, para não mostrar fraqueza."
Sua personalidade forte e luta incansável contra os pescadores rendeu a Zelinha o apelido de "xerife dos mares". Na intimidade, porém, ela revela seu lado mais frágil. "A gente mostrava muita coragem no mar, mas voltava para o atol e as pernas tremiam de tanto medo", lembra ela, com Jarian ao lado. "Criamos esse personagem, incorporamos essa atitude, e assim sobrevivemos."
A solidão era um problema. Até 2008, nunca houve uma linha de comunicação permanente com o continente. O abrigo tinha uma antena de internet via satélite, mas nem sempre um laptop para tirar proveito dela. Sobrava apenas o rádio, para falar com navios e aeronaves de passagem. "Quando encostava um veleiro aqui a gente dava piruetas de alegria, porque era alguém para conversar", lembra Zelinha.
Parceria
As coisas só começaram mesmo a melhorar a partir de 2007, quando a organização SOS Mata Atlântica resolveu expandir suas atividades para o mar e escolheu o Atol das Rocas como primeiro "filho adotivo" de um programa criado para apoiar a gestão de áreas marinhas protegidas no País.
A organização captou R$ 1,7 milhão em doações privadas e criou um fundo (hoje com R$ 2,6 milhões), cujo rendimento líquido será usado para custear as despesas da reserva. Em cima disso, foram levantados R$ 900 mil para pagar a construção de uma nova base, compra de botes, motores, sistema de energia solar, internet, equipamentos, comida e outras necessidades imediatas.
A média de investimento até agora foi de R$ 50 mil por ano, segundo a SOS. As doações são de empresários paulistas, que não querem ter seus nomes divulgados. Como contrapartida, eles têm o direito de visitar o atol uma vez por ano - sob a supervisão de Zelinha, sem exceções.
O suporte é dado em parceria com o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), órgão responsável pelas unidades de conservação federais do País, que continua a bancar, principalmente, o transporte até o atol e os custos administrativos da unidade.
Os dias de penúria e mendicância acabaram. Zelinha e o atol agora têm uma base com 130 metros quadrados de área útil, com três quartos, cozinha ampla (e com geladeira cheia), e decks espaçosos para área de convívio e trabalho. Do lado de fora, dois botes infláveis e três motores. E o mais importante: uma agenda de pesquisa lotada até 2014, com equipes de até cinco cientistas revezando-se na base a cada mês.
"O atol está funcionando de forma exemplar", comemora o empresário Roberto Klabin, presidente da SOS Mata Atlântica.
Quando ele procurou o ICMBio pela primeira vez pedindo a indicação de uma unidade de conservação marinha para "adotar", ofereceram-lhe Fernando de Noronha. Mas não; ele queria um lugar menos complicado, onde a organização pudesse fazer a diferença e produzir resultados reais rapidamente. Apareceu o atol, e ele adotou na hora.

"Passo fome,faço qualquer coisa, mas não saio daqui e não me corrompo" Maurizélia Silva, chefe da reserva biológica

Relação com o Tamar é conflituosa
Chefe da reserva cobra mais apoio e recursos; coordenador nacional do projeto diz que atol não é área prioritária

No livro de fotos Atol das Rocas 3"51'S 33"48'W, lançado em julho (editora BEI), a beleza das paisagens retratadas é 100% natural. Apenas duas imagens precisaram ser alteradas digitalmente, na página 198. Nelas, o logo do Projeto Tamar foi apagado das camisetas da bióloga Alice Grossman e de dois voluntários que aparecem tirando medidas de uma tartaruga-verde no atol. Reflexo invisível de uma relação conturbada vivida entre o renomado projeto de conservação e um dos locais mais importantes de sua história.
Segundo Alice, que é uma das autoras do livro, os logos foram apagados por causa de um "rompimento filosófico" dela com o Tamar. "Tive divergências éticas e ideológicas muito grandes com a instituição", conta.
Alice foi demitida do Tamar em 2009, após oito anos como coordenadora de pesquisa no Atol das Rocas e em Fernando de Noronha. Ela evita entrar em detalhes, mas o "rompimento filosófico" estaria ligado a um suposto abandono do atol por parte do Tamar, agravado por acusações de desvio de recursos por parte da Coordenação Regional do Rio Grande do Norte e Pernambuco (RN/PE). "O recurso está lá, mas não é aplicado onde deveria", afirma Alice. "Achei que era um problema local, mas quando alertei a coordenação nacional eles viraram as costas."
O Projeto Tamar, vinculado ao Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), do Ministério do Meio Ambiente, está ligado ao Atol das Rocas desde a sua fundação, em 1980. O primeiro projeto de marcação de tartarugas-marinhas do Brasil foi feito lá, em 1981. O atol é listado no site do projeto como uma base de pesquisa, apesar de não haver infraestrutura própria nem equipe fixa no local. O trabalho de pesquisa e monitoramento das tartarugas-marinhas é executado pela equipe da Reserva Biológica do Atol das Rocas - uma unidade de conservação do ICMBio.
A chefe da reserva, Maurizélia de Brito Silva, que está lá desde 1991, faz coro com Alice e diz que a base nunca recebeu apoio ou recursos orçamentários de forma sistemática ou transparente do Tamar. Ela conta que chegou a abrir um processo administrativo para descobrir qual era o orçamento do projeto destinado ao atol e o que estava sendo feito com o dinheiro, mas nunca recebeu uma resposta objetiva. "Não foram apresentados os documentos com os valores recebidos como patrocínio da Petrobrás que deveriam ser utilizados nas atividades do Tamar na reserva nem os relatórios financeiros da coordenação regional em relação aos gastos com a base", diz.
Panos quentes
Segundo o coordenador nacional do Projeto Tamar, Guy Marcovaldi, o problema todo deve-se a questões pessoais. Alice, segundo ele, foi demitida pelo então coordenador regional do RN/PE, Claudio Bellini, por uma incompatibilidade pessoal entre os dois. "Isso causou uma distorção enorme sobre tudo", diz Marcovaldi. Bellini é um grande desafeto também de Maurizélia, que é muito próxima de Alice.
Desde então, Bellini deixou a coordenação regional. "Ele continua no Tamar, só não trabalha mais com o atol", diz Marcovaldi. "Foi uma forma de botar panos quentes na situação."
Com relação aos recursos, Marcovaldi diz que o Tamar "não tem obrigação de mandar dinheiro para o atol", e que os repasses tornaram-se desnecessários depois de 2007, quando o ICMBio fechou uma parceria com a SOS Mata Atlântica para ajudar no custeio da reserva. "Conseguimos junto à SOS uma doação muito significativa para o atol e, a partir disso, decidimos que o Tamar não precisava mais enviar recursos para lá."
"O Tamar continua só com as despesas da pesquisa; lembrando que a logística e manutenção é uma obrigação do orçamento oficial da reserva", completa.
Marcovaldi diz que há dois anos não se faz pesquisas com tartarugas no atol porque Maurizélia vetou a presença de pessoas do Tamar na reserva e parou de repassar os dados de monitoramento. Maurizélia continua a coletar os dados de maneira voluntária - como sempre fez -, mas diz que não repassará mais dados enquanto a questão orçamentária não for esclarecida.
"Nunca houve um orçamento específico para o atol; era ela quem demandava e a Alice quem operacionalizava. Ou seja, o orçamento era exatamente o que ela recebia. Como ela não sabe?", questiona Marcovaldi.
O Atol das Rocas é a segunda área mais importante no Brasil para reprodução de tartarugas-verdes, atrás da Ilha de Trindade (ES). Apesar disso, Marcovaldi reconhece que o local não é prioritário para a conservação de tartarugas. "O Tamar dá prioridade para locais que estão sob risco, e o atol é bem protegido pela reserva", diz. Ele destaca que o número de desovas no atol é pequeno: cerca de 350 por ano, comparado a cerca de 3 mil em Trindade, e que a tartaruga-verde é a espécie mais abundante no Brasil.
Nos últimos anos, segundo ele, os esforços na região foram canalizados para a região da Praia de Pipa, identificada como uma importante área de desova de tartarugas-de-pente, espécie mais ameaçada do que a verde.

Maré dita as regras para tudo no recife
Duas vezes por dia, atol se enche de água, depois esvazia; paisagem passa de deserto de sal a um mar de esmeraldas

O Atol das Rocas é um ecossistema em constante transformação, tanto do ponto de vista geológico quanto biológico. Parece nunca descansar, com as cores e formas de sua paisagem mudando a cada clique do relógio. Às vezes parece um deserto de sal, em outras um mar de esmeraldas ou um aquário iluminado por lâmpadas mágicas de néon turquesa. Duas vezes por dia ele se enche de água, depois esvazia, como um pulmão oceânico. E quem não prestar atenção nesse vai e vem pode acabar perdido.
"Esse aqui é o nosso relógio", diz o biólogo Hudson Batista, da Universidade Federal Rural de Pernambuco, apontando para uma folha de papel com a tábua de marés, colada na parede da base científica da reserva, ao lado da cozinha. Seja homem, ave ou tubarão, todos no atol têm de se curvar à vontade das marés. São elas que ditam as regras para tudo; para comer, caminhar, lavar a louça, pesquisar, navegar, acordar ou dormir, entrar ou sair.
O ponto mais alto do atol está apenas 3 metros acima do nível do mar. Na maré alta, as únicas partes que ficam fora d'água são duas ilhas rasteiras: a do Farol, onde está instalada a base de pesquisa, e a do Cemitério, onde pescadores, navegantes e faroleiros do passado costumavam enterrar seus mortos. Na maré baixa, pode-se caminhar quilômetros sobre um manto de areias brancas e mergulhar em piscinas naturais de um azul inacreditável, com vários metros de profundidade, formadas nas bordas mais espessas do platô recifal.
Só cuidado se estiver a pé, para não ser pego sem bote quando a maré subir.
As correntezas são fortes e arrastam areia - e eventualmente mergulhadores - para lá e cá todos os dias, moldando continuamente e metodicamente a morfologia do atol. O farol antigo, quando foi construído uns 80 anos atrás, ficava quase que no centro da ilha, com uma base de 3 metros de altura enterrada na areia. Hoje, suas ruínas estão na linha da praia, praticamente dentro d'água, com a tal base totalmente exposta e forrada de siris avermelhados, chamados aratus, que se mesclam com o tom ferruginoso da estrutura e escalam suas paredes com a agilidade de lagartixas.
A areia foi para outro lado, e os destroços submersos viraram refúgio de polvos e moreias, para infelicidade dos aratus.
A única parte do atol que fica sempre debaixo d'água é uma laguna na parte nordeste do recife, com até 6 metros de profundidade. Ela é conectada ao mar de fora por um cânion submarino cheio de corredores, túneis e cavernas, chamado Barretão, povoado por barracudas e tubarões, que também aproveitam para circular pelo resto do atol quando a maré está cheia. Da porta da base de pesquisa pode-se vê-los facilmente, cruzando como manchas escuras pelo canal de água cristalina que se forma entre as duas ilhas e que dá acesso a um outro cânion, menor, chamado Barretinha.
"Esse atol é muito louco", como gosta de dizer a chefe da reserva, Maurizélia de Brito Silva, em bom sotaque potiguar.
Inspiração. A única coisa imutável em Rocas é a admiração e a paixão que o lugar desperta em todos aqueles que o visitam. "Lembro-me de quando entrei no atol e vi aquela água supertransparente pela primeira vez; foi uma sensação indescritível", conta o oceanógrafo Paulo Oliveira, da Universidade Federal Rural de Pernambuco, que pesquisa tubarões e raias na reserva há mais de 15 anos, desde os tempos de graduação. "Quando pulei do bote e pisei na areia pela primeira vez, foi inevitável, as lágrimas rolaram."
"Trabalhar no atol é um deslumbramento contínuo, com momentos que beiram o conto de fadas", diz a bióloga Alice Grossman, que lá trabalhou por muitos anos com tartarugas-marinhas, pelo Projeto Tamar.
"É um ambiente totalmente único, diferenciado", diz o pesquisador Rodrigo Leão Moura, da Universidade Federal do Rio de Janeiro. "Em que outro lugar do Brasil você vê tubarão da areia, sentado na praia?"
Moura fez seu trabalho de mestrado no atol, entre 1996 e 1998. Na época, as instalações da reserva resumiam-se a barracas, infestadas de ratos e escorpiões, e o equipamento de mergulho de Moura era um compressor de ar de pintura que ele adaptou em casa, conectado a uma mangueira e um respirador bucal.
"Eu levava o compressor no bote, conectava a manqueira e caía na água", lembra ele. O resultado foi o primeiro inventário da biodiversidade de peixes do atol, contendo 47 espécies. Hoje, sabe-se que há mais de cem, com certeza, além de várias outras ainda não catalogadas ou totalmente desconhecidas.
Diferencial. Apesar de a biodiversidade de Rocas ser relativamente pequena, comparada à de outros lugares (tem "apenas" 10 espécies de coral, enquanto que Abrolhos tem 20, por exemplo), o atol proporciona aos cientistas uma oportunidade única de pesquisar biodiversidade e ecologia marinha num ambiente verdadeiramente selvagem, sem poluição e quase que inalterado pelo homem - mesmo com a pressão da pesca e todas as tentativas de ocupar o atol no passado.
"Qualquer pesquisador vai te dizer que ter uma chance de estudar um organismo marinho num ambiente protegido como esse é um luxo", diz Alice.
O atol é especialmente ótimo para o estudo dos hábitos reprodutivos da tartaruga-verde, uma espécie que só desova em ilhas oceânicas. As águas rasas, protegidas e transparentes do interior do recife permitem observar os rituais de cópula com proximidade e nitidez inigualáveis. Também é possível coletar dados preciosos sobre jovens e machos; algo dificílimo de se fazer em outras condições, já que eles normalmente ficam em águas abertas e apenas as fêmeas adultas sobem às praias para desovar.
"É quase como um laboratório", diz a diretora técnica nacional do Tamar, Neca Marcovaldi. "Não é um lugar fácil de chegar nem de ficar, mas quando você chega lá as condições de pesquisa são únicas."
Fora da água, Rocas não perde a importância. O atol compõe, junto a Fernando de Noronha, o maior centro de reprodução de aves marinhas do Atlântico Sul.
Há cinco espécies residentes (uma de trinta-réis, duas de viuvinhas e duas de atobás), além de 25 itinerantes. E não há como não notá-las. Quem manda nas ilhas do atol são elas. Os trinta-réis e as viuvinhas-marrons, que são os mais numerosos, falam sem parar, ocupam cada metro quadrado de areia ao redor da base de pesquisa, e adoram voar pertinho de nossas cabeças, como se fossem pousar nelas, toda vez que saímos para caminhar. As varandas da casa tiveram de ser revestidas com redes, para não serem dominadas por elas.
"A sensação aqui é que a gente é que está numa gaiola", diz Leandra Gonçalves, coordenadora do Programa Costa Atlântica da SOS Mata Atlântica - que pagou pela base. "O ambiente é delas. Claramente, nós é que somos os invasores."
Todos concordam: esse atol é mesmo muito louco.

Estrutura do atol é 100% biológica
Recife incrustado no topo de uma montanha de 4 mil metros foi todo construído por algas e outros organismos vivos

A formação do Atol das Rocas é uma história que exige no mínimo três disciplinas para ser contada: geologia, oceanografia e biologia. O atol fica no topo de um monte submarino de origem vulcânica, de aproximadamente 4 mil metros de altitude (mil metros a mais que o Pico da Neblina, a montanha mais alta do Brasil na superfície). Mas sua estrutura não é vulcânica. Tudo que se vê e se toca em Rocas é de origem biogênica, construído por organismos vivos.
O atol é essencialmente um recife circular que começou a se formar mais de 5 mil anos atrás, crescendo como uma coroa ao redor do pico da montanha, que hoje está 25 metros abaixo da superfície, segundo o pesquisador Ruy Kikuchi, do Instituto de Geociências da Universidade Federal da Bahia. "Para crescer até atingir o nível do mar, deve ter levado cerca de 4 mil anos. E para tomar o formato de anel fechado, mais uns mil anos", estima ele, com base em amostras de sedimento extraídas do interior do atol.
Os principais responsáveis pela construção do recife, curiosamente, não foram os tradicionais corais, que são minoria em Rocas. Cerca de 70% da obra foi realizada por algas coralinas incrustantes, que têm a mesma capacidade para precipitar carbonato de cálcio da água do mar.
O atol, nesse sentido, pode ser visto como uma grande comunidade rígida de algas coralinas em forma de estádio de futebol, dentro e ao redor da qual vivem outros organismos marinhos.
A área do atol é de 5,5 km², suficiente para acomodar cerca de 70 Maracanãs. Ainda assim, é um dos menores atóis do mundo, e o único do Atlântico Sul. "Poucos montes submarinos estiveram em profundidade ideal para acumular carbonato de cálcio tempo suficiente para formar um anel recifal no entorno de elevações", explica Kikuchi.
A cadeia de montanhas submersas à qual ele pertence estende-se numa linha oeste-leste desde a costa do Ceará até Fernando de Noronha, que é o topo emerso do último monte - e que poderá, também, se transformar em um atol no futuro, com mais alguns milhares de anos de erosão e subsidência, processo pelo qual o assoalho oceânico "afunda" à medida que resfria e fica mais pesado, puxando o topo das montanhas oceânicas para baixo. "Rocas pode ser o amanhã de Noronha", avisa Kikuchi.
Milhões de anos atrás, quando o nível do mar chegou a estar mais de cem metros abaixo do nível atual, o topo da montanha de Rocas estava na superfície e é possível que ele tenha sido um vulcão ativo - como foi Fernando de Noronha. Mas não há evidências disponíveis para determinar isso por enquanto.
"Ninguém tem amostras dessa rocha vulcânica de Rocas", diz o geólogo marinho Natan Pereira, da Universidade Federal de Pernambuco, que produziu um mapa geomorfológico do atol para seu trabalho de mestrado. Em Noronha, elas estão expostas na superfície. Em Rocas, estão enterradas no substrato marinho.
Mais a fundo. Também há muita biodiversidade "escondida" do lado de fora do anel recifal de Rocas. Talvez até mais.
Um grupo de pesquisadores está mapeando a superfície do platô que se estende a leste e oeste do atol, em profundidades de até cem metros. Resultados das primeiras expedições, iniciadas em 2011, já revelam a presença de muitos recifes coralíneos. "A cobertura de corais na área funda é bem maior que no raso", diz o pesquisador Rodrigo Leão Moura, da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Também foram detectados bancos de rodolitos - esferas de algas coralinas que podem ser "coladas" umas nas outras por esponjas, dando origem a estruturas recifais maiores que podem ser importantes na geomorfologia do atol.

Sumiço de raias intriga cientistas
População teve redução inexplicada nos últimos anos; isolamento do atol torna espécies residentes mais vulneráveis

A abundância de tubarões e raias sempre foi um dos principais atrativos da biodiversidade do Atol das Rocas, tanto pelo fascínio quanto pelo medo que esses grandes peixes cartilaginosos - chamados elasmobrânquios - inspiram no imaginário popular. Ambos podem ser vistos com facilidade nas águas rasas e cristalinas da reserva, tanto na área interna quanto do lado de fora do anel recifal. Ou pelo menos podiam, até recentemente.
Nos cinco dias que passamos mergulhando em diferentes pontos do atol, no início deste mês, não vimos nenhuma raia. E não foi por falta de atenção, segundo o oceanógrafo Paulo Oliveira, do Departamento de Pesca da Universidade Federal Rural de Pernambuco. Um trabalho publicado em 2008 estimou que havia cerca de cem raias-prego (Dasyatis americana) vivendo no atol. Desde então, segundo ele, as raias vêm "desaparecendo" da reserva, por razões desconhecidas. "É uma preocupação nossa", diz o pesquisador. "Estamos bolando algumas hipóteses para tentar explicar isso."
A primeira possibilidade que vem à mente é a pesca. Mas Oliveira acredita que não seja o caso, considerando que nos últimos anos a pesca ilegal foi quase que erradicada da reserva.
Uma possibilidade, segundo ele, é que a população de raias residentes da reserva tenha "empobrecido" geneticamente ao longo do tempo, por falta de conectividade com outras populações. O Atol das Rocas é um hábitat excelente, porém isolado no topo de uma montanha submarina, rodeada por extensas planícies com milhares de metros de profundidade. Uma barreira natural à dispersão das raias-prego, que vivem associadas ao substrato de águas rasas.
"Como não há indivíduos de outras populações chegando, a variabilidade genética da população diminui e a taxa de mortalidade natural acaba superando a de natalidade", diz Oliveira, que planeja coletar amostras para estudos genéticos em sua próxima expedição ao atol - se encontrar raias suficientes para isso.
Uma hipótese mais animadora é que seja uma oscilação populacional natural, relacionada a algum tipo de comportamento das raias. Sem dados históricos, porém, não há como saber isso.
Tubarões. O número de tubarões na reserva também parece estar diminuindo, "mas não em nível preocupante como o das raias", segundo Oliveira. Uma observação corroborada por pescadores e velejadores de longa data do atol. Também nesse caso, o isolamento geográfico pode se tornar uma ameaça.
As duas espécies mais comuns do atol são o tubarão-limão e o tubarão-lixa, ambas residentes, que passam todo o seu ciclo de vida associados aos ecossistemas recifais do atol. "São populações exclusivas da reserva. Se a gente mexer com elas, não virão mais tubarões de outros locais para repovoá-la", alerta Oliveira. "Isso as torna muito mais vulneráveis à extinção."
No inverno, os tubarões-lixa predominam no interior do atol, que serve como um berçário perfeito. Circulam pelas águas transparentes do areal central durante a maré alta e entocando-se nas piscinas naturais de suas bordas durante a maré baixa.
No verão, é a vez do tubarão-limão, cujos filhotes vêm se refugiar nas praias para escapar dos próprios pais. A espécie não tem hábitos de cuidado parental. O filhote que der bobeira pode acabar sendo devorado por um adulto. "O tubarão nasce e já nada para longe da mãe", diz Oliveira.
Sorte dos pesquisadores, que nem precisam ir atrás dos tubarões. Basta esperar na praia que os tubarões vêm até eles.

OESP, 26/09/2012, Planeta, p. H1 a H5

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