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Relatos de um massacre

A Crítica - http://www.acritica.com/
Autor: Leandro Prazeres
30 de Set de 2010

Abertura da Transamazônica afetou a vida de milhares de índios

A viagem seguia normalmente apesar dos barrancos e das valas no leito da estrada que impediam que nossa velocidade ultrapassasse 50 quilômetros por hora. Só a poeira é mais constante que o calor nessa época do ano. De repente, uma cancela de madeira interrompe o trajeto. Desde 2006, os índios Tenharim instituíram um pedágio clandestino, a 145 quilômetros de Humaitá, aos motoristas que precisam atravessar suas terras para seguir pela Transamazônica. Uma cobrança que mais parece vingança.

- Era um barulho muito grande. Parecia trovão. Os pássaros saíram voando e a gente corria pra todo lado com medo. Muita gente se escondeu na mata e nunca mais voltou. Apareceu um negócio enorme e amarelo derrubando as árvores. Nunca mais nosso povo foi o mesmo. - diz Manoel João Tenharim, 87, índio que viu suas terras serem cortadas ao meio pela abertura da Transamazônica nos anos 70.

De acordo com a Funai, em 1970, quando as obras da rodovia começaram, havia 29 tribos na região que seria cortada por ela. Doze delas eram isoladas. Mesmo tendo contato com o homem branco há algum tempo (seringueiros freqüentavam as terras dos índios em busca de látex), o povo Tenharim foi um dos mais prejudicados. De uma população estimada em cerca de três mil pessoas, hoje não passam de 700.

- Foi sarampo, catapora, diarreia e gripe. Junto com a estrada, veio um monte de doenças que os índios não conheciam. Morreu muita gente - conta Valmir Parintintin, índio que hoje é coordenador regional da Funai em Humaitá.

Cemitérios
Os males trazidos pela Transamazônica são muito claros para os índios mais velhos.

- Antes da estrada, a gente só morria de velhice. Depois da pepukuhu (estrada, em tupi-guarani), morreu muito parente. Antes, a gente só tinha um cemitério. Agora, tem bem uns cinco espalhados por aí - lembra Manoel João apontando para um descampado na margem direita da rodovia.

Hoje, a situação dos tenharim parece ter se estabilizado.

- A demarcação das terras indígenas, no final dos anos 1980, ajudou a frear o processo de extinção dos tenharim. Um dos problemas que a gente observou é que as aldeias, que antes se localizavam ao longo dos rios, agora estão às margens da Transamazônica, afinal, é por ela que circula o dinheiro - diz o antropólogo Edmundo Peggion, que estudou a etnia durante mais de 10 anos.

Polêmica
O início da cobrança do pedágio mudou a forma como os índios são vistos na região. De vítimas de um massacre, passaram a "algozes".
- Isso aqui é uma rodovia federal. Esses índios são uns bandidos, isso sim! - vocifera o caminhoneiro Enio de Bona, 39.

Pacientes, os índios não dão importância à reação. Sabem que só a Polícia Federal ou a Funai podem impedir a cobrança do pedágio, que entre eles é chamada, não sem algum eufemismo, de "compensação".

- É uma forma de compensar os prejuízos causados pela estrada. Os carros afastam a caça e os motoristas vivem jogando lixo pelas janelas - diz Valmir.

A compensação é assunto proibido nas conversas entre tenharins e "brancos". Estima-se que eles arrecadem R$ 60 mil por mês. O dinheiro é usado para o pagamento de médicos, passagens, comida e roupas. E roupa de marca é o que não falta aos tenharins. Durante o Mbotava(lê-se motaua), festa tradicional dos tenharim, os mais jovens mesclam pinturas feitas com extrato de urucu, cocares de penas de pássaros e tênis da Adidas e da Nike.

- Foi o branco que ensinou o que era dinheiro para os índios. Por que nós não vamos querer dinheiro ? - indaga Manoel João Tenharim.

http://www.acritica.com/especiais/Relatos-massacre_0_343165851.html

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