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Quem é Bruce Albert, antropólogo francês que divulga o pensamento ianomâmi entre os brancos

O Globo - https://oglobo.globo.com/cultura/livros/noticia/2023/04
05 de Abr de 2023

Quem é Bruce Albert, antropólogo francês que divulga o pensamento ianomâmi entre os brancos
'Estamos no último capítulo da colonização', alerta o parceiro intelectual do xamã Davi Kopenawa

Por Ruan de Sousa Gabriel - São Paulo
05/04/2023

"As coisas andam mal desde 2015, quando o preço do ouro começou a subir. A vida dos ianomâmis é indexada ao preço do ouro", alerta Bruce Albert Reprodução
"São essas as palavras que eu quero transmitir. Você pode desenhá-las e dá-las aos outros brancos." O antropólogo francês Bruce Albert ouviu este desejo do xamã ianomâmi Davi Kopenawa - e tem se esforçado para cumpri-lo. Em 2010, publicou, com Kopenawa, "A queda do céu", relato cujo objetivo é alertar "o povo da mercadoria" a parar a destruição da floresta antes que o firmamento desabe sobre nós. O apelo se repete em "O espírito da floresta", recém-lançada coletânea de textos de Kopenawa e Albert, originalmente escritos para exposições realizadas em Paris pela Fundação Cartier. Os R$ 90 mil arrecadados pela Companhia das Letras com a pré-venda do livro serão doados aos ianomâmis.
Albert convive com eles desde os anos 1970. Assistiu à sucessão de epidemias e invasões de garimpeiros que provocaram tragédias humanitárias como a que se desenrola atualmente em Roraima. Também participou da luta pela demarcação do território ianomâmi, em 1992.
Em entrevista ao GLOBO, ele explica como aprendeu a conciliar as lutas e os conhecimentos dos povos originários com a antropologia aprendida na França e como pretende continuar cumprindo o mandato recebido de Kopenawa. E faz um alerta: "Os ianomâmis somos nós amanhã."
"O espírito da floresta" mostra como o território ianomâmi é devastado por epidemias e invasões há um século. Por que a tragédia se repete?
Porque estamos no último capítulo da colonização e da corrida do ouro, que começou no século XVI. A Terra Yanomami é a última fronteira livre do Brasil. A construção da Transamazônica e da Perimetral Norte, o Programa Calha Norte e as sucessivas invasões de garimpeiros fazem parte dessas tentativas de colonização. O Exército brasileiro tem alergia a indígenas em áreas de fronteira. Essa ideologia retrógrada sustenta os assaltos aos ianomâmis. Bolsonaro é obcecado por essa questão. Apresentou um projeto para revogar a demarcação da Terra Yanomami em 1992.
A crise atual é diferente das anteriores?
As coisas andam mal desde 2015, quando o preço do ouro começou a subir. A vida dos ianomâmis é indexada ao preço do ouro. Denunciamos o retorno dos garimpeiros, mas nada foi feito. E o governo Bolsonaro piorou tudo, cometeu genocídio por omissão ao não dar condições para os ianomâmis sobreviverem. Deixou os garimpeiros entrarem e desestruturou o sistema de saúde. A situação atual é pior do que nos anos 1980, quando o garimpo começou. Agora não há só garimpeiros, mas também empresas de mineração piratas com muito mais meios técnicos e financeiros.
Como avalia as medidas tomadas pelo governo Lula para aliviar a crise?
As medidas são acertadas. O que preocupa é o tamanho do problema. Na Guiana Francesa, o governo gasta € 70 milhões por ano tentando expulsar 12 mil garimpeiros brasileiros e não consegue. Imagine em Roraima, onde a classe política é toda pró-garimpo e o Exército faz corpo mole! Retirar os garimpeiros é o primeiro passo. Depois, é preciso reestruturar o sistema de saúde indígena. Há gente muito corajosa trabalhando lá: do Ibama, da Funai, da Polícia Federal, as equipes de saúde. Os ianomâmis souberam aproveitar os momentos políticos mais calmos para preparar a nova geração para a luta.
Como é a nova geração ianomâmi?
Os ianomâmis têm duas características definidoras: o senso de humor e a extraordinária capacidade de adaptação. Eles resistem a tudo, nunca se queixam e estão sempre fazendo piada. Isso vem dos tempos antigos. Há milhares de anos, eles viviam nas montanhas entre os rios Orinoco e Amazonas. Depois, desceram para as terras baixas e recauchutaram todo o seu conhecimento botânico e arquitetônico, os rituais, os mitos, tudo. Eles se adaptam a qualquer situação histórica. Conheço os ianomâmis há 50 anos. Eles levaram as pancadas mais terríveis, mas se reergueram todas as vezes.
No livro, você diz: "O destino funesto que até o presente reservamos aos povos indígenas não terá sido mais do que uma prefiguração do destino que hoje infligimos a nós mesmos, desta vez em escala planetária." Como a tragédia ianomâmi antecipa nosso próprio futuro?
A resposta está no relatório do IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas, que afirmou que o aquecimento do planeta deve exceder 1,5o C). A bomba epidemiológica e ecológica que lançamos no território ianomâmi é um modelo reduzido do que estamos impondo ao planeta. Durante a Covid, me lembrava das histórias que os mais velhos me contavam nos anos 1970 sobre as primeiras epidemias. Eram doenças novas, não havia cura, o xamã não sabia o que fazer, os remédios da floresta não serviam. Os ianomâmis somos nós amanhã.
"A queda do céu" foi escrita com o objetivo de alertar os brancos disso, não?
Davi sabe que o conhecimento ianomâmi não ia entrar na cabeça dos brancos se não estivesse escrito. Por isso, me propôs escrevermos "A queda do céu". Para os ianomâmis, a floresta é um multiverso habitado por diversos povos vivos que interagem em pé de igualdade, creditados da mesma intencionalidade, subjetividade e intencionalidade. É um mundo que está para além do supremacismo humano, que tem raízes profundas na nossa cultura e hierarquiza os seres vivos, colocando os humanos no topo, acima dos animais e das plantas. Essa hierarquia arrasou com o mundo, produziu a crise ecológica. Hoje, nos damos conta de que a sabedoria indígena não é folclore, poesia ou metáfora. É conhecimento. Nossa ciência vem comprovando o que esses povos já sabem há milênios, mas só começamos a prestar atenção no que eles dizem por causa da crise ecológica.
Quando você se converteu ao pensamento indígena?
Tive uma formação clássica na universidade francesa, mas sempre militei politicamente. Sou da geração de maio de 68. Cheguei à Terra Yanomami em 1975. Um professor viu que eu estava inquieto, querendo ir a campo, e me indicou para um projeto da UnB e da Funai. Ao mesmo tempo em que eu fazia doutorado, aprendia a dar injeção e ia resgatar meninas ianomâmis de prostíbulos. Mas a antropologia não interferia no engajamento, e vice-versa. Foi Davi quem me mostrou que a escrita etnográfica não podia ignorar a luta em que eu estava envolvido. De certa forma, eu já estava predisposto a essa revolução. Quando defendi minha tese, que tinha 830 páginas, reclamaram que havia muitas citações de ianomâmis. Tinha dificuldade de encaixar tantas vozes, que me ensinaram tudo o que eu sabia, dentro do modelo de escrita antropológica. Até que não deu mais e veio "A queda do céu". O que me guia é o desejo de restituir a palavra dos ianomâmis.
Como você pretende continuar espalhando a palavra ianomâmi aos brancos?
Estou escrevendo um livro sobre a mitologia ianomâmi. Quando cheguei à Terra Yanomami, não sabia o que era uma rede! Depois de uns meses, um ancião percebeu que eu ia ficar por lá e passou a me dar aula de mitologia, começando pelo mito de origem dos brancos. Ele quis me educar, fazer de mim um ser humano mais decente. O nome dele era Ikahí, que quer dizer "árvore do riso". Quero repassar o conhecimento que ele me deu. Não quero morrer com minhas gavetas cheias de palavras ianomâmis. Vou transmiti-las aos brancos porque este foi o mandato que me deram.

Capa de "O espírito da floresta", de Bruce Albert e Davi Kopenawa - Foto: Reprodução
Serviço:
'O espírito da floresta'
Autores: Bruce Albert e Davi Kopenawa. Tradução: Rosa Freire d'Aguiar. Editora: Companhia das Letras. Páginas: 232. Preço: R$ 59,90.

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