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Projeto de Ciro fracassa no Ceara

CB, Brasil, p.17
06 de Mar de 2005

Canal do trabalhador não consegue sequer abastecer os assentados nos arredores nos arredores de Fortaleza, mas foi considerada pelo então governador do estado, hoje ministro da Integração, a obra do século
Projeto de Ciro fracassa no Ceará
Bernardino Furtado
Enviado especial
Fortaleza - Executor e principal propagandista do projeto de transposição das águas do rio São Francisco para o Nordeste Setentrional (Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba e Pernambuco), o ministro da Integração Nacional, Ciro Gomes, tem experiência no ramo. Numa única frase, ele expressou o orgulho de ter realizado uma obra semelhante, embora de dimensões muito inferiores. Está gravada numa placa, de maio de 1994, na extremidade do Canal do Trabalhador em Pacajus, a 50 quilômetros de Fortaleza: "Aqui 5 mil cearenses construíram a obra do Século". Ao lado da placa, um grosso tubo de borracha pendente sobre o canal teima em desmentir o governador do Ceará, hoje ministro. De quando em quando, a supermangueira despeja água bombeada do açude de Pacajus, para que o canal não fique completamente seco. É exatamente o inverso do resultado que a "obra do século" deveria produzir.
Com 110 quilômetros de extensão e capacidade para transportar 5 metros cúbicos de água por segundo, equivalentes a 70% do consumo da Região Metropolitana de Fortaleza, o Canal do Trabalhador nem serve para encher o complexo de açudes que abastecem casas, indústrias, restaurantes e hotéis da orla, nem para irrigar lavouras no semi-árido próximo da capital cearense.
Vida curta
É a transposição que já foi feita e não deu certo. Ou melhor, teve vida curta. Dúrante'sete meses, evitou um colapso no abastecimento da Região Metropolitana de Fortaleza. A volta das chuvas encheu os açudes e tornou desnecessário o bombeamento de água para o canal. Posteriormente, a construção de novas barragens interligadas "aposentou" de vez a transposição realizada por Ciro Gomes. Restou a promessa, feita pelo então governador, de irrigar 40 mil hectares nas margens do canal. 0 plano não foi cumprido. A irrigação restringe-se a uma fazenda particular e a uma área de cajueiros da estatal Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa).
Na principal virtude do Canal do Trabalhador residem também todos os seus equívocos. O professor Itabaraci Nazareno Cavalcanti, do Departamento de Geologia da Universidade Federal do Ceará (UFC), diz que o governo de Ciro Gomes, iniciado em janeiro de 1991, foi fartamente alertado do risco de desabastecimento da Região Metropolitana de Fortaleza. Integrantes do governo estadual, no entanto, preferiram emitir avaliações otimistas, à espera da colaboração de São Pedro, que não veio a tempo. "Os técnicos da área sabiam que os reservatórios de Fortaleza estavam com apenas 5% de sua capacidade, mas funcionários do governo divulgavam que o índice era de confortáveis 20%", diz Cavalcanti.
Mais barata
A construção de novos açudes interligados era uma alternativa mais barata e duradoura, como se verificou mais tarde, segundo o professor da UFC. No entanto, quando o governo Ciro resolveu agir, em meados de 1993, a construção do canal tornou-se a única solução factível a curto prazo. "A obra talvez fosse viável, mas com um projeto de engenharia melhor estudado", diz Cavalcanti.
0 ministro Ciro Gomes, por intermédio de seu assessor de Imprensa, Egydio Serpa, disse que o Canal do Trabalhador cumpriu sua função emergencial e tornou-se um reforço a ser utilizado na hipótese de uma nova crise na oferta de água para a Região Metropolitana de Fortaleza. Segundo o assessor, o governo estadual está recuperando trechos de tubulação, conhecidos como sifões.

Engenharia vistosa, porém inútil
A transposição do rio São Francisco vem sendo apresentada pelo governo federal, ao preço de US$ 1,5 bilhão, como uma obra capaz de criar novos pólos de desenvolvimeiito baseados na irrigação e garantir água para a população das cidades e do campo, mesmo nas secas mais rigorosas. A obra teria o condão de romper com o assistencialismo representado pela distribuição de cestas básicas, pelas frentes de emergência e o vaivém dos carros-pipa. As imediações do Canal do Trabalhador mostram que não basta uma vistosa obra de engenharia para operar essa revolução. Criado pelo governo do Ceará em 1996, o assentamento Fazenda do Murici não tem um palmo quadrado de lavoura irrigada, embora esteja na beira do canal.
A presidente da associação das 30 famílias assentadas na Fazenda Murici, Raimunda Domingas Mota Santos, a Dominguinhas, diz que o único benefício proporcionado pelo canal é o abastecimento de água, por meio de bomba e caixa d'água. Dá para tomar banho, lavar louça e cuidar dos animais. Segundo ela, por falta de um sistema simplificado de tratamento, a água bombeada do canal não pode ser consumida. "Não dá para beber dessa água contaminada de lodo e de animais mortos", afirma. A água potável veio com uma solução mais simples e barata. As cisternas que captam água da chuva, construídas no começo de 2003 pelo governo federal, ainda têm reservado "inverno" passado. 0 suprimento, contudo, está ameaçado. Este ano, choveu muito pouco em janeiro e nada em fevereiro, segundo a agricultora.
Sem crédito
0 que mais incomoda Dominguinhas, no entanto, é a falta de crédito para a produção dos assentados. Segundo ela, todas as lavouras têm sido feitas, ano após ano, com recursos dos próprios agricultores. "Nunca conseguimos aprovar um projeto no Banco do Nordeste", reclama.
Na outra margem do Canal do Trabalhador, no Assentamento Nova Esperança, implantado pelo governo federal em dezembro de 2002, nem sequer o luxo da água na torneira chegou. Não há eletricidade. A saída é descer por uma escada encostada na parede do canal, subir equilibrando o peso do balde e transportar a água em uma carroça ou carrinho de mão. A margem do canal fica a um quilômetro das duas fileiras de casas do assentamento. A água potável também depende do estoque das cisternas patrocinadas pela Febraban, a entidade que congrega os bancos brasileiros.
Maria Eliete da Silva, presidente da associação dos assentados do Nova Esperança, diz que a falta de água e de energia elétrica impede o progresso do assentamento. Segundo ela, projetos de uma fábrica de ração e outra de castanha de caju estão prontos para aprovação de financiamento no Banco do Nordeste do Brasil (BNB). "Temos 570 hectares de cajueiros adultos, mas as fábricas precisam de água e de energia elétrica para funcionar", explica.

Tobogã assoreado
A necessidade de recuperação dos sifões de Umburanas e Pirangi, onze anos depois da inauguração do Canal do Trabalhador, é um exemplo do prejuízo financeiro provocado pelas falhas de projeto que caracterizaram a transposição de Ciro Gomes. Os sifões são trechos de tubulação de ferro que substituem o canal, para vencer, sem bombeamento, depressões naturais do terreno. A assessoria do ministro alega que a "vida útil" dos tubos é de dez anos e por isso estão sendo substituídos. Técnicos que trabalham na recuperação dos sifões, no entanto, dizem que os tubos foram destruídos pela corrosão porque estavam instalados diretamente sobre o solo. Agora, estão sendo construídas bases de concreto para que a tubulação fique suspensa.
Graças ao rótulo de obra emergencial, o Canal do Trabalhador foi contratado por meio de uma tomada de preços em rito sumário, no lugar da obrigatória e recomendável licitação para um empreendimento que custou R$ 48 milhões, em 1994, quando o real valia mais do que um dólar. 0 governo federal pagou 40% da obra. 0 governo cearense alegou, na época, que o risco de faltar água em Fortaleza era imediato e não era razoável cumprir os 120 dias de prazo legal entre o lançamento do edital e o julgamento da concorrência. D
A conseqüência da falta de planejamento está descrita num relatório de Aldo Rebouças, professor da Universidade de São Paulo (USP), contratado como consultor pelo governo cearense por indicação do Banco Mundial (Bird), há cerca de um ano. Rebouças diz que o documento pertence ao governo do Ceará, por isso não pode comentá-lo. Sabe-se, contudo, que o consultor descreve a transposição de Ciro Gomes como um tobogã, formado por assoreamentos e afundamentos do leito do canal, com perda considerável de eficácia na condução da água.

CB, 06/03/2005, p. 17

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