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Por uma nova civilizacao

CB, Brasil, p.19
18 de Abr de 2004

GUERRA E PAZ
Ministério da Cultura lança projeto de aldeias para preservar tradições indígenas e permitir acesso a tecnologias
Por uma nova civilização
EUMANO SILVA
ENVIADO ESPECIAL À RESERVA MERURI
O governo brasileiro quer resolver um problema sem solução no mundo. Depois de séculos de relações sangrentas, a imposição da cultura dos colonizadores sacrificou civilizações indígenas espalhadas pelo planeta e provocou chacinas como a de Rondônia. Na última quinta-feira o ministro da Cultura, Gilberto Gil, esteve na reserva Meruri, no Mato Grosso, para o lançamento de um projeto feito para tentar resgatar tradições e conhecimentos perdidos pela etnia bororo, uma das vítimas do confronto. Os resultados da iniciativa vão definir a grau de eficiência da política do presidente Luiz Inácio Lula da Silva para essa pendência histórica.
Nenhum país do mundo moderno encontrou a fórmula adequada para a convivência entre oprimidos e opressores. "Precisamos todos juntos trabalhar para a construção de uma nova civilização brasileira, fazer a conciliação harmônica da tradição com a modernidade", afirmou o ministro durante encontro com várias etnias indígenas na reserva Meruri.
A iniciativa do projeto partiu dos bororo, um povo que esteve em vias de extinção no século passado. Hoje são cerca de 1.100 indivíduos distribuidos em seis reservas. Durante mais de cem anos, sofrem as conseqüências da ocupação das terras de Mato Grosso por fazendeiros e as influências da Igreja Católica, representada na área por uma missão salesiana.
A interferência dos colonizadores descaracterizou os bororo. Hoje moram em casas de alvenaria construídas pelos salesianos, têm acesso a telefone e televisão. Ao mesmo tempo, as crianças deixam de falar a língua e praticar as tradições dos pais. A intenção do projeto é conciliar as duas coisas.
A idéia de resgatar as tradições em vias de extinção chegou a Gilberto Gil pelo líder bororo Paulo Miriecuréu. "0 progresso chega rapidamente e nosso povo não percebe que nossa cultura está se acabando", afirma o representante indígena.
O projeto tem a parceria Organização Não Governamental Instituto das Tradições Indígenas (Ideti), com sede em São Paulo. Recebeu o nome de Meri Ore Eda, expressão que significa Morada dos Filhos do Sol, e prevê a construção de uma aldeia tradicional do povo bororo, com localização específica para cada um dos oito clãs da etnia.

Oficinas culturais
Pelo planejamento, serão oito casas, construídas em círculo, com cobertura e paredes de palha trançada, cada uma com 80 metros quadrados, para a realização de oficinas de resgate dos costumes. Inclui cursos oferecidos pelos mais antigos para preservar elementos como língua, conhecimentos e plantas medicinais, técnicas de tecelagem, artesanato, cantos, danças e rituais.
Um centro cultural de 650 metros quadrados vai guardar o acervo de livros, fotos, vídeos, documentos e objetos para realização de exposições, palestras, mostras de vídeo e venda d e artesanato. A nova comunidade indígena terá computadores e acesso à internet.
Fora do círculo das casas tradicionais, serão construídas cinco residências típicas adaptadas com energia, água, saneamento e localizadas de acordo com os costumes. Em cada uma vai morar uma família Bororo. No total, cerca de cinqüenta pessoas escolhidas nas aldeias atuais. Outra réplica da aldeia servirá para hospedar turistas e visitantes.
O projeto vai estimular também atividades como piscicultura, apicultura, plantio de lavoura comunitária e criação de pequenos animais destinadas a criar condições de sustentação econômica para a comunidade. 0 custo total do projeto é R$ 3,5 milhões, dinheiro a ser obtido da iniciativa privada com base nos incentivos fiscais previstos pela Lei Rouanet. 0 objetivo do governo é, no futuro, estender o programa para outras aldeias e etnias.
0 encontro de Gilberto Gil com a Nação Bororo aconteceu numa clareira aberta no cerrado mato grossense, local onde será construída a nova aldeia.
Na cerimônia, integrantes da comunidade indígena e fãs da região assediaram o ministro cantor.
No discurso feito debaixo de sol, pouco depois do.., meio-dia, Gil pediu ampla participação da sociedade brasileira na implantação do projeto. Falou com a autoridade de quem faz parte da comunidade negra, também vítima da ação dos colonizadores. "O assunto não deve ser tratado como quem cobra.uma dívida antiga, recebe e vai embora. Governo, empresários, academia, ativistas políticos e, principalmente, o povo indígena, têm a obrigação de trabalhar por essa nova civilização brasileira, feita de brancos, negros, indígenas e mestiços", afirmou.
A proposta do ministro tem o apoio do governo do estado e da missão salesiana, instituições que contribuíram para a descaracterização cultural,, dos bororo. "Há cem anos, quando chegamos aqui, ninguém se preocupava com as tradições dos povos indígenas. Isso começou na década de 1960. Agora, queremos participar desse resgate cultural", anunciou o padre colombiano Gonçalo Ochoa, há 44 anos na área.

Ritual para os mortos
Uma das características mais marcantes do povo bororo se refere aos rituais fúnebres. Quando uma pessoa morre, o corpo passa por uma série de cerimônias que duram de dois a três meses. Essa tradição resistiu ao contato com os colonizadores.
O primeiro passo do funeral é o enterro do morto, envolvido em esteiras, no centro da aldeia. Diariamente, a cova é regada para a decomposição do corpo. Depois, os ossos são retirados, limpos e ornamentados antes de voltarem para debaixo da terra.
Entre os dois enterros acontecem vários rituais de iniciação e socialização. 0 momento mais importante ocorre quando os integrantes a comunidade caçam um felino. 0 corpo é entregue para a família do morto e o luto chega ao fim. A caçada significa a vingança dos bororo contra o bope, um espírito presente no nascimento, puberdade e morte do indivíduo, segundo as tradições.
Os primeiros contatos dos brancos com os bororo foi no século XVIII, quando bandeirantes chegaram na região em busca de ouro.
Na época, os integrantes da etnia se espalhavam pelo Brasil onde hoje ficam os estados de Mato Grosso, Goiás e Minas Gerais. Hoje, vivem quase todos nas proximidades da reserva Meruri.
Na época, eram cerca de 5 mil indivíduos. No século passado, eram pouco mais de 700. Voltaram a crescer e hoje não correm mais risco de extinção. O assassinato em 1976 do padre salesiano Rodolfo Lunkenbein chamou a atenção do mundo e o governo brasileiro demarcou a área que ocupam hoje.

Repatriação
O empenho de uma pesquisadora brasileira, Aivone Carvalho permitiu aos bororo trazer de volta para o Brasil 14 objetos levados para museus da Itália em 1910. Hoje, são as peças mais importantes de um pequeno museu criado por Aivone dentro das dependências da missão salesiana. São ornamentos de ossos, sementes e palha que não existiam mais no Brasil. Trata-se de um caso inédito de repatriação de objetos indígenas em poder de outros países.

HISTÓRIA DAS CHACINAS
A chegada dos europeus destruiu sociedades indígenas na América e na Oceania
Austrália - Depois de dois séculos de matanças, em 1992 a Corte Suprema reconheceu direitos dos aborígenes sobre as terras que ocupavam antes da colonização. Metade das comunidades vivem abaixo da linha de pobreza.
Estados Unidos - Mais de 200 povos desapareceram em cinco séculos de extermínio. Um milhão de indígenas foram mortos entre 1776 e 1865. Ainda hoje, os descendentes lutam pelos direitos perdidos.
Canadá - 0 governo pediu desculpas à sociedade pelos danos causados a indígenas, Inuits (esquimós) e outros povos aborígenes. Hoje, são 1,2 milhão de pessoas no país.
O Peru - Em 1969, dez milhões de hectares de terras foram entregues aos camponeses, em grande maioria indígenas. Em pouco tempo, as elites começaram desfazer a reforma agrária.

CB, 18/04/2004, p. 19

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