VOLTAR

Por que discutir estresse de vaga-lume?

OESP, Espaço Aberto, p. A2
Autor: NOVAES, Washington
03 de Fev de 2006

Por que discutir estresse de vaga-lume?

Washington Novaes

Ao manifestar a jornais sua preocupação com o que considerou rigor excessivo de órgãos ambientais - o que estaria impedindo o licenciamento de novas usinas hidrelétricas -, um alto dirigente do setor elétrico disse, em tom de deboche, que alguns desses órgãos chegavam a criar obstáculos para impedir o "estresse de vaga-lumes" atingidos pelas obras. Seguiram-se desmentidos e explicações de órgãos ambientais, até do Ministério do Meio Ambiente, para mostrar que não fazem exigências descabidas nem dificultam sem fundamento a instalação de novas usinas (de fato, o que dificulta é a inviabilidade de certos empreendimentos ou a incompetência de estudos de impactos ambientais, mais preocupados em ocultar a realidade que em expô-la e discuti-la).
Mas é pena que os desmentidos se tenham limitado a negar o descabimento das exigências ou que o fundamento destas seja a preocupação com o que seriam insignificâncias, tais como o estresse dos vaga-lumes. Teria sido muito útil para o País, por exemplo, se a discussão houvesse avançado para um exame da real necessidade de novas usinas - o que exigiria uma análise competente da matriz energética brasileira que o governo federal continua a dever à sociedade, como já se escreveu aqui. Ou sobre a adequação do que se está fazendo neste momento, como permitir que quase 70% dos 3.286 MW leiloados em dezembro sejam de usinas termoelétricas, que emitirão 11,35 milhões de toneladas de dióxido de carbono por ano, o que representa um aumento de 2,8% nas emissões de gases pela matriz energética (Estado, 20/1, A16). E isso nos põe na contramão do mundo, que busca aflitivamente reduzir emissões de gases que intensificam o efeito estufa e agravam as mudanças climáticas - além de sujeitar o País a imprevisíveis aumentos nos custos da energia em razão de fatores externos (como as mudanças na Bolívia, que nos supre de gás). E tudo isso num país que - se precisar mesmo de mais energia - dispõe de enorme potencial na área das biomassas, da energia eólica e da energia solar.
Isso, se precisar. Porque a realidade evidencia que continuamos com enorme desperdício de energia - como demonstrou o "apagão" de 2001, quando o consumo chegou a cair quase 30% sem que até hoje se tenha demonstrado real prejuízo econômico. E também quando continuamos sem programas de eficiência energética no porte necessário, sem cogitar de mudanças de atividades para horários em que há sobra de energia, sem pensar em programas de repotenciação de usinas antigas (muito mais baratos que usinas novas e sem questões ambientais).
Mas teria sido interessante e útil se a discussão também houvesse entrado pela necessidade de compatibilizar novas usinas com a conservação da biodiversidade e dos serviços naturais, em que se situa o suposto "estresse dos vaga-lumes". Poder-se-ia começar examinando o que está nos relatórios da Comissão Mundial de Barragens e de dezenas de agências elaborados para o Fórum Mundial da Água, em 2002: considerando só as barragens com mais de 15 metros de altura, elas já são mais de 45 mil no mundo, com capacidade para represar pelo menos 3 milhões de metros cúbicos de água cada uma, e obrigaram à remoção de cerca de 80 milhões de pessoas (no Brasil já determinaram a remoção de mais de 1 milhão de pessoas).
Seja como for, essas barragens exigem um fluxo hidrológico regular para abastecê-las. E isso depende estritamente da biodiversidade, da presença de vegetação. O desmatamento, como começam a demonstrar estudos da Agência Nacional de Águas e de cientistas do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, afeta muito o fluxo hidrológico porque reduz a capacidade do solo de reter água e escoá-la mais lentamente. E a manutenção da vegetação depende das cadeias da biodiversidade, em que tudo está relacionado com tudo. O desaparecimento de uma espécie - vaga-lumes, por exemplo - pode afetar outras espécies que dela dependam para se alimentar ou se reproduzir. E pode resultar em efeitos desastrosos em cadeia, como a ciência está cansada de demonstrar.
A questão poderia ainda, para simplificar, restringir-se aos próprios vaga-lumes e à história que ficou muito conhecida na década de 1980, do menino texano obcecado que, para aflição dos pais, só pensava em vaga-lumes todo o tempo, em aprisioná-los em vidros, examiná-los. Na universidade, optou pela entomologia para poder estudar pirilampos. E acabou sintetizando o elemento que permite aos vaga-lumes brilhar no escuro: a partir disso, inventou as tintas fosforescentes, que o tornaram hipermilionário.
Se o diretor da Eletrobrás tivesse interesse, poderia também recorrer ao professor Augusto C. Vasconcellos, professor de grandes estruturas de concreto na USP e autor do extraordinário livro Estruturas da Natureza. Ele poderia contar-lhe a história do cientista francês que, impressionado com a fragilidade de um zíper enguiçado na saia de veludo de sua esposa, foi estudar carrapichos e, imitando pequenos ganchos orgânicos que permitem às sementes dessa planta agarrar-se a outras superfícies, inventou o velcro. Esse nome é a abreviação de velours croché, veludo gancheado - essa invenção hoje presente na vida de todo mundo.
Mas o diretor da estatal não deve estar preocupado com essas questões da biodiversidade nem com o volume de comércio que os produtos dela derivados hoje representam - centenas de bilhões de dólares anuais. Nem com a insignificante participação brasileira nas patentes nessa área. Prefere continuar debochando, estressando vaga-lumes.

Washington Novaes é jornalista

OESP, 03/02/2006, Espaço Aberto, p. A2

As notícias aqui publicadas são pesquisadas diariamente em diferentes fontes e transcritas tal qual apresentadas em seu canal de origem. O Instituto Socioambiental não se responsabiliza pelas opiniões ou erros publicados nestes textos. Caso você encontre alguma inconsistência nas notícias, por favor, entre em contato diretamente com a fonte.