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Politica com licenca

Primeira Leitura, Brasil, p.44-47
31 de Out de 2004

Política com licença
Tornou-se uma facilidade até óbvia satanizar o Ministério do Meio Ambiente e acusá-lo de responsável por parte considerável do que não anda no país. O milenarismo de começo de século (uma novidade!), que embaralha o debate sobre os transgênicos, ajuda a confundir as coisas. A verdade, no entanto, é que se está criando uma política pública no setor que merece ser vista de perto e pode, sim, vir a compatibilizar desenvolvimento com boa governança da natureza .
Por Rui Nogueira

O governo Lula, que sofre da síndrome da "primeira vez", tem uma área em que pode dizer que está botando de pé uma política pública original: a política de meio ambiente. A eficiência vai ser medida no tempo e na aplicação cotidiana, mas seus planejadores são experientes e demarcam-se bem dos tradicionais ecochatos ou dos administradores públicos que pensam o ideal em detrimento do possível e do essencial. Em síntese, a meta é fazer valer as boas leis ambientais brasileiras, não permitir a "culpabilização do meio ambiente" e exigir que a estratégia de desenvolvimento englobe previamente as questões ambientais para evitar a risível notícia de que os empreendimentos de infra-estrutura e o desenvolvimento em geral não saem do papel por falta, por exemplo, de licenças ambientais.
A verdade é que, para se chegar a um miolo de políticas públicas conseqüentes, é, sim, preciso atravessar a inacreditável crosta em que se acrisola o debate sobre os transgênicos no país. Liderando uma espécie de milenarismo de começo de século, o que é um duplo exotismo, ninguém menos do que a ministra Marina Silva, que parece enxergar severos monstros da dominação entre ideológica e teológica, em sementes modificadas de soja. Eis aí um entulho do tempo em que o PT da oposição era apenas do contra.
Mas também é verdade que a equipe da mesma Marina Silva está botando de pé, pela primeira vez, sob o comando do secretário executivo da pasta, o gaúcho de Nova Palma Cláudio Roberto Bertoldo Langone. No primeiro trimestre deste ano, no Fórum Internacional Petróleo, Meio Ambiente e Imprensa, em Salvador, onde estava Primeira Leitura, Langone surpreendeu a platéia com uma exposição objetiva da política ambiental que o governo está implementando, um casamento entre planos, discurso e prática, apesar de o ministério ser tratado a pão e água pela política do superávit primário escorchante do ministro Antonio Palocci (Fazenda). Casamento raro em uma administração marcada pelo descompasso entre promessa eleitoral, promessa de governo e execução de qualquer tipo de promessa.
Primeira Leitura foi verificar as informações dadas por Langone no fórum de salvador, promovido pela revista Imprensa e pela Petrobras, e aprofundou o debate sobre a política ambiental em conversa com o próprio secretário executivo, semanas depois, em Brasília. Casado, sem filhos, 38 anos, ex-militante estudantil e ex-dirigente da UNE (União Nacional dos Estudantes), engenheiro químico formado pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), Langone chegou ao Ministério do Meio Ambiente aliando teoria à prática. Serviu aos governos municipal de Tarso Genro e estadual de Olívio Dutra. Tem fama de "falar muito", menos pela quantidade do que pela qualidade: diz o que pensa.
Licenciamento vazio
Por onde passa o divisor de águas da política ambiental que o ministério está implementando, ainda que haja nichos consideráveis de resistência dentro do Planalto e da Esplanada? "Passa pela aposentadoria de um modelo que tende ao conflito', responde Langone. O conflito é histórico e tem como origem um modelo que exige a presença reguladora do Estado, mas que se depara com um Estado pouco interessado em fazer valer a lei e, ao mesmo tempo, mal aparelhado para fornecer os serviços públicos que ela demanda. Aqui e ali, ouve-se a acusação de que o governo FHC fez uma opção por um "Estado mínimo", mas essa é urna arrematada bobagem - o que se fez foi uma reforma administrativa precária, em que 70% dos consultores da área de meio ambiente tinham vínculo empregatício temporário. O que, de resto, afora áreas como Receita Federal e Fazenda, foi o tratamento dado a setores que não eram vistos como essenciais.
Langone não faz a apologia de um Estado big brother, capaz de vigiar tudo e todos que mexem com o meio ambiente e manejam projetos com a exigência de respeito ambiental. Esse é o tipo de fiscalização burra, impossível de praticar por mais aparelhado técnica e humanamente que o Estado esteja. Ao advogar a "desjudicialização" do meio ambiente e a inclusão prévia das questões ambientais na elaboração de projetos, nas licitações ou concessões de serviços públicos para exploração pela iniciativa privada, Langone quer evitar o chamado "licenciamento vazio" e o conflito dentro do próprio Estado. É comum, lembra o secretário, ver dentro de um mesmo governo - no município, no Estado ou na União - uma instância que concede subsídio para um empreendimento e outra instância que aplica uma multa por danos ambientais no valor do subsídio concedido.
Os investimentos em infra-estrutura são os que mais se ressentem dessa batida de cabeça. "Às vezes, a esfera judicial que embrulha as disputas em torno do meio ambiente é mais dramática do que disputa em final de campeonato de futebol. No jogo de bola, sabe-se quanto tempo demora a disputa e, ao fim, conhece se o resultado. As disputas jurídico ambientais duram tempo indefinido, e ninguém sabe como terminam." Já há bons exemplos de práticas diferentes impostas pelo Ministério do Meio Ambiente a essa má tradição.
Caso Abrolhos
Na quinta rodada de licitação de áreas destinadas à exploração de petróleo e gás, no ano passado, ambientalistas e governo conseguiram, pela via da negociação, que durou cerca de quatro meses, excluir 162 blocos. Ao todo, os ambientalistas pediam a exclusão de 243 blocos de exploração por estarem perto ou em cima do banco de Abrolhos. A decisão de retirar previamente esses blocos da licitação promovida pela Agência Nacional do Petróleo (ANP) é, ao mesmo tempo, um exemplo da boa política ambiental e de como as instituições públicas de um mesmo governo podem não dialogar entre si, e cada uma puxar para um lado.
"É desse jeito, embora nesse caso isso tenha sido evitado, que uma parte do Estado aparece aos olhos do público munido de uma preocupação com os investimentos, a produção e o crescimento econômico, e a outra parte desempenha o papel de supostamente atravancar o desenvolvimento", lamenta Langone. Traduzindo: o governo que fez a lista de blocos para licitar a perigosa exploração de petróleo e gás na biodiversidade marítima de Abrolhos é o mesmo que, em 2002, por meio do Ministério do Meio Ambiente, havia declarado o local como "área de extrema importância biológica".
Na quinta rodada de licitações da ANP, o script foi outro, e, pela primeira vez, agência reguladora do petróleo, Ibama, ministério, empresários e ambientalistas chegaram a um tipo de resultado que evitou futuras disputas judiciais. As empresas que viessem a arrematar os 162 blocos excluídos de Abrolhos haveriam de enfrentar os protestos dos ambientalistas, ações judiciais do Ministério Público e o mais que provável embargo da exploração das áreas. Iriam à mídia, com certeza, reclamar dos prejuízos por terem arrematado blocos que não poderiam ser explorados. "É assim que se produz a satanização do meio ambiente", diz o jornalista Silvestre Gorgulho, diretor da Folha elo Meio Ambiente, publicação tradicional do setor que já vai para o 15o. ano de vida, uma longevidade que foge à regra.

Mentalidades
A exemplo da quinta rodada de licitações da ANP, as próximas concessões públicas da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) também vão mudar de figurino. Os empreendimentos receberão uma análise ambiental prévia, e os investidores saberão se o procedimento de licenciamento será simplificado ou terá complexidade pequena, média ou elevada. "Não queremos permitir o conflito sociedade Estado-investidor. Queremos acabar com a política da encrenca", define Langone. Se os projetos têm exigências financeiras e sociais, por que não devem cumprir as exigências ambientais?, pergunta-se o secretário-executivo.
Esse caminho de incluir parâmetros ambientais na matriz de desenvolvimento estratégico exige bem mais do que mudança nos procedimentos públicos. No varejo, individualmente, engenheiros, arquitetos, urbanistas, licitadores, planejadores e projetistas costumam ser refratários às questões ambientais. Langone dá dois exemplos clássicos (lesse tipo de insensibilidade.
Não são poucos os projetistas que constroem no papel os caminhos dos oleodutos como se se tratasse apenas de uma ligação entre dois pontos em um mapa. Para esse tipo de planejador, o melhor projeto é o que encurta o caminho e os custos sem ver com acuidade quantas pessoas e que meio ambiente serão retalhados pelo empreendimento. Depois, aparece "a turma do meio ambiente" a interditar "essas linhas absurdas". O outro fenômeno emblemático é a chamada indústria da terraplenagem nas obras públicas e privadas. "Nossos projetistas têm verdadeira obsessão por tirar tudo dos terrenos, limpá-los completamente para criar ambientes artificiais, coisa que mais parece jardim japonês", descreve o secretário executivo do Meio Ambiente.
Mais Estado e Município
Há também um comportamento exemplarmente negativo que o setor público costuma oferecer à sociedade. É a baixíssima sintonia entre União, Estados e municípios quando se trata de agir na proteção do meio ambiente e de fazer cumprir a lei. Pipocam pelo país ações em que os ministérios públicos federal e estadual dirimem no judiciário a dúvida sobre quem deve agir contra obras e projetos que eles consideram ambientalmente problemáticos. O Rodoanel de São Paulo é alvo de uma ação desse tipo.
Os desastres ecológicos do vazamento de óleo da Petrobras na baía de Guanabara, em janeiro de 2000, e da indústria de Cataguazes (MG), que injetou milhões de litros de soda cáustica nos rios Pomba e Paraíba do Sul, em março do ano passado, ficaram gravados na memória da população menos pela eficiência na contenção dos problemas do que pela disputa pública para saber que instância governamental ficaria com o dinheiro das pesadas multas aplicadas aos responsáveis pelos acidentes. "Estados e municípios precisam crescer em protagonismo ambiental", pede Langone.
"Tomar a iniciativa" é a sugestão do secretário, como o ministério fez ao procurar a Abdib (Associação Brasileira da Infra-Estrutura e Indústria de Base). O resultado é que a Abdib, uma das associações que se queixam da lentidão nas concessões de licenciamento ambiental, acabou por criar um comitê do meio ambiente. Langone não nega que haja problemas no licenciamento, mas joga luz sobre algo que a maioria da mídia desconhece: o "licenciamento político'.
Governadores e prefeitos usam a licença ambiental para fazer política do toma-lá-dá-cá. Foi isso o que a governadora do Rio, Rosinha Matheus (PSB), fez o que os dicionários talvez definissem como chantagem com a Petrobras ao não conceder licença para o projeto de construção de um oleoduto entre Rio e São Paulo, que passa por 19 municípios fluminenses - o projeto subiu no telhado e não saiu do papel até hoje. Rosinha e os prefeitos o condicionaram a uma exigência nada ambiental: que a estatal do petróleo construísse no Rio uma nova refinaria. Dá licença! - Rui Nogueira

A BR da soja
A BR-163, a estrada da soja, pode ser exemplo de parcerias virtuosas Em matéria de meio ambiente, o governo Lula quer transformar o polêmico caso da rodovia BR-163 (Cuiabá-Santarém) em exemplo do que pode ser feito corno parceria entre o Estado, a iniciativa privada e as entidades ambientalistas para urna obra de infra-estrutura que deverá ser uma espécie de paradigma do desenvolvimento sustentado. A BR-163 já existe, tem 1.765 quilômetros, dois trechos que somam cerca de 840 quilômetros precariamente asfaltados e corta uma parte considerável de floresta amazônica. É um poeirão que os grandes empresários do agronegócio do Centro-Oeste querem asfaltar e transformar em uma rodovia-modelo para o escoarem o da produção de soja do Mato Grosso pelo porto de Miritituba (PA).
Levar a soja para os portos do Sul e Sudeste encarece o escoamento dos grãos. Exportá-la pela BR-163 pode baixar o preço do frete em até R$ 2,80 por saca de soja colhida. A estrada ajudaria a escoar também a produção da Zona Franca de Manaus. Pelo projeto, ficarão livres do pedágio carros de passeio e pequenas caminhonetes. Só os caminhões com mais de 3 toneladas de carga é que pagarão a tarifa de reembolso dos investidores.
Com apoio do Estado do Mato Grosso e do governador Blairo Maggi (PPS-MT), o maior produtor individual de soja do mundo, os empresários querem carta branca para investir no asfaltamento. Há 14 empresas interessadas em participar da obra. Os ambientalistas temem que uma boa rodovia vire o rastilho que vai povoar desordenadamente a região e incendiar o desmatamento amazônico. A revista britânica The Economist disse que será um "milagre" se for bem-sucedida a tentativa de conciliar crescimento e conservação da natureza levada a cabo pelo governo brasileiro.
A solução foi criar um Grupo de Trabalho Interministerial (GTI) alocado na Casa Civil e coordenado por Johannes Eck. Convivem ali os ministérios dos Transportes, Planejamento, Meio Ambiente, Integração Nacional e Casa Civil, o governador Maggi e ONGs como Greenpeace, Imazon, Conservação Internacional, Amigos da Terra e WWF-Brasil, entre muitas outras. Fizeram meia dúzia de audiências em vários municípios e trabalham para que não se repita o ciclo "estrada-desfloramento".
A meta é fazer um projeto ordenado de pavimentação da rodovia e, ao mesmo tempo, mapear a população rural e indígena e definir as condições de manejo agroflorestal de toda a área. Segundo o secretário-executivo do Ministério do Ambiente, Cláudio Langone, a previsão é que as obras de asfaltamento comecem no primeiro semestre de 2005. - RN

Primeira Leitura, Out./2004, p.40-47

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