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Pelo fim da lavoura arcaica

CB, Brasil, p. 14
26 de Ago de 2006

Pelo fim da lavoura arcaica
Relatório da CPT mostra redução no número de pessoas que foram retiradas de condições análogas à escravidão no primeiro semestre deste ano, em relação a 2005. Apenas 40% das denúncias são apuradas

Renata Mariz
Da Equipe do Correio

Uma operação do Ministério do Trabalho esta semana encontrou 430 cortadores de cana-de-açúcar trabalhando em condições precárias na região de Bauru, no interior de São Paulo. Amontoados em cômodos sem higiene, os trabalhadores passavam fome. Funcionários de usinas instaladas em uma das regiões mais ricas do país, os agricultores recebiam menos de um salário mínimo por mês e não tinham equipamentos de segurança.

Dez dias antes, os fiscais tinham libertado mais 249 trabalhadores em condições análogas à escravidão. Em Campos de Julho, a 600km de Cuiabá (MT), eles eram mantidos em cárcere privado. Os números destas operações irão inflar o relatório que será divulgado, em setembro, pela Comissão Pastoral da Terra, responsável por 70% das denúncias de trabalho escravo no país e principal parceira das autoridades no combate ao problema. A situação até agora, conforme levantamento preliminar da entidade repassado ao Correio, não recuou, apesar das fiscalizações e da ação da Justiça terem se intensificado nos últimos anos no Brasil.

Os dados da CPT mostram que, no primeiro semestre de 2006, 1.722 trabalhadores reduzidos à condição de escravos foram libertados no país. Embora signifique uma queda de pouco mais de 50% em relação ao mesmo período do ano passado, quando o número de pessoas soltas foi de 3.203, frei Xavier Plassat não acredita em uma diminuição do problema. "Até porque em 2005 tivemos 1.200 libertados num caso único, o que impulsionou a estatística para cima", diz o coordenador da Campanha contra o Trabalho Escravo da CPT. O caso a que frei Xavier se refere é o da fazenda Gameleira, em Mato Grosso, estado que ocupa o 2o lugar no do ranking de trabalho forçado no país.

Recordista

A liderança nesta estatística vergonhosa é, historicamente, do Pará. Quase um terço das libertações feitas no primeiro semestre deste ano, 535 pessoas, foram naquele estado. "A característica nova aqui é a ocorrência do trabalho escravo nas carvoarias", diz Jorge Ribeiro, advogado da CPT em Marabá (PA). Depois do Mato Grosso, segundo lugar, vêm Bahia, Maranhão e Tocantins, com números preocupantes. "São áreas onde há uma expansão da fronteira agrícola sobre a floresta", explica Marcelo Campos, coordenador dos grupos móveis de fiscalização do Ministério do Trabalho. Em 99% dos casos, segundo ele, o trabalho forçado se dá no meio rural. Ocorrências em áreas urbanas são esporádicas.

A apuração das denúncias cresceu. No Ministério do Trabalho, que tem recebido apoio da Polícia Federal e do Ministério Público, o número de fiscalizações passou de 66, em 2003, para 84 no ano passado. Ainda assim, aos olhos de entidades ligadas no combate ao trabalho escravo, é pouco. Apenas 40% das comunicações, segundo os registros da CPT, resultam em ações concretas de resgate. Marcelo Campos reconhece o problema, mas argumenta que nem todas as denúncias chegam completas e caracterizadas como trabalho forçado. "Muitas vezes não trazem nem um endereço razoável, para que uma equipe possa se deslocar", explica.

Disputa na Justiça atrasa as punições

Se as fiscalizações já encontram dificuldade de chegar aos rincões do país, a Justiça parece simplesmente não existir em determinadas áreas. Um problema que atrasa o andamento dos processos judiciais é a discussão sobre competência para julgar as causas. "Uma jurisprudência muito antiga diz que crimes contra a organização do trabalho devem ser tratados na Justiça Comum, mas a Constituição afirma ser da Justiça Federal. E, com isso, vem a morosidade", afirma Luís Camargo, subprocurador-geral do Ministério Público do Trabalho e coordenador nacional de combate ao trabalho escravo da instituição.

Apesar de o Código Penal prever até oito anos de reclusão para o crime de trabalho escravo, só houve um caso de condenação criminal na Justiça Comum. Apesar da sentença, proferida há sete anos, o fazendeiro teve a pena revertida em doação de cestas básicas. "Uma sentença ridícula", critica o subprocurador Camargo. Para ele, falta sensibilização por parte dos procuradores e juízes da esfera criminal. "Crimes como tráfico de drogas, contrabando, entre outros, parecem mais importantes para eles", diz.

Camargo reconhece que, na esfera criminal, é mais difícil reunir provas para caracterizar o crime de trabalho escravo. "Não vamos encontrar a pessoa com uma corrente no pé, como na época colonial. A escravidão contemporânea assume outras formas", explica o subprocurador. Geralmente os trabalhadores são aliciados por intermediadores, os chamados gatos, em regiões distantes de onde vão trabalhar. "Para não saberem onde estão nem terem como fugir, os gatos dão cachaça aos peões durante a locomoção, que acontece geralmente à noite", explica Marcelo Campos.

Chegando à fazenda, toda a conversa amistosa, de bons salários, carteira assinada e alojamentos dignos, transforma-se em violência. "Eles são coagidos, apanham se quiserem se rebelar e muitas vezes podem chegar a ser assassinados", conta Marcelo. O principal instrumento de escravização é o endividamento. Tudo que o trabalhador consome dentro da fazenda, inclusive equipamentos de proteção, como luvas e botas, é anotado numa caderneta. "Muitos deles acreditam que têm essa dívida, embora ela não exista, e se vêem presos ao local", explica o subprocurador Camargo.

CB, 26/08/2006, Brasil, p. 14

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