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Pela floresta e a própria vida: indígenas criam mecanismos de proteção na fronteira com Peru e pedem presença do Estado

Um Só Planeta - umsoplaneta.globo.com
Autor: Rosiene Carvalho
15 de Jan de 2024

Conversamos com Bushe Matis, principal liderança indígena do Vale do Javari, a segunda maior terra demarcada do Brasil

Por Rosiene Carvalho, para Um Só Planeta
15/01/2024 08h00 Atualizado há um dia

Enquanto o Congresso Nacional avança para fragilizar a legislação de proteção aos territórios indígenas com o marco temporal, o coordenador da Univaja (União dos Povos Indígenas do Vale do Javari), Bushe Matis, apela para o bom senso e urgência de medidas diante dos sinais explícitos das mudanças climáticas: "Não olhem a vida da natureza com mau olhar. Preservando, cuidando e respeitando, o mundo vai ser melhor".

Bushe é a principal liderança indígena do Vale do Javari, a segunda maior terra demarcada do País. O Vale do Javari fica no município de Atalaia do Norte, no extremo oeste do Amazonas, na fronteira do Brasil com o Peru.

Na avaliação das organizações indígenas, o texto do Marco Temporal fragiliza a condição de terras demarcadas e piora a situação das que ainda aguardam por demarcação. O projeto foi aprovado no Congresso Nacional, vetado parcialmente pelo presidente Lula, que teve os vetos derrubados no legislativo no final do ano passado. A tese foi derrotada recentemente no STF (Supremo Tribunal Federal) e deve ter seu próximo capítulo no judiciário.

No território de Bushe Matis, o receio é que o marco temporal incentive ainda mais os invasores e coloque em maior risco a vida dos indígenas que vivem em isolamento voluntário. O Vale do Javari sofre com a exploração ilegal de recursos naturais, ameaças contra os povos originários, violências e assassinatos brutais contra quem se coloca à frente na proteção da terra indígena (T.I.)

Basta lembrar que o indigenista Bruno Pereira, o jornalista Dom Philips e o colaborador da Funai Maxciel Pereira dos Santos foram mortos num contexto de defesa do território demarcado e, portanto, da legislação vigente no País, contra os invasores.

Com o rosto pintado de urucum, em novembro, Bushe Matis explicou ao público do TedX Amazônia que os indígenas precisam dos rios e das florestas, mas que também são defensores de todas as vidas no planeta. Numa cidade tomada por fumaça das queimadas na floresta, Bushe pediu, mais uma vez, que o Estado cumpra o seu dever de proteger o território e atuar na fronteira do País.

"A mensagem é que respeitem os povos indígenas, respeitem a natureza, a floresta em pé. Se preservar a vida, nós vamos nos sentir felizes e ter o ar puro que a gente precisa respirar", diz à reportagem afirmando que sentia orgulho da sua terra e que lá podem "respirar o oxigênio da natureza".

Levantamento divulgado pelo MapBiomas em agosto de 2023 mostrou o que dados de satélites do Inpe sobre queimadas revelam ano após ano: os territórios indígenas são as áreas mais preservadas da floresta. Segundo o MapBiomas, nas terras indígenas apenas 1% da vegetação nativa se perdeu nos últimos 38 anos. Já nas áreas privadas, o percentual dá um salto para 17% de devastação.

Bushe Matis afirma que, para os indígenas, nada mudou um ano e meio após o Vale do Javari receber a atenção da mídia nacional e internacional e das autoridades, no período das buscas dos corpos de Bruno e Dom.

"Há vários anos, estamos pedindo socorro, que os órgãos competentes possam solucionar a invasão, a droga e o garimpo. Não tem surtido efeito. Ai, a gente assumiu essa responsabilidade", afirma se referindo à segurança do território e do meio ambiente.

Para proteger a floresta e a vida dos povos indígenas, sobretudo a maior população em isolamento voluntário do planeta, a Univaja, com o apoio de Bruno Pereira, criou a EVU (Equipe de Vigilância da Univaja), que circula no perímetro da T.I., monitora os pontos da invasão e leva denúncias para as autoridades.

Ao menos seis relatórios foram encaminhados pela Univaja aos representantes no Amazonas do Ministério Público Federal, Polícia Federal, Força Nacional de Segurança e Funai, entre fevereiro e maio de 2022, relatando ameaças de morte, invasões de pescadores armados, ataques com tiros a indígenas, além da saída de pesca e caça ilegal da terra indígena. Segundo Bushe, não foram tomadas providências nem antes e nem depois da morte de Bruno e Dom. "Segurança bonita só existe no papel", diz.

Em que pese todos os desafios de sua própria região, que tem a maior população de indígenas em isolamento voluntário do planeta, Bushe Matis tem sido presença constante no diálogo com organizações indígenas do outro lado do rio Javari, no Peru. O rio Javari delimita a fronteira entre os dois Países.

Recentemente, o País vizinho passou por forte pressão do setor madeireiro que tentava negar a existência de povos isolados do lado peruano, conta Bushe. Na avaliação do coordenador da Univaja, a medida que permitiria legalmente o avanço sobre as áreas onde vivem essas populações, colocaria sob ameaças os isolados do lado brasileiro.

"Estamos tentando montar uma rede com organizações indígenas internacionais. Tem matsés peruanos e matsés brasileiros. Têm povos indígenas isolados e o governo do Peru não queria reconhecer povos isolados ali", disse.

Bushe afirmou que compartilhou com os peruanos a experiência da legislação brasileira que, ao contrário do que prevê as mudanças no marco temporal, defende o direito dos isolados à sua autodeterminação e ao não contato. Ele disse que a troca de experiências ajudou a frear a legislação peruana. "Foi ponto positivo da nossa presença"

Para ele, o Vale do Javari precisa ser visto com atenção e não só nos momentos de tragédias.

"Tem que pensar mais na proteção. Não desmatamento da floresta, não poluição do ar e proteger o Vale do Javari. Isso vai garantir a vida dos povos indígenas da região. E vai garantir ao município (Atalaia do Norte) ter uma água potável, um rio bem mais conservado. Não poluído. Ter mais peixe, mais caça. Todos os moradores vão sobreviver com isso", disse.

O indígena usa sua voz na busca da defesa da floresta, das vidas indígenas e do fortalecimento da presença do Estado na fronteira: "Cuidar dessa região não é fácil (...) Peço mais segurança, proteção e conservação do Javari. Quanto à segurança, que Ibama e Polícia Federal tomem conta de pontos estratégicos do Vale do Javari. E com uma Funai fortalecida, o Vale do Javari vai se sentir feliz".

Saiba mais
· Em 5 de junho de 2022, o indigenista Bruno Pereira, 41, e o jornalista Dom Philips, 58, foram brutalmente assassinados na região. Dois anos e meio antes, em 6 de setembro de 2019, o colaborador da Funai Maxciel Pereira dos Santos foi executado numa das principais avenidas de Tabatinga.

· O Vale do Javari fica no município de Atalaia do Norte, ao lado de Tabatinga, na tríplice fronteira Brasil/Peru/Colômbia, área que representa a segunda maior entrada de cocaína no País.

· A segunda maior terra indígena demarcada do País tem cerca de 8,5 milhões de hectares, o que equivale a 56 vezes o tamanho do município de São Paulo

· A estimativa é que na T.I. vivam 6,3 mil indígenas dos povos matis, mayoruna (também conhecidos como matsés), marubo, kulina pano, kanamari, tson wük dyapah e grupos de korubo de recente contato, além da maior população de indígenas em isolamento voluntário do planeta.

. A tese do marco temporal defende que os indígenas só tenham direito à demarcação das terras que ocupavam a partir da Constituição de 1988. O movimento indígena argumenta que muitos povos, especialmente durante o período da Ditadura Militar, foram retirados de suas terras. O texto também flexibiliza o uso das terras indígenas por não indígenas e fragiliza a proteção aos povos isolados

https://umsoplaneta.globo.com/sociedade/noticia/2024/01/15/pela-florest…

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