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'Peju porã': quem são os alunos aprovados no primeiro vestibular indígena da Unicamp

O Globo, Sociedade, p. 19
Autor: Elisa Martins e Guilherme Caetano
13 de Mai de 2019

"Peju porã", diz a faixa colocada no alto do prédio do Ciclo Básico II da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). As "boas-vindas" escritas em tupi-guarani e em outros três idiomas indígenas são destinadas aos alunos do primeiro vestibular indígena realizado pela instituição.

Desde fevereiro, 68 jovens de 23 etnias se adaptam à nova rotina e buscam um espaço no ambiente universitário no interior de São Paulo, entre o ritmo puxado das aulas, o entrosamento com colegas e professoras e a saudade de casa e da comida.

- Fui num bar na semana passada e estava com pintura exposta. Aí uma moça perguntou se eu tinha casa. Não é porque eu sou indígena que eu não tenho casa - conta Myma, uma jovem de 19 anos da etnia pankará. - Aí a gente vê que vocês não sabem muito sobre (nós). Tem aquela visão estereotipada, que a gente ainda vive na floresta, que é selvagem e preguiçoso. Aí eu tenho medo de andar assim (com a pintura à mostra) sozinha, porque todo mundo olha, e você não sabe se quem está olhando está admirando ou vai querer te fazer alguma coisa.

Vitoria Jemima de Sá Cavalcante, ou Myma, como gosta de ser chamada, saiu de Floresta, em Pernambuco, para o curso de Filosofia na Unicamp. Ela diz que, aos poucos, ela e os colegas tentam vencer certo estranhamento causado pelo ineditismo dos calouros.

Vindos de várias regiões do país, eles se mobilizam para frequentar reuniões, congressos e outros espaços estudantis. Conseguiram uma sala onde montaram o Centro Acadêmico Indígena e, há alguns dias, organizaram a primeira Semana Acadêmica Indígena.

Há duas semanas, com ajuda da Frente Pró-Cota, Rede Ubuntu e centros acadêmicos, levaram o curso de educação física a aprovar oito vagas para ingressantes do próximo vestibular indígena.

Agora, miram vagas em medicina e odontologia, que assim como outros 37 cursos entre os 66 existentes, ainda não aderiram às cotas.

Prova específica
O vestibular indígena teve uma prova específica, baseada no princípio de que estudantes com realidades diferentes precisam de avaliações diferentes. O exame tinha menos questões e enunciados mais curtos do que o convencional, e foi feito em uma única fase.

Segundo o professor José Alves Freitas Neto, coordenador do exame, a ideia foi que a prova "dialogasse com as experiências escolares" desses alunos.

- Não foi cobrado o inglês, porque o português já é a segunda língua deles - afirmou. - [O objetivo] foi atender o pressuposto que está na própria Constituição, de que todo mundo tem direito à educação em todos os seus níveis. Por isso, fizemos as provas nos lugares onde eles estão.

A prova foi aplicada em quatro cidades consideradas estratégicas, além da própria Campinas: Recife (PE), Manaus (AM), Dourado (MS) e São Gabriel da Cachoeira (AM), município brasileiro com a maior porcentagem de população indígena - 95% dos 45 mil habitantes.

De lá veio a maior parte dos ingressantes do novo vestibular, como John Alexandre Dias Restrepo. Aluno de Letras, ele se apresenta por sua etnia, dessano.

John lembra que um colega questionou como ele se sentia "estando em um grupo onde há homossexuais, trans, e várias pessoas que nunca tinha visto".

- Na minha cultura não temos essa separação de pessoas. Nós somos todos iguais. Não existe preconceito, e sim respeito - afirma.

Ele diz que a Unicamp ficou "mais rica" com a chegada dos estudantes indígenas, a quem se refere como "parentes".

- Vamos mostrar nossa cultura, e vamos aprender com a cultura daqui também. Vocês não têm seu carnaval? Não têm o chimarrão? Nós temos nosso chibé - ri, referindo-se à farinha misturada com água típica da região em que vive.

Saudades da comida de casa
A comida, aliás, tem sido um desafio para os novos alunos. Myma, que não gosta dos pratos servidos na faculdade, diz que resolveu o problema quando sua mãe veio a Campinas para passar uma temporada.

Segundo ela, alguns indígenas adoeceram ao comer as refeições do restaurante universitário. Houve até quem tivesse pedido para a família enviar farinha caseira pelo correio.

Além da alimentação, aspectos da cultura universitária também não agradam a todos.

Daiane Michelle Ferreira da Silva, da etnia xukuru do ororubá, diz que sempre sonhou com a universidade. Entrou no curso de artes cênicas, mas gostaria de estudar uma carreira na área de saúde também. Por enquanto, vence as pequenas dificuldades do dia a dia.

- Moro em uma quitinete. Não me adaptei à residência estudantil. Era muita festa, bebidas, costumes diferentes. Não me agradava. Mas estar aqui tem sido incrível - diz ela, a primeira de sua comunidade em Pesqueira, no agreste de Pernambuco, a estudar na Unicamp.

Para Mawanaya, aluno de geografia vindo de Canarana, no Mato Grosso, a língua foi mais um obstáculo a superar - sua materna é o aruak.

Ele diz que está aprendendo português ao mesmo tempo em que estuda sobre clima e relevos.

- Os colegas me ajudam. Mas claro que fico com saudade da família. Eles me apoiaram para vir, mas me disseram para não ficar andando na rua. Meu sonho é voltar para a minha aldeia quando acabar os estudos e levar esse conhecimento, ensinar as crianças - diz, agarrado a um livro chamado "Decifrando a Terra".

O ritmo puxado das aulas é a maior dificuldade do dia a dia, dizem os calouros. Muitos ficam depois da hora para repassar o conteúdo e se reúnem para fazer trabalhos juntos.

- Tenho aula de redação. Minha professora é muito boa, compreensiva, e sempre está ajudando. Fora isso, tem o grupo de estudo. E o pessoal da minha casa me ajuda - diz Myma, que mora em uma república com outros alunos.

O Globo, 13/05/2019, Sociedade, p. 19

https://oglobo.globo.com/sociedade/educacao/conheca-os-aprovados-no-pri…

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