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Patente de organismos vivos aumenta debate sobre biodiversidade do Brasil

Valor Econômico - https://valor.globo.com/
12 de Ago de 2024

Patente de organismos vivos aumenta debate sobre biodiversidade do Brasil
Embrapa, INPI e entidades empresariais defendem flexibilização da lei; ministérios são contrários e falam em risco de 'privatização do patrimônio genético'

Marcos de Moura e Souza

12/08/2024

Para conseguir chegar a uma fórmula eficiente, a equipe de quase 50 agrônomos, biólogos e químicos de uma empresa do interior de São Paulo precisa de alguns anos de análises e testes em laboratório. O trabalho também envolve exploração de campo. Os pesquisadores viajam por regiões do país em busca de bactérias e fungos e outros microrganismos poderão servir de base para novos produtos biológicos para o combate de pragas agrícolas.

"Um processo de prospecção de microrganismos leva pelo menos três anos. A média do mercado é até mais alta, de cinco a sete anos", conta Jonas Hipólito, de 35 anos, diretor de inovação e estratégia da Biotrop, empresa de bioinsumos para a agropecuária com sede em Vinhedo (SP). A empresa tem fábricas em São Paulo e Paraná.

Os bioinsumos - que podem ser defensivos ou fertilizantes - estão em alta no agronegócio. Em vez de componentes químicos, esses produtos têm como base organismos vivos, solução apresentada como mais sustentável. "O desenvolvimento de um produto desse tipo demanda muitos milhões de reais", diz Hipólito. E aí começa o que para muitas empresas no Brasil é um sério problema.

Depois de anos de trabalho e investimento na identificação de, por exemplo, uma bactéria que se torna elemento principal de um biodefensivo, o que fazer para proteger a descoberta e evitar que outras empresas peguem carona na pesquisa e façam produtos semelhantes? O produto final e o processo produtivo podem ser patenteados, mas não o elemento central: o organismo vivo.

Hipólito e muitos no setor de biotecnologia entendem que se houvesse a possibilidade de patentear no Brasil determinados organismos ou parte deles em novos processos produtivos haveria mais segurança para investimentos em inovação, sem o risco de que outros replicassem produtos usando a base cujas funcionalidade foram identificados por outros.

Mas patentear microrganismos, como bactérias, vírus, fungos; sequências de DNA; plantas; partes de plantas; animais ou material genético de animais, como células sanguíneas ou veneno, por exemplo; é proibido no Brasil.

A lei 9.279 de 1996 excluiu organismos vivos ou partes deles dos itens patenteáveis. O texto abre brecha apenas para microrganismos geneticamente modificados.

A ideia de flexibilizar essa regra tem sido há anos um tema de interesse de multinacionais do setor farmacêutico e químico e cada vez mais das empresas de biotecnologia voltados ao agronegócio. É um assunto que alimenta divergências acirradas e que está agora em uma nova fase.

Com o aumento do interesse por bioinsumos no agro, a Embrapa tem reforçado sua posição em defesa de permissão de patentes de seres vivos.

O Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI), órgão responsável pelas patentes no país, também é favorável à mudança das regras, sob o argumento de que seria convergente com a nova política industrial defendida pelo governo e com a intenção de fortalecer empresas da bioeconomia.

Mas a ideia de uma revisão da legislação enfrenta forte oposição em alguns ministérios. "O monopólio jurídico conferido pela patente sempre gera uma ineficiência de mercado. Em alguns casos, no entanto, isso é aceitável para que a gente possa dar incentivos à inovação para a criação de algo que beneficie a sociedade. É um incentivo à inovação em troca do monopólio", diz Rafael Marques, coordenador-geral de Patrimônio Genético da Secretaria de Secretaria de Economia Verde do Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio Exterior e Serviços.

Quando se trata de patentes, diz Marques, três critérios básicos precisam ser preenchidos: ser uma novidade, ser fruto de atividade inventiva e ter aplicação industrial.

No caso de um vírus, do óleo de um planta ou de uma célula animal, ao menos um desses critérios fica de fora. "O pesquisador pode encontrar uma substância, mas ele não a inventou", diz Marques.

Há outro senão. Algumas espécies são objeto de estudos feitos por diferentes pesquisadores. Concedida a patente a um desenvolvedor, outras pesquisas seriam desincentivadas, porque o produto final teria de ser autorizado pelo dono da patente, que direito a receber royalties.
Henry Novion, diretor de Patrimônio Genético do Ministério do Meio Ambiente, também vê com reservas a tese da patenteabilidade de plantas e animais.
"O patrimônio genético do país tem que ser usado em benefício da sociedade, e conceder patentes desse tipo seria privatizar algo que é um bem comum", diz Novion.

O Ministério da Ciência e Tecnologia diz que está reunindo um grupo de especialistas para contribuir com subsídios em alguns temas. Entre eles esse. A Casa Civil diz que a discussão está no âmbito técnico. No Grupo Interministerial de Propriedade Intelectual (Gipi), que reúne representantes de ministérios e entidades empresariais não há consenso sobre o assunto.

O patrimônio genético do país tem que ser usado em benefício da sociedade, e conceder patentes desse tipo seria privatizar um bem comum"
- Henry Novion

Um dos temores diz respeito a quem teria condições de sair na frente e requerer um grande número de patentes na Amazônia, por exemplo. Com grande capacidade de investimento e com extensas equipes de pesquisadores, empresas ou centros de pesquisas dos EUA, Europa, China e Japão teriam, em tese, condições de solicitar e obter patentes sobre um grande número de plantas, venenos, seivas, extratos e outros materiais genéticos típicos do Brasil.

Entre críticos, a possibilidade de que organismos vivos passem a ser protegidos em favor de multinacionais - comprometendo o acesso por parte de universidades ou de empresas brasileiras de menor porte - é uma ideia incômoda.

No entanto, esse não é um embate que envolve apenas interesses de grandes grupos estrangeiros e de pesquisadores brasileiros que se equilibram em recursos limitados. A Embrapa, empresa pública referência em pesquisa agropecuária, é uma das defensoras da ideia de rever a legislação brasileira de patentes. A empresa tem feito parcerias com companhias privadas do Brasil e do exterior no desenvolvimento de produtos. O carro-chefe são insumos biológicos com base em bactérias, fungos e outros microrganismos.

"O grande trunfo da Embrapa no desenvolvimento dessas tecnologias é exatamente o microrganismo e todo o trabalho que foi feito durante décadas de conservação, identificação caracterização desses microrganismos, um trabalho de ciência com um custo gigantesco que temos desenvolvido como instituição pública. E que agora a gente tem a oportunidade de entregar isso [na forma de produto final] surge essa questão de limitação na segurança jurídica por causa da lei de propriedade industrial", diz Simone Tsuneda, gerente geral de Estratégias para o Mercado da empresa.

"Se a gente tivesse a possibilidade de proteger [por meio de patentes, não só o produto final e sua formulação mas] também microrganismos que são de interesse, a gente teria muito mais segurança jurídica para lançar esses produtos no mercado." Entre os organismos em estudo pela Embrapa, estão as bactérias bacillus sp, bacillus thuringiensis, bacillus subtillis e uma espécie de fungo, o trichoderma harziannum. São organismos que podem ser usados em produtos para ajudar nos plantios de milho, cana, soja, feijão, algodão, entre outros.

No momento, a empresa centra sua defesa na possibilidade de patentear microrganismos.

Julio Moreira, presidente do Instituto Nacional de Propriedade Industrial, vai além. "Para nós está muito claro. Temos que proteger [ou seja, oferecer a possibilidade de conceder patente de] microrganismos, do todo ou de parte de plantas e animais com alguma restrição, pelo menos o trabalho com células animais nós deveríamos analisar e discutir no Legislativo e no Executivo porque muitas pesquisas estão sendo feitas e não estamos garantindo a proteção adequada. Temos de reanalisar a lei de propriedade industrial", disse ele em entrevista ao Valor.

Ele argumenta que isso ajudaria empresas nacionais e que não considera um problema que uma eventual mudança da lei venha a atrair muitos grupos estrangeiros interessados em obter patentes de organismos vivos no Brasil. "Queremos incentivar que eles venham para o Brasil para fazerem mais pesquisas de forma clara e transparente e quando desenvolverem novos produtos a partir da nossa biodiversidade que eles façam a repartição dos benefícios no país."

Com uma biodiversidade tão rica e dificilmente comparável a de outros países, o Brasil já tem um histórico de presença de pesquisas na fauna e flora feitas por empresas e insrtituições de pesquisas do Brasil e do exterior. Moreira entende que a ampliação das patentes tornaria o Brasil mais atraente para pesquisas em biotecnologia.

Um estudo publicado no ano passado pela Comissão Econômica para a América Latina e Caribe (Cepal), o "Estudo comparativo sobre normas e critérios de patenteabilidade de invenções biotecnológicas", apontou que entre 42 países analisados, microrganismos são patenteáveis em 25 deles.

Nos outros 17, entre os quais o Brasil, a patente não é permitida. A possibilidade de patentear variedades vegetais é menos usual: permitida apenas - entre os 42 - na Coreia do Sul, EUA, Guatemala, Japão e República Democrática do Congo. Os mesmos países também permitem patentes de variedades de animais. Já as células, tecidos e órgãos de animais são patenteáveis nos países da União Europeia e em outros 12 países, entre eles EUA, China, Japão e Suíça.
O estudo aponta também que em termos de matérias de biotecnologia patenteáveis, o Brasil figura no meio do ranking, com 22 matérias patenteáveis e 19 não patenteáveis. O Japão tem 39 patentáveis e 1 não; os EUA, 37 patenteáveis e 4 não; A China, 27 e 14, respectivamente.

Austrália, Canadá, Indonésia são alguns que adotam regras mais restritivas que a do Brasil.

Na tentativa de buscar uma proteção contra a concorrência que não conseguem no Brasil, o caminho trilhado por algumas empresas tem sido o de patentear no exterior organismos vivos - ou partes deles - encontrados no país.

Jonas Hipólito, da Biotrop, empresa cujo controle está hoje nas mãos da belga Biofirst, está montando um laboratório na Flórida e uma possibilidade é que parte das pesquisas com material do Brasil seja feita lá e os produtos, patenteadas nos EUA.

"As multinacionais já depositam essa patente [com elementos do Brasil] nos EUA, na Europa, no Japão, entre outros países. Grandes empresas brasileiras também fazem isso. Embora elas não fiquem protegidas no Brasil, numa situação de disputa judicial elas já têm alguma proteção A matéria patenteada pode ser um microrganismo, o extrato de uma planta, uma resina. O problema é que empresas menores ou universidades muitas vezes não conseguem fazer esse processo no exterior, é um processo caro", diz Ana Cláudia Oliveira, especialista em propriedade intelectual e biodiversidiade da Associação Brasileira das Indústrias de Química Fina (Abifina).

O debate segue em aberto. "No âmbito do grupo interministerial essa discussão não vai ser fluida como alguns gostariam", diz Henry Novion, do Ministério do Meio Ambiente. Para Rafael Marques, do Ministério do Desenvolvimento, é um tema que não se circunscreve à ciência. "Há muitos interesses econômicos fortes atrás desse debate, e por isso essa questão sempre volta."

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