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Os operarios que o governo esqueceu

CB, Brasil, p. 10-11
07 de Out de 2005

Os operários que o governo esqueceu
Sem receber ajuda nem tratamento médico adequado, antigos trabalhadores de uma usina estatal de beneficiamento de minerais em São Paulo adoecem e morrem em decorrência do trabalho

Solano Nascimento
Da equipe do Correio

O aposentado José Raimundo Costa, 74 anos, carrega há quatro décadas o apelido de Bené porque um antigo chefe embestou que ele se parecia com um jogador do Corinthians que tinha esse nome. Lorival Santos, 64 anos, um negro de cabelo e bigode grisalhos, é conhecido como Louro. Severino da Costa, que nasceu num lugarejo chamado Desterro do Mello, em Minas, tem 68 anos e ganhou a alcunha de Pé Inchado, por ser a forma como um irmão gostava de se referir aos colegas, insinuando de brincadeira que eram pinguços. Os três carregam no peito o mesmo mal. São vítimas da pneumoconiose, doença incurável, progressiva e lenta, causada pela inalação de poeira de minérios, que endurece as paredes dos pulmões, reduz aos poucos a capacidade respiratória e muitas vezes resulta em uma morte agonizante, por sufocamento.
A enfermidade não foi adquirida em algum recôncavo escondido no interior do país, mas no Brooklin Paulista, um importante bairro residencial de São Paulo, a maior cidade brasileira. Os operários doentes não estavam a serviço de alguma fabriqueta de fundo de quintal, acostumada a ignorar leis trabalhistas. Eles aspiraram o pó mortal durante décadas na Usina de Santo Amaro (Usam), uma empresa do governo federal que até 1993 beneficiou minerais pesados para vender a fabricantes de tintas, cerâmicas, sensores, catalisadores e outros equipamentos de alta tecnologia. Lá, todos os operários ganhavam apelidos e suportavam um ambiente insalubre de trabalho, com partículas de poeira espalhadas pelas seções por falta de exaustor e limpeza.
Só entre algumas dezenas de ex-funcionários que continuaram morando ao redor do Brooklin, há 12 operários doentes, e nenhum foi indenizado nem recebe qualquer ajuda do governo para despesas médicas. Sem dinheiro para pagar um táxi, José Costa pega dois ônibus todo o mês para ir ao posto de saúde tentar conseguir de graça o remédio que toma de 12 em 12 horas para amenizar os efeitos da doença. A cada quatro meses, precisa fazer radiografias dos pulmões para acompanhar o avanço da enfermidade. Sofre para subir escadas e caminhar em lombas, e se a temperatura cai um pouquinho a chiadeira e a tosse que lhe acompanham todas as noites aumentam.
"Eu fico triste porque entrei na fábrica saudável e saí de lá com esta moléstia, mas o que a gente pode fazer?", conforma-se Bené, que ainda sonha estar vivo para receber uma indenização pelo sofrimento e conseguir trocar o assoalho de tacos do quarto, gasto pelos 20 anos de uso. Ele vive com a mulher, quatro filhos e quatro netos em uma casa no Jardim Boa Vista, onde a tranca da porta da frente, instalada por medo de assaltos, só é retirada em dezembro por causa das visitas de final de ano.
Severino da Costa precisa se manter afastado de qualquer substância com cheiro forte, o que inclui gasolina e produtos de limpeza. "É só chegar perto que me sinto sufocado", explica. Lorival Santos sente dificuldades para caminhar sempre que segura 10 quilos de açúcar. "Não sei se chego aos 65 anos, porque tem vezes que a coisa aperta", conta ele, relatando as freqüentes dores no peito. Há um forte lastro de realidade no temor.
Seis mortos
Apenas nas proximidades da antiga usina, houve seis mortes de trabalhadores com pneumoconiose desde 1987. Alguns tombaram com a doença associada a outro mal, outros somente por causa do comprometimento dos pulmões, como mostram prontuários médicos e atestados de óbito. Não se sabe o que aconteceu com outros milhares de operários que passaram pela Usam nas cinco décadas de funcionamento da empresa, que empregava em média 400 trabalhadores.
A família de Luiz Pereira Nunes, o Sargento, não esquece da noite em que ele, aos 64 anos, acordou desesperado com falta de ar. Um dos filhos tentou fazer respiração boca-a-boca, mas os pulmões petrificados de Nunes não reagiram. Foi levado às pressas ao hospital, onde chegou morto. "Ele deu a vida para aquela firma e acabou morrendo desse jeito", lamenta a auxiliar de enfermagem Iraiza Pereira Nunes, 42 anos, filha do operário. Do trabalho de Nunes na Usam, a família guarda uma pensão de R$ 576 mensais e uma pilha de radiografias mostrando o definhamento dos pulmões do Sargento. A exemplo de outras famílias de ex-trabalhadores, os Nunes têm planos modestos para se um dia conseguirem uma indenização. Querem terminar a casa que o operário começou a erguer e sonhava usufruir na velhice com a mulher e os cinco filhos.
À espera também está a família de José Martins Queiroz, o Ferrugem. Ele morreu em setembro do ano passado, num trajeto de ônibus para o pronto-socorro. Tinha 65 anos, quase metade passada dentro da Usam, e foi vítima de uma combinação de doença de Chagas com pneumoconiose. "O fôlego dele era metade do que deveria", conta o técnico de eventos Antônio Marcos Freitas, 29 anos, filho do velho empregado da usina.
Outros males
Além de terem comprometida a capacidade respiratória, pacientes com pneumoconiose são pessoas muito mais suscetíveis a outros males. Desenvolvem tuberculose com facilidade e um simples resfriado os joga na cama. É por isso que precisam de acompanhamento médico. "Estes operários estão doentes e morrendo sem receber nada, muitos sem condições de cuidar da saúde e ter uma vida razoável", diz a pneumologista Maria Vera Cruz de Oliveira, do Centro de Referência do Trabalhador de Santo Amaro, da prefeitura de São Paulo, onde parte dos trabalhadores doentes se trata. Os médicos do posto de saúde se esforçam, mas ali os ex-funcionários da Usam têm de disputar atendimento com outros milhares de operários da região e não podem fazer nenhum tipo de exame de urgência.
Não há sinal de intenção do governo federal de indenizar as vítimas da pneumoconiose e se responsabilizar pelo atendimento médico dos doentes. Apesar de há três anos receber apelos por ajuda de ex-trabalhadores, a Indústrias Nucleares do Brasil (INB), que pertence ao governo, foi a última controladora da usina e ficou com o patrimônio instalado no Brooklin, informou em nota que não auxilia as famílias de ex-funcionários porque "não foi notificada formalmente sobre óbito de trabalhador ou doença ocupacional associada à atividade de trabalho da Usam".
A Comissão Nacional de Energia Nuclear (Cnen), órgão do Ministério da Ciência e Tecnologia que também foi dona da usina e é encarregada do controle de instalações como aquela, usa raciocínio semelhante e não faz nada. "Esta é uma questão trabalhista, não está ligada à Cnen", diz Odair Gonçalves Dias, presidente da comissão.
Para Nilton Correia, diretor da Associação Brasileira de Advogados Trabalhistas e membro da Comissão Nacional de Direitos Sociais da OAB, é também uma questão de caráter ético e moral, agravada pelo fato de os trabalhadores terem estado a serviço do governo federal. "O Estado precisa dar o exemplo, ter uma ação educacional, pois compete a ele garantir a saúde do cidadão", afirma o advogado. Para ele, não há dúvida de que os trabalhadores doentes e as famílias dos que morreram têm direito a indenização pelo dano que sofreram na Usam. "Trata-se de um ato ilícito, que gera uma lesão e produz o direito à indenização."

Tumores suspeitos
Os problemas pulmonares podem não ser o único estrago provocado pela Usina de Santo Amaro (Usam) em seus operários. O processo de beneficiamento da monazita - um dos minerais retirados da areia do litoral do Rio de Janeiro manuseados na usina - gera um resíduo rico em urânio e tório, substâncias radioativas com alto potencial de contaminação. Uma das conseqüências mais graves da exposição a essas substâncias é o surgimento de tumores cancerígenos, que muitas vezes levam décadas para começar a se desenvolver. Só entre os antigos funcionários que continuaram morando nas proximidades da usina houve pelo menos oito mortes por câncer nos últimos 20 anos. À falta de um estudo que a comprove ou descarte, a relação desses tumores com o trabalho na Usam é só uma hipótese. Não há dúvidas, no entanto, de que operários eram expostos a excesso de radiação.
Pelas normas da Comissão Nacional de Energia Nuclear (Cnen), que estão sendo reformuladas para se tornarem mais rigorosas, se um trabalhador de uma instalação nuclear receber por mês 1,2 milisievert - unidade usada para medir radiação -, o caso deve ser investigado. Se a dosagem chegar a 4,2 milisieverts por mês, é preciso intervir para afastar o trabalhador da exposição. No acúmulo anual, a dose nunca pode ultrapassar 50 milisieverts.
Relatórios das medições feitas na Usam com dosímetros, pequenos aparelhos que trabalhadores carregam junto ao peito para registrar a radiação recebida, mostram que as dosagens anuais chegavam a 57,7 milisieverts. Nas medições mensais, o quadro era mais grave e com freqüência as doses variavam entre 4,5 e 20 milisieverts. "Levando-se em conta os limites máximos estabelecidos, houve excesso de exposição em alguns meses", confirma Sônia Regina Pereira de Souza, que é física, pós-doutoranda do Departamento de Medicina Preventiva da Universidade de São Paulo (USP) e analisou a documentação a pedido da reportagem.
Rastro do câncer
Dos casos que se têm notícia, a última vítima de câncer entre os ex-funcionários da Usam foi Uiraquitã Rodrigues Pinto, o Quitã. Morreu há 11p meses, aos 50 anos, depois que uma série de quatro cirurgias devorou seu estômago e consumiu parte do fígado e do intestino no rastro do câncer. Nos meses que antecederam sua morte, o ex-funcionário da Usam se dedicou com afinco ao hobby da pintura e produziu dois quadros que retratam Jesus Cristo, um sorrindo e tranqüilo, o outro banhado em lágrimas.
Quitã trabalhava no setor administrativo, mas transitava com freqüência pela área operacional da fábrica. "Havia um fluxo grande de documentos e pessoal pelos diversos setores da empresa, sem nenhum controle, e eu sempre desconfiei que a doença dele foi decorrência disso", diz o biólogo Utabajara Rodrigues Pinto, 55 anos, que também trabalhou na Usam e é irmão do funcionário morto. Resultados de exames de urina, fezes e pulmões realizados no começo da década de 1990 pelo Instituto de Radioproteção e Dosimetria, que pertence à própria Cnen, mostram que tanto operários da área de produção quanto do setor administrativo tinham o organismo contaminado por tório e urânio. "Os testes revelam índices muito acima dos limites", diz Ricardo Martins, médico do Hospital Universitário e professor do Serviço de Pnemumologia da Universidade de Brasília, que também avaliou a documentação.
Esse acúmulo de indícios preocupantes - somados aos resultados de inspeções feitas pela Delegacia Regional do Trabalho e pela Cnen durante a operação da usina, que mostravam irregularidades graves na falta de proteção de operários - é suficiente para justificar a realização de um grande levantamento sobre a saúde dos ex-operários.
O resíduo radioativo produzido pela Usina de Santo Amaro no Brooklin está guardado em depósitos da INB instalados em cidades do interior de Minas Gerais e em São Paulo. O terreno de 16 mil metros quadrados ocupado pela usina foi vendido, e um condomínio de luxo, com seis prédios, está sendo erguido no local. Os preços dos apartamentos variam entre R$ 400 mil e R$ 1,5 milhão, e os primeiros moradores devem ocupar o imóvel antes do final do ano. Os últimos indícios da passagem da usina pelo Brooklin Paulista se escondem nos pulmões de operários que sobreviveram e nas suspeitas de famílias dos que morreram. (SN)

A terrível Torta II
Um setor da Usina de Santo Amaro era ainda mais insalubre que os demais. Nesse local, conhecido entre os operários por TQM, sigla de Tratamento Químico de Monazita, era produzido um resíduo tóxico chamado de Torta II, rico em urânio e resultante do beneficiamento dos minerais da areia. Nos últimos anos da década de 1970 e nos primeiros da década de 1980, três operários se revezaram ali em turnos de oito horas.
Um deles era Nilton Gonçalves, apelidado de Prefeito. Morreu em 1984, aos 51 anos, vítima de câncer. "Quando chegava em casa, ele tirava o macacão cheio de pó que usava na usina, botava no meio do quintal e dizia que não era para ninguém chegar perto, que aquilo era veneno", lembra Nice Gonçalves, 65 anos, irmã do operário. A doença lhe causou tanta dor que o Prefeito chegava a bater a cabeça na parede de desespero. "A gente ia ao hospital para ele fazer radioterapia e encontrava outros funcionários da usina também em tratamento", conta Nilce.
Outro integrante do trio da TQM era Antônio Torres, que ganhou o apelido de Vai Chover por causa da forma como puxava assunto para filar um cigarro. Os relatórios dos medidores de radiação mostram que ele recebeu, só entre 1980 e 1984, oito dosagens mensais acima do limite máximo. Em três meses, ele foi exposto a mais que o dobro do tolerável. Vai Chover morreu aos 64 anos em dezembro de 1998, depois de um câncer tomar conta de sua próstata, consumir a bexiga e obrigar os médicos a substituírem o intestino por uma bolsa. "Ele sentiu muita dor", lembra Maria Mendes Torres, 64 anos, que faz malabarismos para sustentar três filhos desempregados com a pensão herdada do marido. "Será que a morte foi por causa do trabalho?"
O sobrevivente do antigo grupo que mexia com a Torta II é Waldemar Cesário, 54 anos. "Graças a Deus ainda não me aconteceu nada", afirma. A agonia dos velhos colegas a que assistiu prova que o uso da expressão "ainda" não é paranóia. (SN)

Convenção descumprida
Em junho de 1960, uma reunião da Organização Internacional do Trabalho (OIT) resultou na aprovação da Convenção de Proteção Contra as Radiações Ionizantes, conhecida na área nuclear como Convenção 115. Em seu 12o artigo, a convenção definiu pela primeira vez a obrigatoriedade de realização de exames médicos em funcionários de instalações nucleares mesmo depois de eles terem deixado de trabalhar. Estudos feitos com sobreviventes da bomba de Hiroshima e outras vítimas mostram que tumores resultantes da exposição à radiação podem levar anos ou décadas para se manifestarem. O Brasil aprovou, ratificou e promulgou o documento. Mesmo assim, a INB afirma que não precisa cumprir a convenção porque ela não foi regulamentada. E a Cnen informa que não é seu papel cuidar de algo que está na esfera trabalhista. Tanto o Ministério do Trabalho quanto a representação no país da OIT garantem que a convenção está em vigor no país e deve ser cumprida. (SN)

Tragédia documentada

DESDE A GUERRA
Um grupo de austríacos fundou a empresa Orquima em 1942, que montou a Usina de Santo Amaro, no bairro Brooklin Paulista, em São Paulo, para beneficiar areias monazíticas, ricas em urânio e retiradas do litoral do Rio de Janeiro. Depois da Segunda Guerra Mundial, o governo federal encampou a unidade. A Comissão Nacional de Energia Nuclear (Cnen), a Nuclebras e a Indústrias Nucleares do Brasil (INB) administraram a usina

CONDOMÍNIO DE LUXO
A usina foi fechada em 1993. O terreno na esquina das ruas Princesa Isabel e Laplace, onde funcionava, foi submetido a um processo de descontaminação, que incluiu a retirada de camadas de terra. No lugar foi erguido um condomínio de luxo, com apartamentos vendidos por até R$ 1,5 milhão

CB, 07/10/2005, Brasil, p. 10-11

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