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Os caiovás-guaranis se mobilizam: querem terras

Estado de S. Paulo-SP
Autor: Carlos Souliê do Amaral
25 de Out de 2001

O grupo de índios caiovás-guaranis que ocupou por dois anos e meio uma fazenda do Mato Grosso do Sul e foi desalojado pela Polícia Federal no último dia 16 agora ameaça matar o gerente e os empregados da fazenda, que se chama Brasília do Sul.
Há três dias, Ramão Evangelista, o gerente, recebeu dois telefonemas de advertência. "Abandonem suas casas e saiam daí; quem não obedecer será morto sem dó nem piedade," ordenou uma voz feminina. Depois disso, um rapaz de 22 anos chamado Cláudio Pires, foi surpreendido num pasto quando abastecia os cochos de sal e espancado por três índios que tentaram cortar-lhe um dedo da mão. Por sorte, o rapaz revelou-se bom de pernas e conseguiu escapar. Ramão, de 38 anos, diz que confia em Deus e, com a divina proteção, continuará trabalhando na fazenda até reparar os estragos que os índios fizeram.
Cercas cortadas, açudes rompidos, casas depredadas e saqueadas, 120 animais mortos a tiro, machado ou facão, que continuam se decompondo e infestando o ar com o cheiro podre de carniça, urubus aos montes, pastos queimados, tratores quebrados e 72 homens, mulheres e crianças em estado de trauma, tentando superar os sustos que viveram, ajudam Ramão a se distrair.
Sobressaltos - A fazenda Brasília do Sul, localizada entre os municípios de Caarapó e Juti, na região de Dourados, com 9.345 hectares, cerca de 10 mil cabeças de gado, 670 km de cercas, sede com jardim, pomar e piscina, campo de aviação, currais e 23 moradias de excelente qualidade para os 23 funcionários registrados, vem passando por sobressaltos desde 27 de abril de 1999. Nesse dia, um bando de 60 índios comandados por Marco Veron, um paraguaio de 64 anos, invadiu e ocupou 97 hectares estrategicamente situados ao lado do único acesso à sede da fazenda: uma ponte sobre o rio que corta a propriedade.
Acordo - Uma sentença liminar de reintegração de posse, relativa à área ocupada pelos índios e seus barracos, somou-se a outra, de interdito proibitório, que defendia o restante da fazenda. Nenhuma das sentenças, mesmo revigoradas por sucessivas ordens judiciais, foi cumprida. Em julho do ano passado a Fundação Nacional do Índio (Funai) e a Polícia Federal fizeram um acordo pelo qual os invasores se comprometiam "a não impedir o livre acesso de pessoas, notadamente trabalhadores, à referida fazenda".
Os acampados receberam cestas básicas, cobertores, roupas, remédios e transporte por parte do proprietário, Jacintho Honório Silva Filho, um senhor de 85 anos, residente em São Paulo, que adquiriu a Brasília do Sul em 1962.
Os índios quebraram o acordo, queimaram pastos, destruíram cercas e abateram animais. Juraram que se o proprietário ou qualquer parente dele aparecesse por lá, "muito sangue iria correr". O proprietário não se intimidou. Descia de avião na fazenda, evitando confrontos com os invasores. A partir de junho julgou mais prudente administrar por rádio e por telefone, de São Paulo e de Campo Grande, as inúmeras providências que envolvem a produção agropecuária de escala.
Terror - Pois no final de maio a situação começou a piorar. Araldo Castilho Veron, filho do chefe da invasão, Marco Veron, pediu carona no ônibus que transporta os filhos dos funcionários para a escola de Juti. Logo que o ônibus saiu da frente da escola, em direção à fazenda, Araldo começou a perturbar uma aluna de 12 anos, levantando a saia da menina, passando a mão em suas coxas e praticando outros atos libidinosos. Quando o motorista do ônibus tentou defender a criança, Araldo passou a gritar que ia matar todo mundo e, afirmando que tinha uma faca, obrigou o motorista a levar o veículo até a área dominada pelos índios.
Dentro do ônibus havia uma professora que, pelo telefone celular, conseguiu entrar em contato com o gerente Ramão, pedindo socorro. Ramão chamou a polícia, mas, quando esta chegou, "o agressor se evadiu para local incerto e não sabido", conforme o registro de 28 de maio de 2001 da Delegacia de Polícia de Juti.
Antepassados - Jacintho Honório não sabe até agora por que esse bando escolheu sua fazenda para invadir. A alegação é sempre a mesma: que ali teria sido a aldeia dos antepassados do grupo (no caso, da família Veron). Mas ele lembra que, numa reunião da Funai em Campo Grande, o indigenista Apoena de Meirelles declarou que haviam invadido a fazenda errada. "Senti-me chantageado, senti-me impotente para realizar meu trabalho, vivi sob um regime de terror," desabafa o velho empresário rural, desbravador dos sertões Caarapó. "Afinal, nós não trabalhamos apenas com quantidade; temos um programa de qualidade, de melhoramento genético; inseminamos 3 mil vacas, desenvolvemos técnicas de fertilidade do solo, contribuímos para o desenvolvimento do Estado."
Paraguaio - No último dia 5, uma sexta-feira, os seguidores de Marco Veron, que se diz cacique da nação caiová-guarani, mas, na verdade, é um paraguaio casado com brasileira, funcionário aposentado do Ministério da Agricultura, do qual recebe e retira mensalmente seus proventos, na agência do Banco do Brasil de Caarapó, foram tomados de incontrolável furor.
Os invasores obrigavam os trabalhadores da fazenda a nunca chegar em casa depois das 19h30. Aconteceu, porém, um imprevisto: a mulher do capataz teve de ir ao velório de um parente e atrasou o marido, bem como alguns outros empregados, que aproveitaram a ida da camionete à cidade para fazer compras. Chegaram na entrada da fazenda às 20h30. A ponte estava cercada pelos índios que espancaram o capataz e a mulher com coronhadas de espingarda. "Vocês precisam aprender a obedecer", gritavam.
Ameaças - Tomaram as compras dos que estavam na carroceria e mandaram todos ir embora da fazenda. A camionete ficou presa. Ao saber do ocorrido, Ramão pegou a camionete do patrão e foi até a ponte. "Assim que cheguei lá eles me cercaram e me fizeram descer," conta o gerente. "Obrigaram-me a tirar camisa e os sapatos, amarraram minhas mãos e me levaram para uma choça de palha chamada 'casa de reza', onde pintaram cruzes nos meus pés; depois chamaram mulheres e crianças para me pintar o peito, as costas, o rosto e até as orelhas; Araldo e a irmã dele, Dirce Veron, que estuda Direito na Universidade Católica Dom Bosco, de Campo Grande, estavam pintados e me ameaçavam de morte; a Dirce, que é chamada de Xamirim, tinha uma coroa de penas na cabeça, vestia um colete comprido, caro, de seda, calçava botas e se dizia armada; mas o Araldo, irmão dela, encostava um facão no meu pescoço e berrava que ia me matar, que ia matar o seu Jacintho, que ia matar todos os miseráveis que moravam na fazenda".
Ramão agradece a Deus e à esposa do "cacique" Marco Veron, dona Júlia, a graça de ter escapado da morte. "Esta senhora me tratou bem," reconhece. "Com a permissão dela fui até a camionete e, pelo rádio, mandei os funcionários fugirem da fazenda".
Tiro - Ao se dar conta disso, Araldo deu um tiro nos pés de Ramão. Não acertou. Furioso, arrastou o gerente novamente até a "casa de reza", amarrou-o pelos pés, pendurou-o numa trave e começou a espancá-lo na barriga, nas costas e nos rins. A Xamirim, irmã dele, pediu para Araldo parar de bater. "Isto é sério ou é brincadeira?" retrucou Araldo. "Temos de fazer esse tipo de pressão, senão não funciona", argumentou. Mas a Xamirim insistiu, dona Júlia insistiu e Araldo parou.
Ramão conta que então foi levado à casa de sede da fazenda, onde os índios arrebentaram portas e janelas, depredaram a piscina, defecaram por toda parte, até dentro da geladeira, roubando o que lhes interessava. Araldo bebia álcool puro, de uma garrafa encontrada no banheiro, cortava-se com o facão, lambia o sangue e fingia entrar em transe, "como se estivesse possuído por um animal selvagem".
A empregada da casa, Ana Maria, escondida no forro, entre a laje e o telhado, com mais 8 crianças, só saiu de seu refúgio quando os ruídos cessaram. Os índios tinham ido depredar as outras casas, de onde levaram roupas, mantimentos e até óculos de grau, além de quebrar portas, pias, televisões, aparelhos de som, louças e brinquedos. Quando avistaram a empregada e as crianças, começaram a gritar. "Era o fim da tarde", lembra Ramão, "eu aproveitei a distração e fugi para o meio do mato; a Ana Maria e as crianças também tinham conseguido fugir, debaixo de tiros".
Eles se encontraram em Juti, onde Ramão conseguiu hospedar o pessoal da fazenda em hotéis. No dia 13, o juiz Odilon de Oliveira, da Justiça Federal de Campo Grande, requisitou força policial para, mais uma vez, fazer cumprir o mandado de reintegração de posse da fazenda Brasília do Sul, com a retirada dos invasores. No dia 16, mais de 100 policiais recrutados em quatro cidades cercaram o acampamento de Marco Veron.
Resistência - Os índios queimaram as pranchas da ponte e resistiram à ordem de desocupação. A Xamirim ameaçava suicidar-se bebendo veneno. Apontava para um galão de herbicida que continha um líquido branco e efervescente, corria de um lado para outro e às vezes arrastava mulheres pelo cabelo gritando "Essa já morreu! Vejam o que vocês estão fazendo!"
A polícia precisou usar bombas de efeito moral para controlar a reação dos acampados. Estes, inconformados, foram conduzidos à aldeia Tei-Cuê, dos Caiová-Guarani, em Caarapó.
Essa aldeia que abriga 2.600 índios, tem 3.500 hectares. Seus moradores são trabalhadores temporários, com carteira de trabalho, carteira de identidade e título de eleitor. O prefeito de Caarapó, Guaracy Boschilia (PSDB), informa que há sintomas de aids entre eles.
"Não há dúvida de que se excederam na fazenda Brasília do Sul," reconhece Guaracy. "Mas certamente estão preocupados com o futuro dos filhos, já que não há mais erva mate para colher, matas para derrubar nem cercas para fazer," acrescenta. O prefeito gaba-se de ter construído 3 represas na aldeia, "com uma verba arrancada do Ministério da Justiça, de R$ 37 mil".
O chefe do Núcleo de Apoio da Funai em Dourados, Jonas Rosa, também contemporiza em relação à atitude dos invasores da Brasília do Sul. "Eles alegam que são descendentes dos moradores das antigas aldeias existentes na região antes da criação da Colônia Agrícola de Dourados, em 1943, pelo governo de Getúlio Vargas", observa. "Acho que os índios estão com a razão porque teriam direito às terras; mas os fazendeiros têm uma titulação forte de suas propriedades que, a bem da verdade, não foram griladas, foram legalmente adquiridas".
Nesse dilema, a Funai, entrou na Justiça com uma ação de agravo de instrumento, contra a liminar conquistada pelo proprietário da Brasília do Sul, pedindo, para os índios, a reintegração de posse na área invadida. Jonas Rosa vai além: "Não considero que os índios foram violentos; fizeram uma cena muito grande, mas o ônus da prova cabe a quem os acusa, não a eles; pessoalmente não posso afirmar que houve violência".
Sentença - Na sentença em que ordenou a retirada dos invasores, o juiz Odilon de Oliveira comenta: "Costumeiramente, os índios, possivelmente incitados, invadem propriedades e delas não saem, forçando a Funai a iniciar procedimento de demarcação administrativa. A partir daí, os transtornos para os proprietários tornam-se desastrosos, a exemplo do que vem ocorrendo com a fazenda Brasília do Sul". E adverte: "Não se deve colocar o carro na frente dos bois pois há um direito de propriedade a ser respeitado; o fato de a Constituição Federal determinar que as terras ocupadas por silvícolas sejam demarcadas, não importa dizer que todos os proprietários de terras cuja posse índios passem a reinvindicar, possam ser sumariamente espoliados, manu militari."
A propósito: foi constatado que o galão de herbicida com que os índios ameaçaram suicidar-se continha uma mistura de água, pasta de dente e bicarbonato de sódio.

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