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O vale da energia

O Paraense-Belém-PA
Autor: Lúcio Flávio Pinto
30 de Out de 2001

O Araguaia-Tocantins será a maior fonte de energia do Brasil dentro de uma década, gerando o equivalente a um terço de toda a energia gerada atualmente em todo o País

Apenas duas hidrelétricas estão no momento em atividade no vale do Araguaia-Tocantins, cuja bacia abrange 10% do território brasileiro, em cinco Estados (Mato Grosso, Goiás, Tocantins, Maranhão e Pará). Mas quando a primeira década deste século terminar, as usinas serão 14, 10 no Tocantins e quatro no Araguaia. Elas terão capacidade para gerar 20 mil megawatts, o equivalente a um terço da potência atual de todas as hidrelétricas brasileiras somadas. O vale do Araguaia-Tocantins será, então, a maior fonte de energia de fonte hídrica do país.
Para uma área que até 1984, quando a usina de Tucuruí foi inaugurada, era zero em matéria de geração, a transformação será brutal, além de rápida. A segunda etapa da primeira hidrelétrica construída no vale será concluída no próximo ano. Teoricamente a potência de Tucuruí duplicará, dos 4,2 mil MW de hoje para 8,3 mil MW em 2006, consolidando sua posição de segunda maior hidrelétrica brasileira (primeira, porém, se considerada apenas a metade que cabe ao Brasil em Itaipu, ou 6 mil dos 12 mil MW finais).
Mas a potência firme (aquela energia que a usina é capaz de produzir em qualquer época do ano), que hoje é de 2,1 mil MW, só será elevada para 3,3 mil MW com a declarada duplicação - que será apenas nominal, portanto. Essa queda acentuada de potência, de 8,3 mil MW no auge do inverno para 3,3 mil MW no pique da estiagem, deve-se à falta de água. Entre um período e outro a vazão do Tocantins/Araguaia diminui 60 vezes.
A capacidade de armazenamento no reservatório de Tucuruí está chegando ao seu limite máximo, não podendo ir além de 15 bilhões de metros cúbicos de água útil, a que está no nível de captação da tomada que conduz às turbinas (para um total de quase 50 bilhões de m3 de volume global do lago, o maior do país sob essa perspectiva).
Assim, metade das 23 máquinas que estarão instaladas na casa de força quando ela for duplicada permanecerão completamente paradas durante dois ou três meses do ano. Isto significará um fator de capacidade bem inferior aos 50% considerados como limite mínimo aceitável internacionalmente.
Por enquanto, apenas uma outra hidrelétrica está em atividade, também no Tocantins, a de Serra da Mesa, com potência de 1,3 mil MW. Mas, além da segunda etapa de Tucuruí, estão em construção mais duas usinas menores (Lajeado, com 850 MW, e Cana Brava, com 450 MW). Mais quatro no Tocantins vão ser licitadas (a maior delas é Serra Quebrada, com 1,2 mil MW) e outras quatro no Araguaia. Se todas forem construídas até 2010, nesse ano o Tocantins estará com capacidade nominal instalada de 15,3 mil MW e o Araguaia com 3,9 mil MW. Nenhuma bacia fluvial será mais importante como centro energético no Brasil.
Favorecidos pela conjuntura de crise aguda, os engenheiros e economistas estão dando um andamento acelerado a esse planejamento. Ao tratar da viabilidade dos empreendimentos caso a caso, parecem ter colocado em plano secundário a visão de conjunto e integrada da gestão das águas dos dois rios, que são grandes individualmente e se tornam ainda maiores ao juntarem suas águas, na divisa entre o Maranhão e o Pará.
O que está em foco é o tamanho econômico das usinas e o enfoque exclusivamente energético da utilização da água. O uso do rio como meio de transporte está sendo considerado, mas por outra instância governamental e como se as duas formas de aproveitamento fossem estanques, como se a água não fosse uma só.
Transposição - Essa forma de esquizofrenia é bem exemplificativa em Tucuruí: enquanto a Eletronorte toca a jato as obras da ampliação da hidrelétrica, o Ministério dos Transportes recolhe sobras de verbas para manter, a passo de cágado, a construção do sistema de transposição da barragem. Tudo indica que as eclusas ainda estarão incompletas quando a concretagem da casa de máquinas for arrematada. Com o deslocamento das duas frentes de serviço, mantidas pela mesma empreiteira, a Camargo Corrêa, o orçamento das eclusas vai crescer individualmente. Isso pode provocar nova paralisação de uma obra que já se arrasta há mais de 20 anos.
Em grande medida, o porte da hidrelétrica inviabilizou a sua própria transposição. Para gerar muita energia num rio de planície como o Tocantins, Tucuruí teve que se valer de um grande desnível artificial, criado pela barragem. A contrafação desse desnível foi a necessidade de construir um sistema muito caro para vencer essa diferença de 70 metros entre os pontos de jusante e de montante da barragem.
Quando (e se) concluído, ele será o maior do mundo, a um custo não inferior a 400 milhões de dólares. Há enorme relutância em Brasília em cumprir esse orçamento sem uma resposta econômica imediata. As eclusas ficaram patinando no tempo enquanto a usina ia queimando etapas. Vencer o descompasso parece coisa fora de perspectiva no universo da duplicação, que se completará no final do próximo ano.
A própria usina, entretanto, também é vítima dessa busca de quantidade máxima de energia. Projetando barragens de grande queda, sem a qual turbinas gigantescas não poderiam ser acionadas, provocaram a submersão de áreas extensas. O lago de Tucuruí tem números impressionantes, como o maior volume de água entre os reservatórios do país, a segunda maior extensão, sete mil quilômetros de perímetro e influência ao longo de 200 quilômetros Tocantins acima. Mesmo com esse porte, a variação do regime hidrológico na Amazônia impossibilitará o reservatório de manter em operação, no auge do verão, mais do que 10 das 23 gigantescas máquinas da usina, quando ela chegar à sua plenitude produtiva, em 2006.
Como haverá outras 13 usinas rio acima, seria de se imaginar que essa enorme depleção em Tucuruí seria compensada pelos represamentos de montante, tanto no Tocantins quanto no Araguaia. Uma operação conjugada integraria os diversos reservatórios, assegurando uma potência firme mais alta com a regularização do fluxo de água.
Esta, entretanto, é uma incógnita no plano de aproveitamento energético da bacia. A Eletronorte diz que a maioria das novas usinas será a fio d´água, ou seja, sem reservatório. A água que chegar à barragem passará imediatamente pelos condutores para as turbinas e será descarregada a jusante, sem acumulação. Se isso for verdade, a queda de potência dessas hidrelétricas entre o inverno e o verão será ainda maior e todo o fabuloso sistema energético do Araguaia-Tocantins se transformará, no pique da estiagem, numa visagem do que alcançará no período máximo de chuvas.
Mas, e se não for verdade? Como poderão chegar às suas potências nominais as hidrelétricas de Marabá (2,1 mil MW) e Santa Isabel (pouco mais de mil MW) sem reservatório? A de Santa Isabel, por exemplo, no projeto original, mesmo tendo menos de um quarto da potência da 1ª etapa de Tucuruí, ia formar um lago de área equivalente ou superior aos 2.850 quilômetros quadrados do reservatório da maior hidrelétrica do vale. Na atual versão, Santa Isabel continua aparecendo com a mesma capacidade (1.080 MW), mas nenhuma referência é feita ao seu reservatório, um pesado custo ambiental (e social) que fora o responsável pelo arquivamento do projeto na década de 80.
Houve modificação de fato no projeto, melhorando incrivelmente o seu desenho, ou trata-se apenas de manipulação de informação? Quando está em causa modificação tão profunda do uso de uma bacia como a do Araguaia-Tocantins, com área de 800 mil quilômetros quadrados, maior do que a da maioria dos países do planeta, responder a essa dúvida não é exatamente uma tarefa acadêmica. Respondê-la satisfatoriamente parece exigir, antes, abrir as caixas pretas do setor elétrico brasileiro. Como sempre, herméticas

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