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'O Sol está descendo e esquenta a Terra'

OESP, Espaço Aberto, p. A2
Autor: NOVAES, Washington
21 de Abr de 2006

'O Sol está descendo e esquenta a Terra'

Washington Novaes

Nesta semana em que se comemora o Dia do Índio e representantes de dezenas de grupos se reuniram em Brasília, ao mesmo tempo que o presidente da Funai, Mércio Pereira Gomes, sugere que o encontro se transforme em fórum permanente - um "Parlamento Indígena" -, são inquietantes as notícias de várias partes do País que se referem a essas populações.
Seria, de fato, um avanço se se pudesse ter o Parlamento, uma espécie de "Casa da Palavra" (como sugeriu em outros tempos Ailton Krenak) dos 450 mil índios que existem no País. Porque ainda neste mês eles apresentaram, numa Carta de Mobilização Nacional, muitas reivindicações ao governo federal, cujo "balanço de atuação" consideram "muito negativo". E uma delas é exatamente a criação de um Conselho Nacional de Política Indigenista, subordinado à Presidência da República e capaz de fazer tramitar com rapidez questões pendentes - como as 14 demarcações de terras submetidas ao Ministério da Justiça, onde só uma teve a portaria declaratória publicada. O próprio projeto de gestão do patrimônio genético - que envolve os conhecimentos dos índios sobre espécies e seu direito a participar dos benefícios da exploração comercial - não consegue caminhar no Executivo e chegar ao Congresso (o Brasil sediou a recente reunião da Convenção da Biodiversidade - COP 8 - em Curitiba, onde esse era um dos temas centrais, sem ter feito o dever de casa). Enquanto isso, agravam-se conflitos nos Estados de Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, na Amazônia, em Santa Catarina, na Bahia, em Pernambuco e em outras partes.
Não é um tema pitoresco ou excêntrico. Envolve questões centrais para o País. Todos os estudos do Ministério do Meio Ambiente e de outras instituições mostram que a manutenção de áreas indígenas é o caminho mais eficiente para a conservação da biodiversidade - e esta é vital para o País. Mas o projeto de gestão de terras indígenas a ser encaminhado ao Fundo Global para o Meio Ambiente (GEF) para receber recursos financeiros continua empacado, reclamam os índios. Como continuam malparadas as políticas de saúde e educação em suas áreas.
No Congresso, tramitam 105 projetos de lei e emendas constitucionais que afetam os grupos indígenas e que incluem as áreas de mineração e uso de recursos naturais. Agora mesmo está para entrar na pauta um projeto que regulamenta a mineração nessas áreas - polêmico, complicado, porque certamente abrirá caminhos a conflitos entre não-índios e índios, da mesma forma que entre os próprios índios, porque há uma parte a favor (que quer ter dinheiro para comprar bens que não produzem) e a maioria contra (inclusive as lideranças mais experientes, que temem a destruição de suas culturas).
Outro ângulo complicado é das novas hidrelétricas. Na carta mencionada, as lideranças indígenas manifestaram-se contra as novas barragens previstas para a Amazônia (Belo Monte, Rio Madeira, Estreito), que afetarão suas áreas. Da mesma forma, continua na pauta a barragem do Rio Kuluene, em Mato Grosso, que afetará decisivamente as condições de todo o Parque Indígena do Xingu, para onde esse rio corre e ajuda a formar, com o Batovi e o Ronuro, o majestoso Xingu.
Em artigo recente neste espaço (20/1), comentou-se que a empresa construtora da barragem alegava ter o consentimento pessoal do chefe yawalapiti Aritana, um dos mais influentes no Xingu, graças a um acordo promovido pelo governador Blairo Maggi. Mas outros índios, inclusive Piracumã, irmão de Aritana, comunicavam à Funai que entrariam "em guerra" se o projeto fosse adiante. Agora, em contato telefônico com o autor destas linhas, Aritana se manifesta absolutamente contrário à implantação da hidrelétrica, que, segundo ele, seria muito prejudicial a todo o Parque do Xingu. "Todas as lideranças são contra a barragem", diz Aritana.
Mas os índios não dispõem de canais institucionais de manifestação. Na COP 8, quando se discutia um regulamento internacional para acesso de um país à biodiversidade de outro país e a repartição de benefícios da exploração comercial de espécies, as lideranças indígenas exigiram participar das negociações, com direito a voto, já que o seu conhecimento está envolvido na exploração e precisa ter o mesmo status do conhecimento científico. Decidiu-se que os representantes das comunidades indígenas poderiam participar das discussões, mas sem direito a voto (porque este implicaria o reconhecimento de soberania). E nem se discutiu o status do seu conhecimento, que freqüentemente é decisivo: basta um índio mostrar que esta ou aquela planta serve para tratar desta ou daquela doença para poupar anos de pesquisa entre milhares de espécies e caros investimentos.
Na maior parte das vezes, entretanto, temas como esses são considerados "exóticos", quando não irrelevantes - apesar de sua importância para questões centrais como são as relacionadas com os limites que já enfrentamos no terreno dos recursos e serviços naturais. Índios continuam se suicidando, porque não têm espaço para vivenciar sua cultura nem qualificação para viver fora dela - como os caiovás-guaranis, de Mato Grosso do Sul.
Se não fôssemos tão preconceituosos, prestaríamos atenção ao que os pajés dessa gente, os nhanderu, transmitem: "O Sol está descendo, por causa do que estamos fazendo, e vai esquentar a Terra" (a ciência lhes dá toda a razão). Ou ao que diz o mito primordial dos ianomâmis: "Nosso povo é que sustenta a abóbada superior do universo, que paira sobre a abóbada inferior; se ele desaparecer, a abóbada superior desabará e tudo pode se acabar."
Convém ouvir.

Washington Novaes é jornalista

OESP, 21/04/2006, Espaço Aberto, p. A2

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