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O quarto elemento

Blog da Laura Capriglione- https://br.noticias.yahoo.com/laura-capriglione/
Autor: Laura Capriglione
15 de Abr de 2014

Você entregaria a investigação sobre crimes medonhos ao filho de um acusado de tê-los cometido? Não. É claro que não. Mas é isso o que a Comissão Nacional da Verdade, incumbida de investigar as graves violações de Direitos Humanos ocorridas entre 18 de setembro de 1946 e 5 de outubro de 1988, está fazendo.

Sob o comando da psicanalista Maria Rita Kehl, o Grupo de Trabalho encarregado de apurar os crimes de Estado cometidos contra camponeses e indígenas incluiu três pesquisadores: Heloísa Starling, Wilkie Buzatti e, como o quarto elemento, Inimá Ferreira Simões, jornalista com mestrado em Cinema pela Escola de Comunicações e Artes da USP.

Pois Inimá Simões, agora encarregado de pesquisar violências cometidas contra indígenas, surpresa das surpresas!, vem a ser filho de Itamar Zwicher Simões, indigenista e chefe de posto indígena, acusado nominalmente de corrupção, maus-tratos, ameaças, roubo, escravização e arrendamento de terras inarrendáveis em áreas dos índios.

A inclusão de Inimá Simões nos trabalhos da Comissão Nacional da Verdade foi feita em 5 de novembro de 2012, por intermédio da Resolução no 5. Entrou em vigor na data de sua publicação no Diário Oficial. Já seria notável que, em vez de antropólogos, indigenistas, indígenas e especialistas afins, a Comissão Nacional da Verdade tenha entregue a apuração desse capítulo dramático da história nacional, verdadeiro genocídio contra os povos originários da América, a um mestre em Cinema com trabalhos sobre a produção da Boca do Lixo (nome dado ao quadrilátero paulistano no centro da cidade, em que se produziam as famosas pornochanchadas nos anos 1970/80)

Mas, na data da publicação da Resolução no 5, ainda não era conhecida a parte mais complicada da biografia de Inimá Simões -exatamente a que diz respeito a sua filiação.

É que todas as acusações contra o pai de Inimá Simões constam de um relatório que ficou desaparecido por 44 anos, resultado de uma caudalosa investigação feita, em plena ditadura, pelo procurador Jader de Figueiredo Correia, que percorreu mais de 16 mil quilômetros, entrevistou dezenas de agentes do Serviço de Proteção ao Índio (o órgão que antecedeu a Funai), visitou 130 postos indígenas.

O chamado "Relatório Figueiredo", com seus mais de 30 volumes totalizando 7.000 páginas, inclui acusações graves contra 39 agentes públicos, entre os quais o pai de Inimá Simões.

São denúncias de assassinatos, corrupção, torturas, estupros, maus-tratos, roubos, exploração sexual de índias, cometidas por agentes públicos entre novembro de 1967 e março de 1968, quando o texto foi divulgado.

Mas sobreveio o Ato Institucional no 5, de 13 de dezembro de 1968, e o terror de Estado instaurado levou o Relatório Figueiredo a uma espécie de limbo. Todo o papelório desapareceu dentro da burocracia. Como um cemitério indígena, sabia-se que existia, mas não se sabia onde estava.

A pá de cal foi lançada em 1976, ano da morte de Juscelino Kubitschek em um acidente de automóvel, quando também desapareceu o procurador Jader de Figueiredo Correia, morto em outro acidente rodoviário.

O Relatório só ressurgiu desse limbo em dezembro de 2012, quando foi localizado em inúmeras caixas depositadas no Museu do Índio, no bairro de Botafogo, no Rio de Janeiro.

Entidades de defesa dos Direitos Humanos e dos índios apressaram-se em denunciar o que poderia ser um grave conflito de interesses consubstanciado na presença de Inimá Simões na Comissão Nacional da Verdade.

Até que ponto o interesse privado do quarto elemento na eventual reparação da memória paterna poderia comprometer ou influenciar de maneira imprópria seu trabalho de identificação dos defraudadores dos direitos indígenas? Como ficaria a imparcialidade?

Maria Rita Kehl, coordenadora do grupo, porém, opôs-se à saída do amigo de longa data. Em entrevista à revista "Carta Capital" disse: "O pouco que eu sabia sobre índios antes da Comissão [Nacional da Verdade] foi por causa de conversas com ele."

A psicanalista não vê maiores problemas na permanência de Inimá Simões na Comissão. "Se existe um conflito é de ordem pessoal, já que provavelmente ele está sofrendo ao ler determinadas coisas. Mas não há conflito de interesse para a produção do meu relatório", disse. E garantiu ainda ontem em reunião com entidades indígenas, de defesa dos direitos humanos, antropólogos e indigenistas, que ele, o filho sofredor, prosseguirá.

Criança durante o governo do general Emílio Garrastazu Médici, eu ouvia a propaganda do regime falar de "Brasil Grande", de integração nacional e da construção de estradas como a Transamazônica, rasgando a floresta, as aldeias indígenas isoladas. Em tempos de homens chegando à Lua, estávamos nós, os brasileiros, contactando povos desconhecidos.

Os índios estiveram no meio do caminho do maior projeto estratégico do regime militar; o que por fim realizou a conquista do oeste e abriu novas fronteiras para o agro-negócio e a mineração. Pagaram o preço do sofrimento terrível e do quase extermínio por isso.

É incrível que a responsável por contar essa história de tanta dor não dê ao relatório que deverá entregar em dezembro de 2014 a aura de autonomia e independência que uma tristeza assim exige.

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