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O mistério da multiplicação dos pescadores

O Globo, Opinião, p. 3-4, 9
Autor: BRANCO, Gil Castello
05 de Out de 2011

O mistério da multiplicação dos pescadores

Gil Castello Branco

A Bíblia conta sobre a multiplicação dos pães e dos peixes. Na Galileia, Jesus pregava para uma multidão quando anoiteceu e aproximou-se o horário do jantar. Diante da preocupação dos seus discípulos, Jesus chamou um menino que tinha à mão um cesto com cinco pães e dois peixes e orientou seus apóstolos a distribuir esses alimentos. O milagre permitiu que mais de 5 mil pessoas fossem alimentadas.
No Brasil, a multiplicação recente não é dos pães ou dos peixes, mas sim dos pescadores. A Lei 8.287 criou o seguro-defeso, a chamada "bolsa pescador". A intenção é correta. Para preservar espécies, o governo paga um salário mínimo aos pescadores artesanais por tantos meses quanto dure a reprodução, com base em portaria do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama). Normalmente, o benefício é pago por 4 meses. Aos pescadores, basta comprovar o exercício profissional da pesca e que não possuem outro emprego, bem como qualquer outra fonte de renda.
Seja pela consciência ambiental, seja pela garantida renda fixa e fácil, o número de pescadores cresceu exponencialmente. Em 2003, eram 113.783 favorecidos. Em 2011, já são mais de meio milhão. Ou seja, exatamente 553.172 pessoas afirmam viver tão somente da pesca, individual ou em regime de economia familiar, fato que lhes assegura o direito de receber R$545/mês, durante um terço do ano.
Os gastos do governo, obviamente, cresceram na mesma proporção. Em 2003, o Ministério do Trabalho pagou R$81,5 milhões a título de seguro-desemprego aos pequenos pescadores. Neste ano, a dotação do Orçamento Geral da União (OGU) é de R$1,3 bilhão. Este montante corresponde a mais que o dobro do orçamento do Ministério da Aquicultura e Pesca para 2011 (R$553,3 milhões). O valor bilionário pago com recursos do Fundo de Amparo ao Trabalhador aos que vivem da pesca artesanal é, também, quase 3 vezes maior do que as exportações brasileiras de pescado mais crustáceos em 2009, que geraram US$169,3 milhões (R$318,3 milhões, com o dólar a R$1,88). Os números são tão estranhos que parecem "história de pescador"?.
É claro que tem boi na linha e no anzol. O procurador da República em Tubarão, Celso Três, afirma: "O pessoal que atua em outras atividades, que nunca viu um peixe na vida, inscreve-se na colônia de pescadores, paga a anuidade, conta como tempo de serviço e se aposenta. Existem o sindicato e a colônia, quase em disputa para ver quem distribui mais atestados. Na prática, basta não ter carteira assinada. Nós processamos aqui mais de 300 pessoas por fraudes, mas é como secar um oceano."
No Rio de Janeiro, por exemplo, cerca de 1.500 pescadores receberam o benefício em 2011, a maioria residente em Campos (319). Curiosamente, somados todos os pescadores artesanais de Rio de Janeiro, Niterói, Búzios, Angra dos Reis, Araruama, Rio das Ostras, Mangaratiba, Itaguaí e Arraial do Cabo, não se chega à metade dos que moram em Campos.
Para agravar o mistério, os nomes dos contemplados não são divulgados nos portais governamentais, impossibilitando o controle social. Após diversas solicitações, inclusive à Ouvidoria Geral da União, a Associação Contas Abertas obteve a relação nominal dos segurados e dos municípios onde ocorre o defeso. Até em Brasília existem favorecidos.
Como o que está ruim sempre pode piorar, há dois projetos de lei no Congresso Nacional que pretendem estender o seguro-defeso aos pescadores impedidos de exercer a atividade por conta das condições climáticas e, ainda, a toda a cadeia da pesca, incluindo os que transportam, comercializam, reparam embarcações e costuram redes, dentre outras atividades correlatas.
Ao contrário da passagem bíblica, fato que a religiosidade explica, é extremamente necessário que a Controladoria Geral da União, o Tribunal de Contas da União e o Ministério Público investiguem - de imediato e com rigor - a multiplicação dos pescadores, que afronta o bom-senso e exala má-fé.

A culpa é do governo. Ele afrouxou qualquer controle'
Procurador da República detalha fraudes investigadas em Santa Catarina e critica falta de fiscalização do seguro-defeso

Entrevista: Celso Três

Alessandra Duarte
duarte@oglobo.com.br

Procurador da República atualmente no Rio Grande do Sul, Celso Três já atuou no Ministério Público Federal em Santa Catarina e, de 2007 até 2010, investigou mais de 300 pessoas devido a denúncias de fraude no pagamento do seguro-defeso. Para o procurador, o principal problema é mesmo a falta de acompanhamento eficaz do benefício por parte do governo.

O que foi investigado em Santa Catarina?

CELSO TRÊS: Processamos mais de 300 pessoas no sul do estado, gente que se dizia pescador mas não trabalhava no setor, e às vezes até que morava em outra cidade, ou mesmo em outro estado, como São Paulo. Havia situações hilárias, como a pessoa ser empregada e pedir ao empregador para não assinar carteira, porque aí poderia ter direito ao benefício também.

Havia problemas também nas colônias de pesca?

TRÊS: Na época, quando se exigia a declaração de alguma colônia (para que o pescador recebesse o benefício), chegou a ser criado um mercado de declarações, disputado entre colônias, sindicatos e associações. A pessoa pagava uma anuidade, R$100, por exemplo, e tinha direito a essa declaração, mesmo não trabalhando no setor. E, também, para a entidade não interessa checar isso. Não interessa checar, por exemplo, a documentação que a pessoa apresenta de notas fiscais de venda de pescado, um dos documentos exigidos para o registro como pescador; interessa é que a pessoa pague a anuidade à entidade. Podemos dizer que, apenas no sul de Santa Catarina, ali de Garopaba até Tubarão, de cerca de sete mil pessoas que estavam cadastradas para o benefício, estima-se que metade disso não era pescador na realidade. Sabemos de problemas semelhantes em outros estados. No Nordeste, já soube de beneficiários em locais onde nem havia pesca.

Onde está o maior problema que levou a esse quadro?

TRÊS: A culpa principal é mesmo do governo federal. Ele afrouxou qualquer controle. O único controle que é realizado atualmente, na prática, é ver se a pessoa que pede o benefício tem carteira assinada, se está registrada como celetista, por exemplo, no Ministério do Trabalho.

Como aperfeiçoar os requisitos pedidos para emissão do RGP e do seguro?

TRÊS: É pedida essa documentação, mas na prática não é fiscalizada se ela é válida ou se corresponde à realidade. Não há fiscalização da documentação de venda de pesca, ou da espécie que o pescador pesca, para saber se essa espécie está entre aquelas protegidas no período de defeso. Deveria haver, por exemplo, atuação de fiscais do Ministério do Trabalho para checar isso. A questão é que não existe outro trabalhador que tenha direito a um seguro-desemprego por quatro meses, todo ano. No caso do trabalhador que recebe isso, há essa situação, que mais tarde acaba estourando nas contas do INSS.

O Globo, 05/10/2011, O País, p. 3-4, 9

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