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O conflito se agrava

O Globo, Opinião, p. 21
Autor: PIOVESAN, Flávia
27 de Jun de 2013

O conflito se agrava
A interrupção de processos demarcatórios de terras indígenas no Paraná e no Rio Grande do Sul e as tensões envolvendo a construção de empreendimentos hidrelétricos na Amazônia agravam o quadro conflitivo

FLÁVIA PIOVESAN

No último dia 30 de maio, o indígena Oziel Gabriel, de 36 anos, foi assassinado em um confronto com a polícia durante a reintegração de posse da Fazenda Buriti, em Mato Grosso do Sul. Ele era um dos 5.000 indígenas ocupantes da área (objeto de processo de demarcação) utilizada pelos povos indígenas para plantio de subsistência, moradia e práticas culturais. À morte de Oziel Gabriel soma-se a denúncia de que outro índio terena teria sido baleado.
A interrupção de processos demarcatórios de terras indígenas no Paraná e no Rio Grande do Sul e as tensões envolvendo a construção de grandes empreendimentos hidrelétricos na Amazônia (o que culminou com a invasão da sede da Fundação Nacional do Índio - Funai - pelos povos mundurukus) agravam ainda mais este quadro conflitivo.
Segundo o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), houve um processo de retração de demarcações de terras indígenas, envolvendo estratégias que objetivam impedir novas demarcações, rever as demarcações já realizadas e explorar as terras já demarcadas, sob a pressão dos produtores rurais e do agronegócio.
De acordo com o Censo 2010 do IBGE, a população indígena compreende 896,9 mil pessoas - o que corresponde a 0,4% da população brasileira -, com 305 etnias diversas e 274 idiomas. As terras indígenas simbolizam 12,5% do território nacional (dados de 2010).
Aos povos indígenas a Constituição brasileira reconhece sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, bem como os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam. É dever da União demarcar, proteger e fazer respeitar as terras indígenas. Qualquer aproveitamento de recursos hídricos (incluídos os potenciais energéticos, a pesquisa e a lavra de riquezas minerais) só pode ser efetivado com autorização do Congresso, ouvidas as comunidades indígenas afetadas. A Constituição ainda proíbe a remoção dos povos indígenas de suas terras, realçando serem nulos os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse de terras indígenas.
Para a Corte Interamericana de Direitos Humanos, há que se assegurar aos povos indígenas o direito à propriedade coletiva da terra, como uma tradição comunitária, como um direito fundamental à sua cultura, à sua vida espiritual, à sua integridade e à sua sobrevivência econômica. Para os povos indígenas, a relação com a terra não é somente de possessão e produção: a terra é um elemento material e espiritual de que devem gozar plenamente, inclusive para preservar o seu legado cultural e transmiti-lo às gerações futuras.
A Constituição brasileira mostra-se absolutamente alinhada aos parâmetros protetivos internacionais - como a Convenção 169 da OIT e a Declaração da ONU sobre Povos Indígenas de 2007. Estes instrumentos introduzem um novo paradigma para os direitos dos povos indígenas, baseado no direito à diversidade, no reconhecimento de sua identidade cultural, no direito de participação, no direito de consulta prévia, livre e informada (relativamente às decisões que lhes afetem), no direito à terra e no princípio da autodeterminação. Rompem com o enfoque integracionista de assimilação forçada dos povos indígenas.
A Constituição brasileira foi a primeira da América Latina a admitir que os povos indígenas têm direito à diversidade étnica e à identidade cultural, aceitando um Estado multicultural e pluriétnico. Constituições latino-americanas recentes reconhecem de forma explícita a existência de Estados multiétnicos e pluriculturais, como é o caso da Constituição da Bolívia, do Equador, da Colômbia, do Peru e da Venezuela. Contudo, os indicadores sociais demonstram o grave padrão de violação aos direitos dos povos indígenas na região, como o drama da mortalidade infantil, da desnutrição, da pobreza extrema, da falta de acesso aos serviços básicos de saúde e de tensões envolvendo suas terras.
A Convenção 169 da OIT, ratificada pelo Brasil, enuncia a responsabilidade dos Estados de desenvolver, com a participação dos povos indígenas, uma ação coordenada e sistemática para proteger seus direitos e garantir o respeito à sua integridade.
No marco de uma sociedade pluriétnica e multirracial, é urgente ao Estado brasileiro honrar o valor constitucional da diversidade cultural e da justiça étnico-racial, assegurando especial proteção aos povos indígenas, considerando seu protagonismo e suas particularidades, na luta pela afirmação de seus direitos essenciais.

Flávia Piovesan é procuradora do estado de São Paulo e professora da PUC-SP

O Globo, 27/06/2013, Opinião, p. 21

http://oglobo.globo.com/opiniao/o-conflito-se-agrava-8822065

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