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No Madeira, temor e esperança

OESP, Economia, p. B6-B7
Autor: MANTEGA, Guido
29 de Abr de 2007

No Madeira, temor e esperança
Ribeirinhos se dividem entre esperar pelas indenizações para ir embora ou tentar melhorar de vida perto das usinas

Leonencio Nossa, SERRA DOS ARREPENDIDOS (RO)

No meio da selva, em Rondônia, bem longe do Ibama e da Esplanada dos Ministérios, em Brasília, um povoado com o sugestivo nome de Vila dos Arrependidos, a 150 quilômetros do centro de Porto Velho, acompanha com um misto de temor, esperança e fastio a discussão sobre o futuro das usinas hidrelétricas de Santo Antônio e Jirau, no Rio Madeira.

A decisão sobre a construção das usinas pode demorar mais uns meses. Mas os moradoras da região, que serviu de cenário para alucinantes projetos de infra-estrutura, como a histórica Ferrovia do Diabo (Madeira-Mamoré), e onde é fácil encontrar "rodovias" engolidas pela mata, já convivem com um canteiro fantasma de uma obra que está há dois anos em discussão e que prova quanto é difícil tirar do papel os projetos de infra-estrutura do País.

Os habitantes da Vila dos Arrependidos, na serra do mesmo nome, fruto de um projeto fracassado de colonização, implantado no regime militar (1964-1985), se dividem entre o temor da inundação pelo lago das futuras hidrelétricas e a esperança de que as indenizações os ajudem a sair dali ou a melhorar de vida ao lado das usinas. O fastio aparece diante de conversas com muitas promessas e outro tanto de incertezas.

Os sinais agourentos vêm dos barracões construídos em julho de 2005 para dar início ao que seriam as hidrelétricas do Madeira, e que hoje podem ser chamados de canteiro fantasma de uma obra do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) considerada fundamental pelo governo para garantir crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) de 5% ao ano.

Os barracões estão tomados pelo mato e por pequenos bichos. Das dezenas de funcionários da estatal Furnas Centrais Elétricas, restou apenas o vigia Domingos Silva Santos, de 49 anos, que toma conta do local e ganha um salário de R$ 540.

A floresta devora a estrada de 9 quilômetros, aberta em 2002 e 2003, que dá acesso aos barracões. Há trechos alagados ou interrompidos por troncos. Desse cenário que poucos conhecem, na semana passada, na reunião do Conselho Político, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva destacou os bagres do Madeira. Criticando o Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e dos Recursos Renováveis (Ibama) por atrasar as obras por causa dos bagres, Lula arrematou: "Agora não pode (construir as usinas) por causa do bagre, jogaram o bagre no colo do presidente". Desde julho de 2005, Furnas e a construtora Odebrecht, parceiras no projeto, esperam a licença ambiental, que não sai nem mesmo com condicionantes.

A visita à região permite constatar que o poder público discute o destino dos bagres e dos sedimentos do rio, mas ocupa-se muito pouco das pessoas que o Estado plantou no meio da selva, nos anos 70. O Ministério Público Federal diz que o Ibama só tomou uma decisão técnica, e o governo não fez os ajustes pedidos pelo órgão. Pior, dizem os procuradores, é que o governo não diz o valor das indenizações nem apresenta um cadastro das famílias que vão ter as terras inundadas.

Os procuradores criticam o governo por anunciar uma obra ambiciosa, capaz de gerar 6.450 MW de energia, quase a metade de Itaipu (14 mil MW), com erros primários. "Não entendo de usinas, entendo de direitos, mas esse projeto só deixa dúvidas", diz o procurador Heitor Alves Soares. Ele reclama do fato de não ficar claro o impacto ambiental da construção da hidrovia e de 1.150 quilômetros de linhas de transmissão, parte do projeto do Sistema Hidrelétrico do Madeira.

Mesmo com os erros, o procurador avalia que o projeto não está condenado. "É preciso fazer ajustes." Como garantir a piracema, a subida dos peixes que ocorre a partir de agosto - as usinas causariam danos à cadeia produtiva do rio, impedindo a migração de peixes. "Não está claro se as barragens vão prejudicar os grandes bagres." O Ministério Público, no entanto, tem seus rompantes de provincianismo. "Rondônia vai ficar com pouco, quase toda a energia vai ser escoada, tanto que a linha de transmissão vai até Cuiabá", disse Soares.

ARREPENDIDOS

A comunidade mais próxima do canteiro de Furnas está a 15 quilômetros a jusante do rio. Na vila dos Arrependidos, vivem na miséria meia centena de famílias de São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Localizada numa ponta do território de Porto Velho, a vila nem está no mapa do Estado. Os bagres sensibilizam as autoridades, mas os 50 brasileiros parecem somar um número insignificante perto dos investimentos.

O paranaense Joaquim Carneiro, de 70 anos, e a paulista Tereza, de 67, moram em um barraco de tábua, sem luz e água encanada, em meio a nuvens de piuns, mosquitos da Amazônia. Depois de anos sem ver gente do governo, foram surpreendidos por técnicos de Furnas que avisaram que a vila será inundada. Carneiro passou a sonhar com a andança em busca de vida menos difícil. "Mesmo que isto encha de água, vai ser bom, com a indenização vou poder ir embora", diz. "Deus queira que a água chegue aqui", completa a mulher.

O casal tem dois filhos, casados, que querem sair da serra. A família sobrevive com a criação de pequenos animais e a lavoura de subsistência. A força do Rio Madeira, que passa bem atrás das casas, contrasta com a pobreza de um lugar de mormaço e calor escaldantes. É o "inferno verde", descrito por Euclides da Cunha.

'Tudo que é peixe de couro é bagre'
O vigia dos barracões de Furnas, o maranhense Domingos Silva Santos, chegou à região em 1983. Ele percorre uma trilha de 400 metros na mata para mostrar onde, na seca, é possível pegar os bagres da discórdia. "Tudo que é peixe de couro é bagre. Tem o jundiá, o pintadinho, que é o chupa-chupa, o fidalgo, o filhote, o mulher ingrata, o surubim e até o dourado", explica o ribeirinho Luiz Nascimento de Freitas, o Shell, de 45 anos.

Ele mostra a cachoeira do Rio Madeira onde o governo pretende construir a barragem de Jirau. A água desce com força. "Agora é difícil pegar bagre aqui, só mais embaixo dá para pescar, lá na Cachoeira do Teotônio."

Quem segue pela BR-364 no rumo da Cachoeira do Teotônio encontra vagões, trilhos e pontes da estrada de ferro Madeira-Mamoré, que começou a ser construída no início do século 20 para escoar a produção brasileira e boliviana de borracha. Embaixo de uma ponte sobre o Rio Jaciparaná, afluente do Madeira, Isabel Nunes, de 65 anos, e o marido, Ismael Monteiro, de 75, tentam pescar. "O bagre vive no fundo, a barragem não vai acabar com o ele. O bagre que eu conheço gosta de ficar afastado", diz Isabel.

Ao longo do Madeira, uns dizem que o bagre enfrenta com brio as correntezas. Outros o classificam como peixe típico de fundo de rio. O desmatamento, o mercúrio do garimpo e os aterros já diminuíram a quantidade de peixes no Jaciparaná.

Pescadores abrem guerra contra usina de Santo Antonio

TEOTÔNIO

Os ribeirinhos de Cachoeira do Teotônio, comunidade pesqueira tradicional de Rondônia, estão em guerra contra a construção da usina de Santo Antônio, que, se sair do papel, vai inundar a vila. Diferentemente dos moradores da Serra dos Arrependidos, os moradores de Teotônio nasceram na beira do Madeira. Levam vida difícil, mas estão adaptados. "Tem de ver o nosso lado, a barragem só vai prejudicar a gente", diz Francisco Assis Moura Gima, de 42 anos, líder dos pescadores e dono de um barracão, que vende bagre sem cabeça a R$ 2 o quilo.

Gima reclama que Furnas não explicou como vai ser a retirada das pessoas. Os moradores, que raramente deixam a vila, não imaginam outra vida. Renato Ferreira Santos, de 20 anos, demonstra apreensão. "Imagina, isto debaixo da água. A gente vai para onde? Vai dar peixe lá ou precisa comprar?"

Cansado de reuniões com Furnas e com as ONGs, Santos só lembra do caso das famílias atingidas pela barragem de Samuel, no Rio Jamari, nas décadas de 80 e 90. Os ribeirinhos não receberam nada. Foi um dos maiores desastres do Estado. "Todo mundo está paralisado, qualquer serviço que fizer no barraco pode ser perdido." Ele teme a falta de renda em outro lugar. "Aqui é a vida da gente, é muito bom para pobre, não vai ter lugar melhor no mundo."

A falta de informação sobre as usinas nas vilas ribeirinhas motivou o Ministério Público Federal a entrar com duas ações civis públicas na Justiça para impedir as obras. Foram ouvidos representantes de 10 das 21 comunidades. Oito aldeias indígenas também vão ter terras inundadas.

TERRA DO BAGRE

O governador de Rondônia, Ivo Cassol (PPS), comanda uma frente de sojicultores, empresários e políticos a favor das usinas. "Não é a questão de o bagre estar no colo de A, B ou C. O que precisa é o presidente exonerar essa equipe e esses ministros que não falam a mesma língua", afirma Cassol, empresário do setor de energia e fazendeiro catarinense de 47 anos que chegou a Rondônia nos anos 70.

Ele ataca os ambientalistas. "Eles vivem em salas com ar-condicionado em Brasília e se esquecem como é a vida do ribeirinho." Ambientalistas acusam o governador de querer beneficiar suas empresas e amigos do Sudeste e Sul. E dizem que ele construiu dezenas de pequenas hidrelétricas sem licença e registradas por laranjas. "Só se é a mãe desses ambientalistas que é laranja", ataca Cassol. "Todas as obras do grupo tiveram autorização do Ibama."

O PT local era contra as usinas. Mas, temendo que Rondônia se torne a maravilha que o Cassol promete, foi para a frente a favor das obras. Ele diz que, após o início das obras, o governo definirá indenizações e poderá fazer escadas nas barragens para os bagres subirem o rio. "Temos 50 áreas de proteção para compensar os impactos, que não vão ser grandes". Para os entraves legais, a solução seria atropelar trâmites. "Com a previsão de novo apagão, o presidente podia editar Medida Provisória para garantir as obras", sugere. "As leis impedem o País de crescer."

'Não há obstáculos ao crescimento'

Entrevista: Guido Mantega, ministro da Fazenda

Ministro diz que o governo está usando todos os instrumentos
disponíveis para tirar as obras do PAC do papel

Lu Aiko Otta

No curto prazo, nada vai atrapalhar a trajetória do crescimento econômico, avaliou o ministro da Fazenda, Guido Mantega, em entrevista ao Estado. Ele acha que, no médio e longo prazos, é possível que o País sofra com falta de infra-estrutura, se não forem implementados os projetos que constam do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC).

O governo, segundo o ministro, está usando "todos os instrumentos" disponíveis para tirar as obras do papel. O risco de um novo apagão, reconheceu Mantega, exige "alerta" constante. Ele citou como exemplo de dificuldade a suspensão das obras de construção da hidrelétrica de Estreito (MA), na terça-feira passada.

O empreendimento, a cargo de um consórcio formado pelas empresas Vale do Rio Doce, Alcoa, Bilinton Metais, Camargo Corrêa e Tractebel, foi interrompido pelo Ministério Público, que quer novos estudos sobre o impacto que as obras provocarão nos índios craôs, apinajés e cricatis, que vivem na região.

A seguir, os principais trechos da entrevista.

Juros e inflação estão em queda, assim como o risco país. As projeções de crescimento econômico estão sendo revistas para cima. Há algo que possa atrapalhar esse cenário?

Neste momento, não vejo nenhum desafio. Quer dizer, desafio sempre há: melhorar alguns setores da indústria de transformação, conseguir contrabalançar o efeito que o câmbio valorizado produz em alguns setores. Mas são questões pelo menos de médio e longo prazos. Não vejo nada que possa, no curto prazo, causar algum obstáculo para esse crescimento que está havendo na economia brasileira.

A falta de infra-estrutura não pode ser um problema?

No curto prazo, não. Poderá haver problema daqui a cinco, seis, sete anos, caso não se consiga implementar os projetos que já estão no pipeline, já programados.

A produção agrícola está recuperando o vigor depois de duas safras complicadas. Vêm aí estrangulamentos nas rodovias e nos portos?

Nossos portos, apesar de ter alguma precariedade, estão dando conta de um volume crescente de exportações, e o governo estabeleceu como prioridade investimentos e recuperação de toda essa infra-estrutura. Não vejo como isso possa impedir esse crescimento.

E o risco de um apagão?

Como eu disse, no curto prazo não há nenhuma perspectiva de apagão. Mas é preciso ficar alerta, porque vamos ter de suprir, pensar nessas questões no médio e longo prazos. É preciso se antecipar, ampliar a oferta na frente da demanda. Muitas vezes, demora para poder fazer as construções.

Esta semana, houve o embargo, a interrupção de uma hidrelétrica. Então, temos que ficar alertas, temos que fazer investimentos cada vez maiores, mas tudo isso está no PAC. O PAC é um programa que visa a impedir que haja gargalos de infra-estrutura.

Se nós conseguirmos realizar boa parte dos projetos que estão no PAC, não haverá problemas. Essa é a prioridade do governo, estamos nos esforçando, utilizando todos os instrumentos que temos para que isso se verifique.

Quem é:
Guido Mantega

Nasceu em Gênova, Itália, e tem 58 anos.

Assessor econômico de Lula desde 1993, foi um dos coordenadores do Programa Econômico do PT na campanha de 2002.

No governo Lula, foi ministro do Planejamento, presidente do BNDES e ministro da Fazenda desde 27 de março de 2006

Um problema que fez até Einstein desistir
Deposição de sedimentos no Rio Madeira atrasa obra de hidrelétricas

BRASÍLIA

As obras das hidrelétricas do Rio Madeira estão paradas para que os técnicos busquem respostas a uma pergunta que nem duas gerações da família Einstein conseguiram responder. Além dos prejuízos à reprodução dos bagres, o Ibama quer estudar melhor o efeito que as obras causarão na deposição de sedimentos no leito e nas margens dos rios da região.

Teme-se que os sedimentos, que fertilizam as terras próximas dos rios, fiquem retidos nos reservatórios. Segundo especialistas ouvidos pelo Estado, o comportamento de sedimentos é um dos temas científicos mais difíceis. Eles dizem que não há como saber com exatidão onde o sedimento se depositará, e em qual quantidade.

Existem formas aproximadas, como o Método de Einstein, desenvolvido por Hans Albert Einstein, filho do genial Albert Einstein. Hans foi professor de Hidrologia e Sedimentologia na Universidade de Berkleley. Sua tese de doutorado tratou do transporte de sedimentos. Ele contou que o pai, ao saber que pretendia se especializar nessa área, o desestimulou. Albert pai sabia do que estava falando. Ele próprio fizera sua tese de doutorado nesse campo, sem conseguir grandes avanços. Desanimado, desistiu dos sedimentos e iniciou os estudos que o levaram a desenvolver a Teoria da Relatividade.

Dificuldades einsteinianas à parte, os especialistas reconhecem que a preocupação com os sedimentos do Madeira é procedente, pois o rio é talvez o que mais carrega sedimentos no mundo inteiro. Porém, segundo eles, esse problema pode ser resolvido no desenho da barragem, para que ela permita a passagem dos sedimentos.

Existem soluções para o outro problema, o dos bagres. O que preocupa o Ibama é o prejuízo que as barragens trarão à reprodução dos peixes. A solução é construir escadas, que permitam aos peixes escalar a barragem. Em Yaciretá, na fronteira da Argentina com o Paraguai, os peixes sobem de elevador - uma caixa d'água que os leva ao ponto mais alto.

OESP, 29/04/2007, Economia, p. B6-B7

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