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Neutralização da culpa

FSP, Revista da Folha, p. 10-16
26 de Ago de 2007

Neutralização da culpa
O caos ecológico leva quem polui a compensar o impacto ambiental, mesmo que seja usando uma cueca de fibra de bambu

por Adriana Küchler

Na última quarta-feira, a aposentada Cecília Martinez, 66, repetiu mais uma vez uma atitude que vem praticando todos os dias desde 2000. Plantou uma árvore.

Até metade da semana passada, ela calculava ter repetido o gesto 1.900 vezes. Não, o quintal de Cecília não é uma continuação da floresta amazônica. Ela mora no Parque Los Angeles, em São Bernardo do Campo, mas não foi lá que plantou. Suas mudas foram parar no que resta da mata atlântica sem deixar calos ou sujeira de terra nas mãos. Bastou um rápido clique no mouse.

"Levanto cedo, vou para o computador, planto as árvores e fico com a consciência mais leve", conta Cecília. "Não entendo muito sobre aquecimento global. Mas acompanho o tema e sei que sou parte do problema. A gente sente culpa, e comecei a fazer isso para aliviar um pouco a consciência."

A aposentada é uma das principais jardineiras eletrônicas do site Clickarvore, ligado ao projeto SOS Mata Atlântica, em que internautas podem plantar árvores que são bancadas por empresas que apóiam o projeto.

Ações simples como essa são cada vez mais comuns numa sociedade assustada pelo aquecimento global e se transformaram numa maneira rápida e prática de aliviar a culpa ecológica. Nem que seja temporariamente.

São "atos de contrição eletrônica", na definição do psicanalista Jorge Forbes, 56. Ele lembra que, há 30 anos, as pessoas iam à igreja, falavam as barbaridades que tinham cometido, ajoelhavam, rezavam mecanicamente e comungavam até voltar a pecar. "Essas são as mesmas pessoas que hoje deletam o seu pecado pelo plantio de árvores na internet. Limpo minha semana perversa com uma boa ação. É uma tremenda descarga de responsabilidade", diz Forbes.

Ninguém duvida: o aquecimento global é mesmo um problemão. Provoca derretimento de geleiras, elevação do nível dos mares, inundações e muita, muita culpa. Culpa por atividades cotidianas, como andar de carro, que polui e colabora para a destruição da camada de ozônio, e até tomar um banho longo, que põe em risco um recurso cada vez mais finito.

Para Eda Tassara, 68, coordenadora do Laboratório de Psicologia Sócio-Ambiental e Intervenção da USP, o debate, em vez de se transformar numa discussão sobre a mudança de hábito dos consumidores, foi canalizado para as catástrofes. "As pessoas estão recebendo a responsabilidade por essa destruição", diz. Portanto é natural que as pessoas se sintam culpadas e impotentes. E reajam com respostas imediatas, como um simples clicar num site.

Vou de táxi, ecológico
O casal de arquitetos Renato Barandier, 27, e Izabella Lentino, 30, preferiu ir além da mesa do computador. No final de outubro, eles vão fazer do casamento deles, em Niterói (RJ), um evento "carbon free" -para usar um termo tão em voga.

"Quando pensamos nos caminhões trazendo vinho do Rio Grande do Sul, nos convidados vindos da Alemanha e de Brasília e no transporte dos canhões de luz, achamos que tínhamos que fazer alguma coisa para compensar esse impacto", conta Renato.

E o que eles pretendem fazer para minimizar o estrago ambiental provocado pela união? Vão plantar árvores. Quantas, o casal ainda não sabe. Eles contrataram a empresa Carbono Neutro para calcular e apresentar a conta. Plantio e acompanhamento do crescimento das árvores são delegados pela empresa a entidades ambientais.

"Não são medidas exageradas como usar guardanapos reciclados. Casamento é festa", brinca. "Só queremos que as pessoas saibam que pequenas ações também têm impactos simples de serem compensados e não exigem esforço."

Assim como o casal, tem muita personalidade difundindo a causa verde, seja para pegar carona no marketing verde, seja por preocupação sincera. Leonardo diCaprio produziu um documentário sobre a crise ambiental, como seu colega e garoto-propaganda das causas ambientais Al Gore.

Foi exatamente o eterno quase-presidente dos EUA quem incentivou a estréia ecológica do taxista João Batista Santos, 43. A recente visita de Gore ao Brasil deixou João com uma pulga atrás da orelha.

"Só se falava em aquecimento global, essas coisas. Eu me senti responsável por parte do problema. Não quero parar de dirigir. Como vou fazer a minha parte?"

João encontrou uma maneira. Ele decidiu tentar neutralizar as emissões de carbono de seu próprio táxi. O motorista conta que levou um susto quando descobriu que joga nos ares de São Paulo 93 kg de CO2 diariamente. Só para efeito de comparação, é a mesma quantia que um automóvel a gasolina despeja no ar numa viagem de São Paulo até Ribeirão Preto (314 km de SP).

Para compensar, o taxista precisa plantar uma árvore a cada sete dias. Uma série de sites especializados em calculos ambientais fazem essa conta, mas nem sempre chegam ao mesmo resultado.

De olho no feito, o taxista pede a contribuição dos passageiros. "Faço uma sugestão de doação. Uma corrida de 15 minutos gera 3 kg de gás carbônico. Com muda e manutenção a R$ 40, o passageiro pode contribuir com R$ 0,16 para o plantio da árvore", explica. Pau-brasil. É bom frisar.

Formado em ciências biológicas, João defende uma idéia utópica, digna da mais espetaculosa das experiências científicas: transformar São Paulo no pulmão do planeta. Enquanto não cumpre sua missão impossível, ele arranjou um jeito de também lucrar com a prática. A ação politicamente ecológica serve como marketing para atrair clientes. E, ainda neste ano, o taxista-verde vai até dar palestras sobre o tema para empresas.

Alívio demorado
Se a compensação de carbono é hoje uma das práticas mais difundidas entre países, empresas e pessoas que querem fazer algo pelo ambiente, seus benefícios ainda não são um consenso.

"Ela não acontece na hora. As árvores podem levar 37 anos para crescer e consumir o gás. Atitude verde mesmo é não emitir", defende o diretor-presidente do Instituto Akatu pelo Consumo Consciente, Helio Mattar, 60.

Segundo uma pesquisa feita pelo Akatu, 37% das pessoas estão dispostas a pagar mais caro por produtos ecológicos e sociais. Talvez seja por esse motivo que não param de pipocar novidades nas prateleiras.

Mas Helio critica a simples troca das compras do dia-a-dia por produtos sustentáveis. "Só substituir é um risco. Não basta que o produto seja verde ou social. O produto verde também precisa de energia, transporte, água. Por mais verde que seja, dificilmente não deixará impacto no ambiente. É preciso reduzir o consumo."

É literalmente o que prega um grupo de artistas e ativistas norte-americanos que chegou a fundar uma igreja anticonsumo.

A mudança de hábito também é defendida pelo coordenador do projeto ESPM Social e do curso avançado em gestão do investimento social privado da universidade, Ismael Rocha, 48.

Nas palavras dele, comprar para ajudar é um processo antagônico. "Quando você compra um produto desses, é como se se livrasse da responsabilidade. É terceirizar a responsabilidade que deveria ter."

Há diferentes formas de passar a bola do compromisso para frente. O simples gesto de ir a um evento que planta árvores não representa uma ação significativa. "Os desavisados acham lindo. O que importa é o que eles fazem em casa depois", critica Ismael. "Usar uma camiseta de garrafa PET é muito legal. Melhor isso do que nada. Só não resolve o problema."

Eda Tassara, da USP, diz que um passo importante na construção de uma consciência ecológica se dá pela educação. "A mobilização em torno dessa causa deve levar as pessoas a discutirem e a buscarem soluções. O problema é que muita gente age movida pelo politicamente correto. Essas ações, como plantar árvores pela internet, funcionam apenas como um corretivo."

Não há dúvida de que a educação é a maior aliada. Também é inegável que toda ação individual é positiva, por mais que seu efeito prático seja, no momento, mais difícil de mensurar do que créditos de carbono.

'o pecado mora no shopping'

Enquanto alguns ativistas pregam que o melhor jeito de pagar os pecados sociais e ambientais é ir às compras "conscientes", o "reverendo" Billy e sua igreja do Pare de Comprar acreditam que a única forma de salvar o mundo é exatamente deixar de ir ao shopping.
Acompanhado por um coro e uma banda, o ativismo em sua forma mais escrachada é encarnado pelo engajado ator performático Bill Talen, que, do alto de seus quase dois metros, evangeliza pelas ruas e lojas dos Estados Unidos -e por onde mais for convidado- sua doutrina antiglobalização. Ele acredita que a "compra ética" mata mais pessoas do que salva e julga pecadores os ativistas de fim de semana. O "reverendo" sonha em vir pregar ao rebanho do Brasil.

Qual é a sua missão?

Nossa cantoria, pregação, prisões e passeatas são uma tentativa de desarmar o ataque do marketing multinacional, a religião suprema dos nossos dias. Temos que parar de comprar e começar a viver. Quando você pára de comprar e se afasta de um produto que está brilhando numa prateleira, seu corpo começa a voltar à vida.

Comprar produtos que promovem um suposto bem-estar social ou ambiental pode ser encarado como uma nova forma de salvação?

As 'compras éticas', como são divulgadas pelo rock star Bono e as pessoas de sua igreja, são só o velho: 'Eu sou rico e então vou cuidar da minha culpa com um pouco de caridade'. Não é melhor do que nada porque deixa as pessoas preguiçosas. A 'compra ética' mata mais pessoas do que salva.

Sua religião é contra a globalização?

A economia globalizada é uma religião fundamentalista, que tem o medo da perda de status, riqueza, sexo e juventude como forma de coerção e o lucro como seu deus. As grandes empresas são o demônio do nosso tempo.

Uma pergunta para Bill Talen: a maioria dos ativistas são considerados chatos. Por que vocês decidiram fazer disso uma coisa divertida?

A resposta está na sua pergunta.

ativista do mínimo esforço

"Por que ajudar o planeta tem que ser difícil?", questiona Josh Dorfman, empresário e radialista à frente do programa "The Lazy Environmentalist" (O Ambientalista Preguiçoso), ouvido por um público eclético, de arquitetos a caminhoneiros e donas-de-casa, nos EUA. "Somos mais dispostos a ajudar se for fácil." Num país onde a onda verde atingiu diferentes setores da economia, ele defende a adesão sem esforço nem culpa.

Quais os princípios de um ambientalista preguiçoso?

Não estamos sempre dispostos a mudar nosso comportamento só para fazer o que é melhor para o planeta. Estamos preocupados com carreira, família e estilo de vida. Se as escolhas verdes são fáceis e convenientes, teremos mais chances de gostar delas.

Que temas você discute no programa?

Aspectos do estilo de vida e como torná-los verdes. De casas verdes, carros, moda ecológica e móveis sustentáveis até funerais ecológicos e brinquedos sexuais verdes.

Qual é a principal dúvida do ouvinte?

'O que posso fazer?' Quando se tem a resposta para essa questão, eles querem ouvir mais. Nunca falo sobre desgraça nem culpo ninguém. Não funciona. Você tem que falar sobre interesses pessoais se quer que fiquem animados para cuidar do planeta.

Sem culpa e sacrifício. É fácil viver uma vida verde assim?

Carros com combustíveis eficientes estão disponíveis por todos os preços nos EUA. Comprar energia verde para as casas também está se tornando mais fácil. Há milhares de empresários e designers criando alternativas ambientais para quase todos os produtos.

Não é apenas um jeito cômodo de achar que está ajudando?

É exatamente o ponto. Por que ajudar o planeta tem que ser difícil? Nós somos muito mais dispostos a ajudar se for fácil. Não é só para ricos. Mas já que eles consomem mais, é importante que façam escolhas verdes. Os pobres já estão fazendo essas opções, como andar em transporte público.

Você não recebe críticas dos ecologistas mais radicais?

Dizem que só estou dando uma desculpa para as pessoas continuarem consumindo. Elas não estão procurando desculpas para consumir. Estão felizes em fazer isso sem culpa. Já que nosso consumo não vai mudar tão cedo, seríamos espertos em reduzir o impacto dele no planeta.

Será que funciona?

Árvore num clique
A mais rápida, barata e indolor. Sites plantam árvores bancados por empresas que apóiam o projeto. O mais conhecido é o Clickarvore (www.clickarvore.com.br), parceria entre a Fundação SOS Mata Atlântica, o Instituto Ambiental Vidágua e o Grupo Abril, que até a última quarta-feira teria doado 9,8 milhões de árvores. Há outras opções como o Tree4Life (www.tree4life.com) e o Plant.Net (www.crescentefertil.org.br/integrandomantiqueira/plante.htm). Segundo as empresas, as mudas são plantadas e seu crescimento, acompanhado

Consumo amigo
Para quem está disposto a gastar para salvar o mundo. Comprar um carro híbrido, um iPod que reverte US$ 10 para a luta contra a Aids na África ou móveis feitos com madeira certificada ou de demolição estão entre as ações positivas. A moda é um setor que cada vez mais aposta no sustentável: de cuecas de fibra de bambu a jeans com algodão orgânico, já é possível montar um guarda-roupa "eco-friendly"
Matemática do carbono
De países poluidores a organizadores de grandes eventos, passando por Rolling Stones e Sandy e Junior, a onda é compensar as emissões de carbono plantando árvores. A conta pode ser feita em calculadoras ambientais em sites de empresas e ONGs, como Carbono (www.carbononeutro.com.br), Recicle Carbono (www.reciclecarbono.com.br) e The Green Initiative (www.thegreeninitiative.com)

ecoglossário
aquecimento global: elevação da temperatura média anual da Terra causada pelo aumento da concentração na atmosfera dos chamados gases-estufa, provocado, principalmente, pelas atividades do homem

biodiversidade: é o total de genes, espécies e ecossistemas de uma região; também pode se referir à diversidade cultural humana

comércio de emissões: mecanismo previsto pelo Protocolo de Kyoto, em que países comprometidos em reduzir as emissões de gás carbônico podem trocar o limite de emissão com outros países não tão poluidores

desenvolvimento sustentável: o conceito surgiu em 1980 a partir de discussões sobre os limites de crescimento da população e procura integrar desenvolvimento econômico, justiça, bem-estar social, conservação ambiental e uso racional dos recursos naturais

efeito estufa: capacidade que a atmosfera apresenta de reter parte da radiação térmica emitida pela superfície do planeta. Embora seja um fenômeno natural, a queima de combustíveis fósseis e de florestas e o lançamento de CO2 na atmosfera podem intensificá-lo, promovendo aumento de temperatura na superfície do planeta, derretimento de geleiras, elevação do nível dos mares e inundações

protocolo de Kyoto: acordo internacional assinado por vários países, entre eles o Brasil, que tem como objetivo estabilizar as concentrações de gases de efeito estufa na atmosfera num nível que não desencadeie mudanças drásticas no sistema climático. O acordo ainda não foi implementado, mas alguns países industrializados já o adotam

sustentabilidade: conceito associado ao desenvolvimento sustentável, envolve a utilização racional dos recursos naturais a longo prazo. Propõe a substituição de combustíveis fósseis e energia nuclear por fontes renováveis, como energia solar ou eólica. No campo social, significa melhor distribuição de renda, universalização do saneamento básico e do acesso à informação, à saúde, à educação e à participação coletiva nas decisões

Fonte: Vocabulário Básico de Recursos Naturais e Meio Ambiente do IBGE

FSP, 26/08/2007, Revista da Folha, p. 10-16

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