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Na Bahia, cidade de Lapão afunda de tanto cavar poços

O Globo, País, p.13.
23 de Mar de 2018

Na Bahia, cidade de Lapão afunda de tanto cavar poços

POR ANA LUCIA AZEVEDO
23/03/2018 4:30 / ATUALIZADO 23/03/2018 14:49

LAPÃO, BAHIA - O fundo do poço da crise hídrica rachou em Lapão, no sertão da Bahia. Quando o poço afundou, foi com estrondo. Rasgou o chão e engoliu parte do centro da cidade. De tanto escavarem poços em Lapão para captar água para irrigação, a terra tremeu e colapsou. Num lugar onde quase nunca chove, a água vem das profundezas, que no caso tem nome, o Sistema Aquífero Bambuí, um dos leitos subterrâneos da Bacia do Rio São Francisco. Hoje, a cidade tem uma cratera em seu centro e ainda racha.
O poço sem fundo chegou até o carnaval, um dos mais populares do sertão baiano. O Carnalapão, o carnaval antecipado de Lapão, de 1 a 4 de fevereiro, este ano foi histórico. Ferveu mas não bombou. Bombar é algo fora de cogitação no município. A folia foi encerrada com show de Maiara e Maraísa. Teve Bell Marques, É o Tchan e Psirico. Reuniu 93 mil pessoas, mais do que o triplo da população do município, de 28 mil habitantes. A festa no centro da cidade só não teve uma das tradições do carnaval da Bahia. Nada de trio elétrico. As vibrações do som alto poderiam causar novos desmoronamentos.
- A prefeitura assinou um termo de ajustamento de conduta com o Ministério Público da Bahia para que neste carnaval não tivesse trio elétrico na zona central da cidade. Também pediram que ninguém estourasse rojões. O motivo foi evitar vibrações - diz Ednaldo Campos, de 57 anos, coordenador da câmara consultiva do Médio São Francisco do Comitê da Bacia do Rio São Francisco, que nasceu e mora em Lapão.
30 MIL POÇOS E FENDAS REMENDADAS
O comitê, diz Campos, fará a sondagem geológica da cidade que começou a afundar em 2008. Lapão nasceu das profundezas. Sua origem está num povoado originado à volta da Fonte do Lapão, no centro da cidade, sob a qual a maior cratera se abriu. Numa terra onde não chove, a água era farta, vinha do que se acreditava ser um rio subterrâneo. Este era o que hoje se sabe ser uma parte do aquífero Bambuí. E aquíferos não são rios subterrâneos. Assemelham-se mais a esponjas rochosas onde a água se acumula em cavidades.
De tanto escavarem para irrigação, o chão afundou em 2008 e 2013. Hoje, há 7.500 poços cadastrados, mas Ednaldo Campos estima que o número real chegue a pelo menos 30 mil na região de Lapão. Um estudo do Serviço Geológico do Brasil mostrou que Lapão sugou a água que preenchia cavidades de calcário no subsolo. Sem a água de sustentação, o calcário cedeu. O resultado foi a literal ruína do centro e de um bairro.
O aquífero Bambuí é um dos sistemas de recarga naturais do São Francisco, que corre a 110 quilômetros de distância de Lapão. Sua água sustenta a agricultura da cidade. Representa 95% do volume usado em irrigação. Ainda que quisessem, os moradores não conseguiriam bebê-la.
- É péssima, pesada, não presta para beber sem tratamento específico - diz Valmir Vilella Dourado, de 82 anos, presidente da Associação de Fruticultores.
A associação se mantém em funcionamento, mas seus membros não plantam mais devido à escassez hídrica.
Em 2013, técnicos da CPRM recomendaram que 330 imóveis fossem evacuados. Mas os moradores do bairro de Ida Cardoso, uma área pobre de um município de IDH baixo (0,596 ponto), continuaram onde estavam. Sem alternativa para se mudarem, remendaram as fendas. Igualmente remendadas foram ruas do centro e uma quadra esportiva.
'VEMOS O CHÃO CONTINUAR A SE ABRIR'
Muita gente continua a perfurar poços. No início do bairro Ida Cardoso, há um poço para irrigar as plantas de uma praça. Os poços agora precisam ser muito profundos porque a água superficial secou. Chegam a 250 metros de profundidade, segundo Campos. Bem ao lado de um deles, próximo de uma escola, embalagens de agrotóxicos, que por lei precisam ter destinação especial, são jogadas nas rachaduras. Estas dão direto no lençol freático. Por sua vez, este é captado pelo poço, num ciclo vicioso de contaminação.
A fonte que era o cartão-postal oficial agora despeja sua água numa cratera de cerca de 40 metros profundidade. Lapão não tem desmoronamentos desde 2013, mas ainda racha. As fendas, como veias a céu aberto, se abrem e ramificam.
- Vemos o chão literalmente continuar a se abrir e não sabemos o que acontece no subsolo - frisa Campos.
Lapão, como o nome indica, é uma terra de cavernas. Mas ganhou fortuna como "capital brasileira da cenoura", título dos tempos de ilusão hídrica até o início dos anos 2000. Chegou a ser o segundo produtor do legume do país, mas à medida que a água subterrânea escasseava, minguava a produção. E surgiam fendas. O município continua a plantar cenoura, com menor fôlego, mas há 12 anos a chuva não ajuda.
- Aqui é o semiárido bravo. Não chove por anos. E, quando chove é tão pouco, que só molha a superfície. Tiramos toda a água dos aquíferos e não devolvemos nada. Esse uso é inviável e precisa mudar - salienta Campos.
No semiárido da Bahia chove entre 500 a 600 milímetros (mm) por ano. No auge da seca, houve anos em que choveu 180 mm/ano. A título de comparação, no município do Rio chove 1270 mm/ano. Com a superexploração do Bambuí na região de Lapão, a água ficou cada vez mais escassa. E hoje os produtores se deslocam para Cafarnaum, Barro Alto e Ibitibá. São regiões de infraestrutura ausente, faltam energia e estradas.
- E só por isso ainda tem água por lá. Se continuarem a puxar sem controle, vai acabar. Vão repetir a história. As pessoas pensam que a água nasce em torneira - afirma Campos.
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AQUÍFERO URUCUIA
Lapão conta a história das consequências da exploração sem controle do aquífero Bambuí. E indica o que pode acontecer com o ainda maior Sistema Aquífero Urucuia, considerado o coração do São Francisco. O Urucuia contribui com 730 m3/s, ou cerca de 30% da vazão do rio. E nos períodos de seca chega a 90% da vazão total da bacia.
- O maior problema do São Francisco hoje está na exploração dos aquíferos. A exploração do Bambuí é um exemplo de tudo o que de errado pode se fazer quando se explora sem limites e sem conhecimento das águas subterrâneas. O Urucuia é superexeplorado no oeste da Bahia antes de ser realmente conhecido. Dele dependem muitas das nascentes do rio _ afirma Anivaldo de Miranda, diretor do Comitê da Bacia do Rio São Francisco, o órgão colegiado encarregado de implementar as políticas de uso da água e gerenciar conflitos e interesses.
O número real de poços na bacia é desconhecido. E o mesmo vale para todo o Brasil. O relatório "Conjuntura Hídrica 2017", publicado pela Agência Nacional de Águas (ANA), estima que existam 1,2 milhão de poços no país, o que representa um aumento de 22% em relação a 2008. O relatório destaca que o monitoramento das águas subterrâneas no Brasil "ainda é bastante incipiente". O que significa dizer que no mapa de monitoramento, o Semiárido, a região mais castigada pela seca e mais dependente das águas subterrâneas, é um deserto de conhecimento.

O Globo, 23/03/2018, País, p.13.

https://oglobo.globo.com/brasil/na-bahia-cidade-de-lapao-afunda-de-tant…

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