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MPF pede que Funai anule portaria que permite grilagem de terras indígenas

Consultor Jurídico - https://www.conjur.com.br
30 de Abr de 2020

MPF pede que Funai anule portaria que permite grilagem de terras indígenas

O Ministério Público Federal recomendou à presidência da Fundação Nacional do Índio (Funai) que seja anulada, imediatamente, a Instrução Normativa 9/2020, publicada na edição de 22 de abril do Diário Oficial da União. Segundo o MPF, a norma permite, de forma ilegal e inconstitucional, o repasse de títulos de terra a particulares dentro de áreas indígenas protegidas pela legislação brasileira.

A recomendação também foi encaminhada à presidência do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e à Direção-Geral do Serviço Florestal Brasileiro para que se abstenham de cumprir a instrução normativa da Funai, por inconstitucionalidade, inconvencionalidade e ilegalidade.

Para 49 procuradores de 23 estados, a instrução normativa emitida pela Funai "contraria a natureza do direito dos indígenas às suas terras como direito originário e da demarcação como ato declaratório", fundamento inscrito na Constituição brasileira, na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, na Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas e reconhecido por decisões do Supremo Tribunal Federal, do Superior Tribunal de Justiça e das cortes internacionais.

Ao criar "indevida precedência da propriedade privada sobre as terras indígenas", diz a recomendação do MPF, a portaria da Funai viola o artigo 231 da Constituição, que se aplica também aos territórios indígenas não demarcados, já que, ao Estado brasileiro cabe apenas reconhecer os direitos territoriais indígenas, que são anteriores à própria Constituição.

A Instrução Normativa 9, ao permitir que sejam declaradas como particulares as terras indígenas, cria, na verdade, uma situação de insegurança jurídica que aumenta "gravemente os riscos de conflitos fundiários e danos socioambientais".

A previsão de repassar a particulares terras que são consideradas pelo ordenamento jurídico brasileiro como indígenas, além de ilegal e inconstitucional, dizem os procuradores da República, pode caracterizar improbidade administrativa dos gestores responsáveis por emitir a instrução normativa 9, o que os tornaria incursos nas sanções previstas na lei de improbidade administrativa, como a cassação de direitos políticos, proibição de contratar com o Poder Público, e multas.

Direito às terras
O STF, em vários julgamentos, já afirmou a chamada "originalidade do direito dos índios às terras que ocupam", ou seja, que não cabe a nenhum governo afirmar quais terras pertencem ou não aos povos indígenas, mas apenas declarar essa condição de acordo com estudos antropológicos e técnicos.

"Os direitos dos indios sobre as terras que tradicionalmente ocupam foram constitucionalmente 'reconhecidos', e na~o simplesmente outorgados, com o que o ato de demarcaça~o se orna de natureza declaratoria, e na~o propriamente constitutiva. Ato declaratorio de uma situaça~o juridica ativa preexistente. Essa a raza~o de a Carta Magna have-los chamado de 'originários', a traduzir um direito mais antigo do que qualquer outro, de maneira a preponderar sobre pretensos direitos adquiridos, mesmo os materializados em escrituras publicas ou titulos de legitimaça~o de posse em favor de na~o indios", diz, por exemplo, a decisão do STF no Caso Raposa Serra do Sol.

Pelo ordenamento jurídico e pela jurisprudência dos tribunais, portanto, "o processo demarcatório não é pré-requisito para o estabelecimento de direitos territoriais, tendo em vista o reconhecimento feito pela Constituição de uma realidade indicada pela singular relação dos povos indígenas com os seus territórios, de modo que o procedimento, de caráter administrativo, permite, em verdade, estabilizar os direitos territoriais indígenas perante os não indígenas e formalizá-lo em caráter definitivo", adverte o MPF.

O caráter originário do direito indígena aos territórios, conferido pela Constituição e por diplomas legais internacionais que se aplicam ao direito brasileiro internamente assegura a precedência desses direitos sobre a propriedade privada, mesmo quando os processos de demarcação ainda não se concluíram. O fato de que as terras indígenas têm como titular a União, ou seja, o patrimônio da sociedade brasileira, demonstra que estão duplamente protegidas, com proteção formal para viabilizar plenamente os direitos territoriais e também para assegurar o uso exclusivo pelos indígenas desses territórios.

Para o MPF, o papel da União e da Funai, em cumprimento da legislação, é essencialmente "defender a territorialidade indígena, em favor dos anseios dos povos indígenas e contra terceiros, inclusive antes da demarcação". No caso da Funai, esse é o próprio papel institucional que rege o seu funcionamento, de acordo com a lei que criou a autarquia (Lei 5.371/1967).

A Instrução Normativa 9, conforme o MPF, compromete a segurança jurídica inclusive para os particulares, ao retirar a obrigação de publicidade dos processos demarcatórios. O Conselho Nacional de Justiça, ao apreciar a questão, a pedido da Associação de Cartórios do Brasil, já decidiu que devem ser obrigatoriamente averbadas as sobreposições em razão de demarcação de terras indígenas, o que garante a segurança jurídica dos negócios, já que a conclusão do processo demarcatório torna nula qualquer pretensão particular.

A Confederação Nacional de Agricultura e Pecuária do Brasil chegou a recorrer contra a decisão do CNJ, mas teve o pedido negado. A normativa da Funai cria riscos de inviabilidade também para o financiamento das atividades agropecuárias, visto que as autoridades financeiras, como o Conselho Monetário Nacional, estabeleceram princípios e diretrizes de natureza socioambiental nos negócios, o que inclui o respeito aos direitos territoriais indígenas.

A abertura de terras indígenas para a grilagem, configurada na Instrução Normativa 9/2020, da Funai, pode significar danos socioambientais irreversíveis, dizem os procuradores, uma vez que os povos indígenas são responsáveis pela manutenção da maior parte da riqueza dos biomas brasileiros, tema já discutido pelo STF, que vedou o chamado retrocesso em matéria ambiental, quando uma normativa permite a redução da proteção do meio ambiente.

Invasores de terras
O Conselho Indigenista Missionário (Cimi) também pediu, em nota, a imediata revogação da medida. Para a entidade, a norma vai na contramão das ações de isolamento social em prevenção ao coronavírus.

"É extremamente temerário e inaceitável que, na atual situação de pandemia pela qual o mundo e o Brasil passam, em que a população está submetida ao isolamento e os povos indígenas tomam a iniciativa de fechar e de proteger seus territórios, o presidente da Funai adote uma instrução normativa que vai no sentido oposto ao seu dever institucional de proteger os direitos e territórios dos povos indígenas".

De acordo com o Cimi, a instrução tem elementos "ditatoriais", que visam submeter os povos indígenas à assimilação, contrariando o espírito da Constituição de 1988. Instituição ressalta que os títulos de propriedade de terras indígenas são nulos, conforme prevê a Carta Magna.

Em artigo, a advogada do Instituto Socioambiental Juliana de Paula Batista afirmou que, em decorrência da Instrução Normativa 9, mais de 237 terras indígenas pendentes de homologação, poderão ser vendidas, loteadas, desmembradas e invadidas.

E ocupantes poderão licenciar qualquer tipo de obra ou atividade, como, por exemplo, desmatamento e venda de madeira, alerta. Isso à revelia e sem a participação dos índios.

"A Constituição garante aos índios os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, bem como a posse permanente e o usufruto exclusivo das terras, rios e lagos nelas existentes. A Carta Magna não tergiversa sobre a fase do processo de demarcação. É cristalina em afirmar que compete à União demarcar, proteger e fazer respeitar todos os bens existentes nas terras indígenas. Também classifica como nulos e extintos os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse dessas terras. São justamente esses atos que a IN no 9/2020 pretende autorizar. Ainda, pela Constituição, as terras indígenas são consideradas inalienáveis e indisponíveis", destaca Juliana.

"O presidente da Funai, sob o subterfúgio de 'editar atos normativos internos', decidiu, unilateralmente, revogar as garantias fundamentais dos índios previstas na Constituição Federal para chancelar títulos, posses e invasões incidentes em terras indígenas. Com isso legitima a violência e incentiva conflitos que custam a vida dos índios. Se continuar nessa toada, a Funai será transformada ao mesmo tempo em subsede de cartório de registro de "imóveis" privados e funerária indígena", completa a advogada. Com informações da Assessoria de Imprensa do MPF.

Revista Consultor Jurídico, 30 de abril de 2020, 8h18

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