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Mito forte

FSP, Mais, p. 5
Autor: CUNHA, Manuela Carneiro da
23 de Nov de 2008

Mito forte
Para Manuela Carneiro da Cunha, antropólogo está tendo a glória de ser redescoberto em vida, após ter sido considerado superado em alguns círculos

Manuela Carneiro da Cunha
Especial para a Folha

No longo prazo, todo pensador célebre pode estar certo de duas coisas: de morrer e de ser considerado superado. Tem sorte quando a primeira ocorre antes da segunda".
A boutade é do antropólogo americano Marshall Sahlins. Mas Lévi-Strauss faz no dia 28 cem anos, tempo suficiente para um terceiro momento: o de ser tido por superado em alguns círculos, mas de ser redescoberto ainda em vida. Pois sua importância renasce quase meio século após seu apogeu inicial, os anos de ouro do estruturalismo.
O Brasil e os EUA tiveram ambos importância decisiva em sua vida e sua obra. Sem o programa Rockefeller de resgate de intelectuais ameaçados na Europa, é muito plausível que Lévi-Strauss não tivesse sobrevivido à Segunda Guerra Mundial. O Brasil, com efeito, negou-lhe um visto em 1940.
Sem a Biblioteca Pública de Nova York, sem a Escola Livre de Altos Estudos, sem a amizade do lingüista Roman Jakobson e dos surrealistas em Nova York, a obra dele teria sido muito diferente.
Mas, sem os anos brasileiros, sem as expedições aos bororos, aos cadiuéus, aos nambiquaras, também não teríamos o Lévi-Strauss que tivemos.
Não só, como veremos, porque foram suas primeiras publicações sobre os índios brasileiros que o fizeram notar nos EUA e ensejaram que ele estivesse no rol dos intelectuais a serem "salvos" -e não só porque são eles que protagonizam "Tristes Trópicos", escrito quando Lévi-Strauss se julgava definitivamente excluído do sistema universitário francês.
Por isso "Tristes Trópicos" não é um livro acadêmico, é um livro de viagem filosófica e sensorial que se abre com a célebre declaração: "Odeio as viagens".
É um livro cheio de idéias, de análises e de sugestões, maravilhosamente bem escrito, que contribuiu para a eleição do autor, anos mais tarde, à Academia Francesa. E, finalmente, é um livro em que Lévi-Strauss se abre, pelo menos um pouco.
Para alguém que foi acusado de ser "cerebral", em "Tristes Trópicos" ele mostra uma sensibilidade extraordinária às paisagens.
Posso atestar que, quando em 1985 eu o acompanhei, a seu pedido, numa viagem-relâmpago aos bororos -que, por motivos diversos, nunca chegamos a ver-, ele não se frustrou. Ficou feliz em rever um ninho de joão-de-barro e as nuvens do céu de Mato Grosso.
Dissemos que EUA e Brasil, ambos, foram essenciais na vida e na obra de Lévi-Strauss. Mas qual foi, reciprocamente, a importância de Lévi-Strauss nesses dois países?
Nos EUA, com poucas exceções, não se entendeu e não se procura mais entender Lévi-Strauss. E Lévi-Strauss no Brasil? É sabido que, no Brasil, o jovem Lévi-Strauss não foi imediatamente reconhecido, até porque ainda não tinha escrito nada ou quase nada.
Sua influência repercutiu fortemente aqui nos anos 1960 e 1970, sobretudo com os estudos das sociedades gês no Brasil Central, que foram concebidos sob o impacto dos seus artigos sobre o dualismo, mas também desenhados para tentar refutá-los.
Na Universidade de São Paulo, Ruth Cardoso se interessava especialmente por Lévi-Strauss; eu mesma, em 1973, procurei mostrar o lugar da estrutura mítica no agenciamento da história, em um ensaio sobre a lógica do mito e a lógica da ação.
Hoje, em alguns centros de antropologia no Brasil, o pensamento de Lévi-Strauss continua vivo e atual, no sentido de que continua a gerar questões e abordagens que, combinadas a outras influências e fermentadas pela etnografia, inspiram-se em uma leitura sutil tanto do que ele analisou explicitamente quanto daquilo que indicou ou deixou entrever.
Por que essa afinidade?
Não é impossível que ele e os povos indígenas do Brasil tenham sido feitos para se entenderem mutuamente, isto é -para retomar uma fórmula célebre da abertura de "O Cru e o Cozido"-, que seu pensamento tenha tomado forma ou se reconhecido no pensamento indígena tanto quanto este tomou forma e se reconheceu no seu pensamento.
Creio que é a partir dessa hipótese que Eduardo Viveiros de Castro tomou a si a tarefa não de retomar Lévi-Strauss ao pé da letra, mas sim de retomar seu procedimento, levando em conta o sentido e o alcance das questões levantadas pelo pensamento indígena.
Assim como fez Marilyn Strathern na Nova Guiné, ele mostrou a importância, para o antropólogo, de se deixar guiar pelo pensamento do outro.
Foi ainda Eduardo Viveiros de Castro quem observou recentemente que, se foi possível descrever "As Estruturas Elementares do Parentesco" como obra pré-estruturalista, as "Mitológicas", por sua vez, poderiam ser lidas como pós-estruturalistas.
De fato, ele discerniu, nas "Mitológicas", não uma preponderância de silogismos totêmicos, isto é, da lógica classificatória proposta desde "O Totemismo Hoje" (1962), e sim um procedimento que pode ser dito pós-estruturalista, feito de rizomas e de percursos imbricados.
Em suma, um esboço do que fizeram mais tarde Deleuze e Guattari -mostrando assim que, contrariamente aos que simploriamente vêem no pós-estruturalismo um antiestruturalismo, trata-se, ao contrário, de discernir as entrelinhas, as análises concretas e os subtextos (além dos próprios textos) de Lévi-Strauss.
Mauro Almeida, da Unicamp, também renovou a leitura de Lévi-Strauss de forma original e contribuiu para uma leitura adequada do alcance da inspiração matemática e cibernética em Lévi-Strauss, salientando a sua noção de entropia.
Um dos aspectos mais misteriosos dos escritos de Lévi-Strauss é a célebre e desconcertante "fórmula canônica" do mito, mencionada em 1955 e, quando parecia fadada ao esquecimento, ressurgida subitamente em "A Oleira Ciumenta" e "História de Lince".
Almeida deu à fórmula canônica uma interpretação original, que a conecta à concepção de dialética que Lévi-Strauss, em 1962, opunha à de Jean-Paul Sartre: uma forma e uma fórmula de superação, de abdução, de "dedução transcendental", diria o antropólogo, que permite fazer o salto sobre o vazio, ligando os silogismos que se esgotam a novos domínios ao mesmo tempo semânticos e geográficos.
Por esses poucos exemplos que nem de longe esgotam as leituras que aqui se fazem, percebe-se que os brasileiros, à semelhança do que os árabes fizeram com Aristóteles na Idade Média, conservaram viva a obra de Lévi-Strauss.
Souberam lê-la de modo original, sutil e fecundo. Sutil porque reconheceram no próprio autor as passagens e aspectos em que ele complica e subverte aquilo que deu ensejo a leituras simplistas. Fecundo porque partiram não só da letra, mas também do espírito que animou a sua obra.

Manuela Carneiro da Cunha é antropóloga e professora na Universidade de Chicago. Uma versão deste texto foi publicada em "Lévi-Strauss - Leituras Brasileiras" (ed. UFMG).

FSP, 23/11/2008, Mais, p. 5

http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs2311200807.htm

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