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'A memória da tortura é muito presente entre o nosso povo', diz Ailton Krenak sobre campo de concentração em MG

G1 MG - g1.globo.com/br
Autor: Thais Pimentel
16 de Set de 2021

Líder indígena foi uma das pessoas obrigadas a viver longe de suas terras, após expulsão do povo Krenak durante a ditadura militar. Justiça condenou União, Funai e o governo de Minas por atrocidades cometidas no período.

Por Thais Pimentel, G1 Minas - Belo Horizonte
16/09/2021 16h58 Atualizado há 2 anos

"O que é mais escandaloso é que 50 anos se passaram e estas pessoas não tiveram nenhum apoio psicológico. Elas perderam a lucidez, vivem deprimidas, mudaram seu comportamento. A memória da tortura é muito presente entre o nosso povo", disse Ailton Krenak, líder indígena, em entrevista ao G1 nesta quinta-feira (16) para falar do campo de concentração criado pela ditadura militar em Minas Gerais para confinar homens, mulheres e crianças.

Em 1972, o povo Krenak foi expulso de suas terras ancestrais em Resplendor, no Leste de Minas Gerais, pelo governo e obrigado a viver na Fazenda Guarani, pertencente à Polícia Militar (PM), em Carmésia, a mais de 300 quilômetros de distância de suas terras. A medida foi tomada para facilitar a ação de posseiros vizinhos que tomaram os mais de 4 mil hectares dos indígenas.

Nesta quarta-feira (15), a 14ª Vara Federal de Minas Gerais condenou a União, a Fundação Nacional do Índio (Funai) e o governo do estado por violações dos direitos humanos e civis do povo Krenak durante a ditadura militar.

Nascido às margens de um dos afluentes do Rio Doce, Ailton Krenak foi um dos indígenas obrigados a crescer longe de sua terra natal. Ele não viveu na Fazenda Guarani, mas também passou pelo exílio.

"O nosso povo perambulou por todas as regiões do país, em outros estados com suas famílias. Todos nós fomos expulsos", contou.
De acordo com relatos dos indígenas no processo, espancamentos, torturas, castigos físicos praticados contra crianças e estupros eram comuns na Fazenda Guarani.

O governo militar também criou o Reformatório Agrícola Indígena Krenak, um presídio que chegou a abrigar 94 pessoas de 15 etnias, vindas de 11 estados brasileiros, em Resplendor. Parte da segurança era feita pela Guarda Rural Indígena, composta por pessoas das aldeias que vigiavam e puniam os presos.

As ruínas do presídio permanecem no território Krenak, onde vivem cerca de 500 indígenas que começaram a regressar depois da Constituição de 1988.

"Esta decisão é um passo importante para que as pessoas conheçam como funcionava a prática genocida do povo indígena durante a ditadura. Para nós, este período ainda é muito vivo. Até agora ninguém se retratou. O que há é uma decisão judicial que determina isso. Mas ninguém veio pedir desculpas", disse Ailton.

O que determina a Justiça
Segundo a decisão da juíza federal Anna Cristina Rocha Gonçalves, a União, a Fundação Nacional do Índio (Funai) e o governo do estado terão que realizar, em um prazo de seis meses, "após consulta prévia às lideranças indígenas Krenak, cerimônia pública, com a presença de representantes das entidades rés, em nível federal e estadual, na qual serão reconhecidas as graves violações de direitos dos povos indígenas, seguida de pedido público de desculpas ao Povo Krenak".

A Funai também terá que concluir o processo administrativo de delimitação da terra de Sete Salões, considerada sagrada para os indígenas. Só em 1993 que os Krenak conseguiram parte dos 40 mil hectares originais de volta. Porém, esta área ficou de fora.

A Justiça também determinou que a Funai e o Estado de Minas Gerais implementem "ações e iniciativas voltadas ao registro, transmissão e ensino da língua Krenak, de forma a resgatar e preservar a memória e cultura do referido povo indígena, com a implantação e ampliação do Programa de Educação Escolar Indígena".

A União deverá reunir toda a documentação relativa às graves violações, disponibilizando-a na internet, no prazo de seis meses.

Violência sexual
Na ação, o Ministério Público Federal (MPF) ainda pede a punição do capitão Manoel dos Santos Pinheiro, responsável pelo reformatório na época de sua criação. O órgão reivindicou a perda da patente e da aposentadoria de militar.

Indígenas ouvidos pela Comissão da Verdade nos últimos anos relataram abusos cometidos pelo capitão:

"Não tinha juiz, não tinha advogado, não tinha Justiça, não tinha nada. O capitão Pinheiro era quem decidia quem ia para a cadeia e quanto tempo ficava", disse a indígena Maria Júlia, em depoimento.
"Se um militar queria uma índia, ela tinha que dormir com ele e o marido ficava preso. E isso aconteceu muitas vezes. O próprio capitão Pinheiro vinha de vez em quando na aldeia Krenak e praticava estes atos de violência sexual contra as mulheres", contou Douglas Krenak, também em depoimento.
A defesa do militar reformado nega as acusações. A juíza entendeu que o pedido de punição do MPF deve ser analisado pela Justiça Militar, mas determinou que ele também é responsável pelas violações dos direitos dos indígenas.

O que dizem os condenados

A União e a Funai - ambas representadas pela Advocacia-Geral da União (AGU) - disseram que não receberam intimação até a manhã desta quinta-feira (16).

A Advocacia-Geral do Estado informou que ainda não foi notificada da decisão.

https://g1.globo.com/mg/minas-gerais/noticia/2021/09/16/a-memoria-da-to…

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