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Marina Perde

Carta Capital, Seu País, p. 22-28
Autor: FORGACH, John
20 de Out de 2004

Marina Perde
A ministra sofre mais um desgaste com a edição da MP dos transgênicos. Agora, decide se sai ou se fica

Por Amália Safatle

Vocês podem acreditar na imprensa ou no que o presidente Lula disse para mim. O presidente me garantiu que não assinará uma MP liberando o plantio da soja transgênica."
Essa frase, impregnada de otimismo, foi pronunciada pela ministra Marina Silva durante encontro com ambientalistas na noite de quinta-feira 7, em São Paulo.
Na quinta-feira 14, Marina ficou sabendo por Lula o que a imprensa havia noticiado há dias. O Planalto decidiu editar uma Medida Provisória permitindo o plantio e venda de soja transgênica, a terceira MP em pouco mais de um ano, para contrariedade da ministra. Agora, Marina se vê, de forma definitiva, diante de um dilema. Ou se rende às razões do Estado ou abraça os ambientalistas.
Nos últimos 12 meses, o prestígio interno de Marina foi corroído por um fogo rasteiro que só os instrumentos de detecção mais calibrados puderam captar em sua total dimensão.
Maior opositora da soja transgênica dentro do governo e aliada preferencial dos movimentos ambientalistas em Brasília, Marina parece perder poder a cada disputa e cada vez mais dispor apenas da tática do "empate" como forma de exercício político (seja ele travado fora ou dentro do governo).
O termo, popularizado pelo ambientalista Chico Mendes no início dos anos 80, é a tradução amazônica de uma espécie de piquete pacifista inspirado nas ações do líder Mahatma Gandhi.
Tratava-se então de um movimento de resistência que consistia em impedir os desmatamentos provocados pelos madeireiros, colocando 'os seringueiros, suas famílias, crianças incluídas, todos desarmados, à frente das árvores, impedindo a ação dos peões com motosserras.
Era uma estratégia que vencia pela resistência, pelo cansaço, pelo constrangimento. A escolha encaixa-se com o perfil da ministra, avessa à idéia de uma saída barulhenta do governo, depositária da agenda ambientalista e fiel ao presidente.
A tática de "empatar" deu certo em alguns momentos. Quando o governo editou, em 2003, a primeira MP liberando o plantio e a venda de soja transgênica, Lula se comprometeu com Marina que seria a última vez em que isso ocorreria, já que estava enviando ao Congresso a Lei de Biossegurança.
E, de fato, a Lei de Biossegurança foi aprovada na Câmara em primeiro turno, em fevereiro, garantindo ao Ministério do Meio Ambiente poder de avaliar e decidir sobre o impacto ambiental do plantio de transgênicos. Mas, sob auspício de próceres petistas, no início de outubro o projeto foi modificado, retirando do Meio Ambiente, e também da Saúde, qualquer papel regulador. Marina logo afirmou que tentaria derrubar na Câmara o texto aprovado pelas comissões do Senado. Mais um "empate" intramuros na Esplanada.
O novo baque de Marina coincide com o aniversário de um ano da primeira grande manifestação de organizações não-novernamentais contra a política ambiental do governo Lula, na qual a questão dos transgênicos era apenas um item.
Em outubro do ano passado, 500 organizações não-governamentaiss redigiram uma carta em que enumeravam vários pontos críticos na gestão do governo do PT.
- Estamos muito frustrados. Ninguém é contra o progresso, mas tínhamos expectativa de que fosse adotado um modelo de desenvolvimento econômico sustentável -, revela o diretor-executivo do Greenpeace no Brasil, Frank Guggenheim.
Um dos principais críticos do governo federal entre os ambientalistas é o economista carioca Jean Marc von der Weid, 57 anos, integrante da Campanha por um Brasil Livre de Transgênicos, coalizão de 82 ONGs. Fundador do PT no Rio, Von der Weid critica a política de meio ambiente do governo Lula, considerada por ele do mesmo calibre da adotada por Fernando Henrique Cardoso e antecessores.
"De um ano para cá, só piorou. Integrantes desse PT que hoje está no comando do País mudaram radicalmente de posição, de defensores da necessidade de estudos de impacto ambiental para adeptos do liberou geral. Pior que essa conversão se deu por razões vinculadas a uma opção cega pelo agronegócio representado no governo pelo ministro da Agricultura, Roberto Rodrigues", diz Weid.
No meio dos ambientalistas, a opinião é que setores do governo optaram por um modelo de crescimento típico dos anos 70, época de grandes obras sem a necessária contrapartida ambiental.
A tensão registrada entre Marina e a ministra Dilma Rousseff, das Minas e Energia, seria a manifestação política dessas duas correntes. Dilma exigia o licenciamento ambiental rápido para dar andamento a obras de hidrelétricas.
Segundo integrantes dos dois ministérios, ambas cederam e agora o licenciamento sai mais rápido. De outro lado, o ministério de Dilma só aprova usinas com estudos de impacto ambiental prévio.
Ícone do movimento verde, Marina empresta verniz ambiental ao governo. Funciona como uma espécie de película protetora contra ataques das ONGs. Ex-seringueira, amiga de Chico Mendes, marcada por seqüelas neurológicas causadas por doenças adquiridas na selva e tratamentos toscos (malárias e contaminação por metais pesados), a ministra ainda é a melhor aliada dos ambientalistas dentro do governo.
Nunca tantos "verdes" ocuparam postos-chave em Brasília. Há avanços importantes no radar, ainda que polêmicos, como o envio do projeto de lei ao Congresso na próxima semana do plano de gestão de florestas, que prevê concessões para que agentes privados explorem de forma sustentável, e por tempo determinado, a extração de madeira.
Os licenciamentos ambientais começaram a sair (24 neste ano) e a equipe de analistas multiplicou-se por dez, alcançando cerca de 70 profissionais. O orçamento do Ministério para 2005 é de R$ 1,9 bilhão, R$ 500 milhões a mais do que o que foi previsto para este ano.
O problema é que as ONGs perderam uma caixa de ressonância com a subida do PT ao poder. Hoje, na oposição, não há um partido que recepcione em sua totalidade a agenda dos movimentos ambientais como antes fazia o PT.
"Esse governo não é pior do que os outros no campo ambiental. A diferença é que falta na oposição um partido que empunhe a bandeira dos ambientalistas", analisa Guggenheim, do GreenpeaceCom tamanha expectativa dos ambientalistas sobre o governo petista, para o qual foram alçados muitos de seus representantes, a decepção tem sido larga.
Percebeu-se que o Ministério do Meio Ambiente se tornou força isolada em um governo que prioriza o crescimento e fica feliz enquanto as exportações continuem fazendo a festa da balança comercial e salvando as contas públicas.
Para o vice-presidente da ONG Conservação Internacional, José Maria Cardoso, em vez de arcar sozinha com a questão ambiental, Marina Silva quis compartilhar a causa com outros ministérios, adotando o princípio da transversalidade:
- O problema é que esses outros ministérios nunca colocaram variáveis de ordem ambiental em suas pastas. O meio ambiente ainda é visto dentro do governo em geral como um entrave ao crescimento, e não como uma variável estratégica que deva fazer parte de todo e qualquer planejamento.
Segundo fonte egressa do Ministério do Meio Ambiente, que preferiu não se identificar, o núcleo duro do governo não abre nenhum diálogo para as políticas de desenvolvimento que sejam sustentáveis.
- Na verdade, eles nem entendem o que seja sustentabilidade e também não têm paciência de ouvir. Houve uma vez em que nos preparamos dois meses para apresentar ao Lula e a José Dirceu projetos para o desenvolvimento sustentável no País, mas em 20 minutos de apresentação a secretária do presidente perguntou se aquilo ainda ia demorar muito, porque ele tinha outro compromisso.
Adriana Ramos, coordenadora de políticas públicas do Instituto Socioambiental, explica que o governo tem aberto fóruns, grupos de trabalho e comitês como nunca foi feito em outros governos:
- No entanto, trata-se de representações meramente consultivas. E praticamente impossível propagar a transversalidade que a ministra Marina quer.
Na visão de Washington Novaes, jornalista que acompanha a área ambiental há 30 anos, falta a este governo visão estratégica sobre assuntos ligados ao meio ambiente e prevalece a de um desenvolvimentismo antigo:
- Para a ONU, o mundo hoje se depara com dois problemas centrais: a insustentabilidade do planeta diante dos padrões de consumo e as mudanças climáticas. O Brasil deveria tirar proveito dessas vantagens comparativas, em vez de se tornar um fornecedor baratinho de commodities para o Primeiro Mundo e para a China. O País passou a apostar muitas fichas em setores exportadores, nos quais está suscetível a decisões e preços externos. A queda dos preços da soja por conta da supersafra norte-americana é um exemplo disso.
Ainda que reconheçam o desgaste político, a porta-estandarte - dizem representantes dos movimentos - continua sendo Marina. Assessores da ministra minimizaram o choque da derrota provocada pelo impacto da MP. Disseram que o temor de Marina era a edição de uma medida que reproduzisse o tom do projeto aprovado no Senado no início de outubro, que retirou seus poderes de intervenção.
Segundo eles, isso seria a pá de cal nas negociações pela aprovação final logo depois do segundo turno da Lei de Biossegurança na Câmara, que Marina ainda tem a esperança de que saia a seu gosto. O jogo até agora indica que Marina deve permanecer no ministério.
Engana-se, portanto, quem pensar que este jogo somará zero (isto é, se Rodrigues vence, ela perde). Sendo que, desta vez, o risco político dessa decisão seria muito maior.

Principais focos da luta ambiental
Desmatamento recorde e inércia na questão das mudanças climáticas despertam críticas
A seguir, as mais importantes batalhas travadas entre o governo Lula e representantes da causa ambiental
Transgênicos
O maior pivô das crises políticas envolvendo o Ministério do Meio Ambiente tem sido a liberação do plantio e comercialização dos organismos geneticamente modificados. Isso porque, quando eleito, Lula prometeu que só liberaria os transgênicos caso houvesse garantias de que esses produtos não trariam riscos para a biodiversidade e para a saúde humana.
Até hoje faltam certezas em relação a esses riscos, e nem por isso Lula deixou de reeditar Medida Provisória liberando o cultivo e o plantio da soja para essa safra. Além disso, o texto aprovado no Senado retira dos ministérios da Saúde e do Meio Ambiente poder decisório sobre o tema, e amplia o de cientistas indicados pelo Ministério de Ciência e Tecnologia.
A maior parte dos estudos sobre os transgênicos foi realizada em países temperados, com condições climáticas muito diversas das brasileiras. "Faltam pesquisas de qualidade independentes, que não sejam patrocinadas por grupos e empresas pró ou contra transgênicos", diz José Maria Cardoso, vice-presidente de ciência da ONG Conservação Internacional.
Energia
Até a comunidade internacional, que esperava do Brasil uma posição de protagonista na área de energias renováveis, tem uma série de motivos para se decepcionar. Na última conferência mundial sobre o tema, realizada em Bonn, na Alemanha, em junho, o Brasil, com todo o seu potencial eólico, solar e de biomassa, pouco teve a acrescentar.
Segundo uma ex-integrante do Ministério do Meio Ambiente (MMA) - que se retirou do governo, conforme suas palavras, por não concordar com o descaso do governo federal em relação aos temas ambientais -, a ministra de Minas e Energia, Dilma Rousseff, já deixou claro que não está disposta a discutir a matriz energética brasileira.
"Ela não está nem aí para as energias alternativas. O negócio da Dilma são as grandes hidrelétricas, e em sua visão o MMA é um entrave que atrapalha a aprovação dessas obras. É aquela idéia antiga de desenvolvimento dos anos 70, segundo a qual o Brasil só cresceria se fizesse projetos grandiosos. Hoje em dia, não é mais assim que funciona", diz.
Itaipu, por exemplo, foi aprovada sem licenciamento ambiental, numa época em que não havia esse tipo de preocupação por parte da sociedade. Hoje já é possível medir os impactos causados pelas hidrelétricas. As barragens das grandes usinas alteram o clima e a temperatura local, produzem gases do efeito estufa, deslocam comunidades inteiras, geram danos sociais e inundam áreas enormes. Em geral, as linhas de transmissão abrem caminhos em florestas que induzem ao desmatamento e à ocupação irregular. O lago de Tucuruí, onde uma floresta inteira ficou submersa, tornou-se um dos maiores focos de malária do mundo por conta do desequilíbrio ecológico que levou a uma superpopulação de mosquitos.
Além disso, o Brasil está retomando a construção de Angra 3 no momento em que o mundo todo caminha para desativar as usinas nucleares. Toda a culpa de atrasos nos projetos de energia elétrica é colocada sobre os ambientalistas, mas a expansão de Tucuruí foi suspensa para atender às metas de superávit fiscal, diz o jornalista Washington Novaes, que acompanha a área ambiental há 30 anos. "É mentira que há dezenas de projetos na fila para ser aprovados: só tem três. Há vários que já foram deferidos", diz o especialista.
"Em vez de as alas desenvolvimentistas do governo baterem no MMA, deveriam repotencializar as atuais usinas", emenda Novaes. Um estudo da ONG WWF mostra que bastaria essa medida para trazer um acréscimo de 10% na atual oferta de energia elétrica.
Mudanças Climáticas
Há quem diga que o protagonismo brasileiro nas discussões mundiais das mudanças climáticas foi o único ponto alto da gestão Fernando Henrique na área ambiental. De fato, o Brasil teve participação decisiva nesse tema, como autor de uma proposta inovadora, a do Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL), previsto no Protocolo de Kyoto. O MDL permite às nações em desenvolvimento implementar projetos de redução de emissões ou de absorção de gases-estufa, e vender papéis correspondentes a essas reduções (os chamados créditos de carbono) aos países industrializados. Esses países, emissores seculares de carbono, têm metas de redução a cumprir, a fim de minimizar o aquecimento global.
Com a entrada do governo Lula, pouca atenção foi dada a esse tema, considerado pela ONU como um dos assuntos decisivos para a humanidade, e que ganha força com a sinalização dada pela Rússia em ratificar o Protocolo. O Fórum Nacional de Mudanças Climáticas, criado em 2000, foi praticamente desmontado (mal chegou a realizar reuniões no governo Lula), resultando no pedido de demissão do secretário-executivo Fábio Feldmann. Com isso, houve saída de especialistas que acumulavam conhecimento sobre esse tema e compunham o Ministério da Ciência e Tecnologia (líder da Comissão Interministerial de Mudanças Climáticas). Há um mês, Luiz Pinguelli, ex-presidente da Eletrobrás, foi nomeado por Lula como o novo secretário-executivo do Fórum, o que pode indicar uma reativação desse órgão.
Desmatamento e perda de habitats
Os índices de desmatamento na Amazônia, berço da ministra Marina Silva, batem recordes e são os maiores do planeta, o que valerá ao Brasil uma menção no Guinness Book de 2005. Além disso, os incêndios provocados em áreas de produção agrícola e pecuária, terras indígenas e áreas protegidas aumentaram 13% em todo o País neste ano. O Ibama explica que os dois fatos estão interligados. Com o maior desmatamento, aumenta a quantidade de matéria orgânica seca que acaba servindo de combustível para os incêndios.
O ritmo das derrubadas é crescente: de outubro de 2002 a outubro de 2003, foram desmatados 23.750 quilômetros quadrados. Nos anos 90, a média havia sido de 14.242 quilômetros quadrados.
"Isso acontece apesar dos avanços na forma como o assunto passou a ser tratado neste governo, que instituiu um plano interministerial contra o desmatamento, sob a coordenação da Casa Civil. Mas, na prática, esse discurso não é implementado porque falta coordenação política e técnica entre as esferas federal, estadual e municipal", avalia Paulo Moutinho, coordenador de pesquisas do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam).
A principal pressão sobre a Amazônia, embora o ministro da Agricultura, Roberto Rodrigues, negue, vem da expansão agropecuária, encorajada pelos governos estaduais. As plantações de soja, depois de tomar o Cerrado, ocupam o lugar de pastagens em áreas já devastadas na região amazônica. O gado, por sua vez, é empurrado para a floresta, levando à abertura de novas fronteiras.
"No passado havia uma relação direta entre aumento da atividade econômica e desmatamento. Hoje em dia, mesmo quando há queda do PIB, os índices batem recordes, e a explicação está na soja e no gado", diz Moutinho.
Foi motivo de escândalo entre 1.200 entidades da sociedade civil, no fim de setembro, a aprovação de um empréstimo de US$ 30 milhões, por parte do Conselho Diretor da International Finance Corporation (IFC), braço do Banco Mundial, a uma empresa de Blairo Maggi, governador do Mato Grosso, chamada Amaggi. Essas informações foram passadas por John Forgach, professor de Yale na área de negócios sustentáveis e consultor da ONU (entrevista na edição impressa).
O dinheiro do empréstimo seria usado para expandir a produção de soja de Maggi na região leste do Estado, local onde já existe uma forte pressão de desmatamento. O financiamento foi aprovado sem a realização de estudos de impacto ambiental e mesmo depois de James Wolfensohn, presidente do Bird, haver garantido às ONGs que avaliaria com cuidado os empréstimos para a expansão da soja na Amazônia. Segundo informações do IFC, a Amaggi está implementando um sistema de gestão ambiental para assessorar o grupo a adotar as melhores práticas socioambientais.
Há mais críticas. Para Moutinho, o Ministério do Meio Ambiente tem resistência de abordar o assunto das emissões de gases de efeito estufa que provêm das queimadas. Dois terços das emissões de carbono do Brasil vêm do desmatamento. Assim que o Protocolo de Kyoto for ratificado, os demais países signatários certamente vão exigir do Brasil que tenha metas de redução de carbono a cumprir.
"O Brasil sairia da condição privilegiada de ser apenas um ofertante de créditos. Essa é uma discussão que ainda não está em pauta aqui. O Brasil precisa começar a tratar o desmatamento como um assunto dentro do tema das mudanças climáticas", diz Moutinho. O aumento do patamar de 18 mil para 23 mil quilômetros quadrados ao ano significa mais 60 milhões de toneladas de carbono liberados a cada ano na atmosfera.
José Maria Cardoso, da Conservação Internacional, embora veja méritos no MMA, não poupa críticas. Para ele, um importante avanço da gestão Marina Silva é a divulgação da lista da fauna ameaçada - importante ferramenta para a pesquisa e conservação.
"A ministra comprou briga com setores do governo, a exemplo do Ministério da Pesca, e conseguiu incluir na lista os animais aquáticos, como peixes e crustáceos. Mas há lentidão em passar do planejamento para a ação", diz Cardoso. "Há muitas Unidades de Conservação que estão sendo invadidas e outras que nem sequer foram criadas. Um dos maiores problemas que temos hoje é a perda crescente de habitats em todas as regiões do País, até mesmo na Mata Atlântica, protegida por lei", completa.
Transposição do Rio São Francisco
A transposição do rio São Francisco para irrigar áreas do semi-árido nordestino, projeto conduzido pelo Ministério da Integração Nacional, é cara, pode trazer grandes complicações e não resolveria os problemas da pobreza e da seca que atinge 17 milhões de pessoas na região. Segundo o jornalista Washington Novaes, o Comitê de Gestão da Bacia Hidrográfica do rio desaconselha a transposição para a irrigação. Apenas admite a alteração no curso de pequenos volumes de água, voltados ao consumo humano e animal. Mesmo assim, o governo federal já reservou US$ 1 bilhão do Orçamento do ano que vem para o projeto, cujos custos são estimados em R$ 4,2 bilhões.
Segundo estudos do Comitê, trata-se de um projeto que, devido ao próprio gigantismo, deve gerar altos impactos, que hoje são totalmente desconhecidos. Em troca, seriam beneficiados produtores de algodão e de frutas para exportação.
"Uma alternativa à transposição defendida pelos especialistas é resolver o problema da seca das comunidades mais isoladas por meio da instalação de cisternas, com baixos custos individuais, como já tem sido aplicado em escala menor pelo Fome Zero", diz Novaes.
Os estudos do Comitê alertam para mais um fato: "Já está provado historicamente que conduzir água não resolve o problema. O exemplo mais gritante está na área que margeia a calha do São Francisco, onde, a distâncias pequenas da margem, pode-se presenciar o drama da sede e da miséria de multidões de brasileiros".
Para José Maria Cardoso, vice-presidente de ciência da ONG Conservação Internacional, as pessoas costumam pensar os rios apenas como água, que pode simplesmente ser transferida de um lugar para outro. "Na verdade, um rio é um conjunto de elementos vivos que, se alterado drasticamente, compromete a própria existência do rio." Segundo ele, a região do São Francisco abriga conjuntos aquáticos endêmicos, ou seja, que só existem naquela região do mundo.
Demarcação e homologação de terras indígenas
A não-homologação da reserva indígena Raposa/Serra do Sol, em Roraima, virou um símbolo da insatisfação ambiental em relação a Lula, e da hesitação do presidente entre atender as populações indígenas e os interesses econômicos locais. Isso porque bastaria uma assinatura do presidente para reconhecer oficialmente a área de 1,69 milhão de hectares, demarcada pela Funai no governo Fernando Henrique - a única que ficou pendente da gestão anterior. O processo de demarcação havia sido iniciado em 1977.
A área é conflituosa porque, embora fosse uma reserva habitada por índios de diversas etnias, governos anteriores permitiram que lá fosse estabelecido um município, o de Uiramutã, originado por uma onda de invasões de garimpeiros na década de 90, e que ganharam respaldo jurídico local.
A área é disputada por plantadores de arroz, que entraram na região mesmo após a demarcação em 1998. Além disso, em seu subsolo encontram-se valiosos recursos minerais. Sem falar na questão da segurança nacional evocada pelos militares, uma vez que a área possui extensa fronteira com a Guiana. Ambientalistas argumentam, no entanto, que a homologação da reserva não impede o estabelecimento de bases militares para proteção de fronteira.
Concessão de florestas
Se bem-feita, será uma solução para a grilagem e a invasão de terras, que levam ao desmatamento e à colonização caótica. Se malfeita, será um desastre. O projeto de lei - que oferta, em regime de concessão, terras devolutas para a exploração da iniciativa privada - já passou pela Casa Civil e segue para votação no Congresso. A idéia é abrir essas áreas à exploração econômica sustentável, inibindo a grilagem.
O problema, na visão de Claudia Azevedo Ramos, coordenadora de pesquisas do Ipam, reside no risco de gestão desses projetos, que ficariam sob responsabilidade do governo. Caso o poder público não seja eficiente em fiscalizar e monitorar essas áreas de concessão, o problema da exploração indevida da floresta tomaria proporções maiores que as atuais. "A administração pública no Brasil tem um histórico de inépcia, em diversos setores. O risco está aí", diz a pesquisadora.
Importação de pneus usados
O problema da importação de pneus usados parecia resolvido depois da publicação da Resolução 258/99. O assunto, ao contrário, deve ganhar ainda mais importância com a proximidade do fim de ano, quando entra em vigor na União Européia uma lei que proíbe o descarte do material em aterros sanitários. A solução que já vinha sendo adotada pelos países europeus era vender os pneus velhos a preço de banana a países como o Brasil e se livrar de um problema - os pneus são de difícil reciclagem e biodegradação, podem se tornar foco de doenças e, se queimados, emitem fumaça altamente tóxica.
Com a entrada em vigor da legislação brasileira, mesmo depois de uma reedição do texto original, os importadores passaram a usar brechas legais para trazer o entulho. Por meio de liminares, as importações continuam ocorrendo. "Achamos que a reforma da resolução seria suficiente para eliminar essas brechas, mas a pressão política é muito forte", revela Cláudio Langone, secretário-executivo do Ministério do Meio Ambiente.
O único país que oficialmente pode exportar os pneus para o Brasil é o Uruguai. A decisão se deu no âmbito do Mercosul e pode ser estendida a outros parceiros. A estimativa é de que haja no Brasil 100 milhões de pneus usados importados.
Segundo Langone, no primeiro semestre, a UE mandou o recado para o Itamaraty sobre a possibilidade de incluir o pneu na pauta de negociações com o Mercosul. Os dois blocos têm dado trombadas e não conseguem chegar a um consenso. "Será um assunto para discutirmos entre o Meio Ambiente, o Itamaraty e o Ministério do Desenvolvimento", diz.
É mais um exemplo de que temas ambientais nunca estão separados de outras esferas governamentais. Os problemas são de ordem planetária e não será uma voz isolada capaz de resolvê-los. A carga de Marina torna-se maior, e até insuportável, a cada vez que outros participantes do governo lhe negam colaboração.

Vantagens desperdiçadas
Posições estratégicas foram abandonadas pelo governo, diz especialista

John Forgach é hoje um dos maiores especialistas em investimentos ambientalmente sustentáveis. Brasileiro, fez carreira no mercado financeiro internacional e foi vice-presidente do Chase Manhattan Bank. Em meados da década de 90, interessou-se por questões ambientais. A partir de então, criou e geriu instituições financeiras voltadas para investimentos em projetos de sustentabilidade. Uma delas, a A2R, foi a primeira administradora de fundos com fins lucrativos baseados em critérios socioambientais. Tornou-se presidente de várias ONGs e conselheiro de organismos da ONU e de outras entidades internacionais do setor. Em 2003, começou a dar aulas sobre investimento em projetos ambientais na Universidade Yale, nos EUA.
Forgach falou a CartaCapital sobre a crise global da agenda verde e sobre a atuação, que considera decepcionante, do governo Lula nessa área.

Carta Capital: Como vai a agenda ambiental do planeta?

John Forgach: Retrocedendo. 0 mundo, hoje, está obnubilado pela agenda Bush-Bin Laden, isso é o que nos ocupa todo dia e ocupa 90% da atualidade mundial em qualquer canal de notícias. Depois do 11 de setembro, a agenda ambiental foi totalmente descartada. CC: 0 governo Bush lidera esse processo?

JF: Sem dúvida. Os EUA, que eram a locomotiva nessa área, viraram uma força fundamentalista, retrógrada, sob a administração Bush. Hoje, a Europa assumiu essa liderança. Mas a União Européia ainda não tem tanto poder quanto os EUA para produzir mudanças. Uma das características do setor verde dos anos 80 e 90 é que ele era movido e alimentado por entidades multilaterais, como o Banco Mundial, a International Financial Corporation, o Banco Interamericano de Desenvolvimento, o FMI e as agências da ONU. Esse pessoal todo está baseado em Washington e o maior acionista desses organismos é o Tesouro americano.

CC: Essa redução de investimentos em projetos ambientais pode ser exposta em números?

JF: 0 mundo chegou a fazer investimentos de risco da ordem de US$110 bilhões a US$ 120 bilhões em setores emergentes, como internet e biotecnologia. Os projetos "verdes" - de preservação ou melhoria ambiental e utilização sustentável de recursos naturais - ficavam com cerca de um terço desse total. Isso foi no ápice da bolha especulativa, que começou a estourar em 2000, após o pico da Nasdaq, e em 2001 arrebentou de vez. A partir de 2001 o total investido despencou para US$ 6 bilhões a US$ 8 bilhões anuais. Agora, em 2004, subiu um pouco, para US$12 bilhões a US$15 bilhões, mas a participação do verde foi a zero. Hoje vai quase tudo para biotecnologia, e para a indústria e as ciências da saúde.

CC: Uma queda de mais ou menos US$ 40 bilhões para zero. Foi isso?

JF: É isso. Na Universidade Yale, por exemplo, de onde saem muitas idéias para esses projetos novos, é feito um concurso de planos de negócios todos os anos. Os investidores em capital de risco, os banqueiros, todo mundo vai ao evento. Este ano eu fiz parte de um painel de avaliação. De 372 apresentados, não havia um único projeto verde.

CC: Muitos esperavam que, com o governo lula, os ambientalistas chegariam ao poder...
JF: Exatamente, essa era a expectativa. Eu mesmo tinha uma ótima experiência com governadores de esquerda, no Amapá, no Acre, eles tinham posições modernas, inteligentes.

CC: 0 que aconteceu após a chegada ao poder?

JF: Foi um choque, uma total surpresa quando o governo Lula pegou o programa Avança Brasil, do Fernando Henrique, pintou de vermelho e pôs lá o PPA (Plano Plurianual para a Amazônia). Aquilo foi como tirar a poeira de planos militares antigos, dos eixos de desenvolvimento, no estilo da Transamazônica.

CC: 0 que há de mais danoso nessas novas diretrizes?

JF: 0 mais evidente é a BR-163, a Cuiabá-Santarém. É um termômetro da capacidade do governo de se comportar de maneira irresponsável, porque está criando uma estrada asfaltada atravessando a Amazônia. Aquilo está um faroeste total. Tentei aterrissar na região para ver o andamento da coisa e fui expulso por pistoleiros. Lá não tem lei, não tem Ibama... Nem o pessoal do Incra tem coragem de aterrissar lá, são recebidos à bala. E estamos falando de uma área muito grande de abrangência da estrada, mais de mil quilômetros. 0 projeto foi anunciado, fizeram-se grande alarde, debates com a população, reuniões, todo tipo de planos de sustentabilidade, mas não há um tostão para implementá-los. 0 setor privado não quer esperar. 0 programa está sendo atropelado. Estamos voltando a uma situação como a da abertura da Transamazônica. São 40 anos de retrocesso.

CC: E como o senhor vê a situação da ministra Marina Silva?

JF: Eu acho que essa mulher é uma heroína. Mas no governo Lula ela está sendo atropelada. A área dela é a última na fila da distribuição do Orçamento, não recebe verbas. Ela foi desacreditada publicamente pelo governador do Mato Grosso, Blairo Maggi, que disse abertamente que no Estado dele o 20-80 não conta, lá é 50-50.

CC: De área a ser preservada?

JF: É. 0 Mato Grosso tinha de obedecer à lei federal, que permite desmatar 20% e manda que se guarde 80% de reserva. Ele disse, em palanque, que isso no Estado dele não vale. Falam em 50%, mas daqui a pouco serão só 30% preservados. A Marina Silva também foi atropelada na questão dos transgênicos. A atuação dela nesse governo é um calvário, ela está pondo a sua credibilidade em risco. É muito triste ver isso, porque é uma mulher de uma coragem e uma perseverança admiráveis.

CC: Quais são as principais ações que o governo federal poderia e deveria iniciar ou retomar na área ambiental?

JF: Eu acho que o primeiro grande erro que este governo cometeu foi o abandono do Fórum de Mudanças Climáticas. 0 Brasil tinha uma vantagem estratégica aí, um posicionamento de liderança que era mantido pelo Fórum. Essa liderança que foi tomada pela China e pela Rússia. A reinstalação de um fórum desse tipo é absolutamente urgente e vital, ainda mais agora que o Protocolo de Kyoto vai ser efetivado e o Brasil é um dos signatários. A segunda é a questão da biodiversidade. 0 Brasil é um signatário da convenção sobre a biodiversidade, que foi lançada na reunião do Rio em 1992. 0 País é detentor da maior diversidade biológica do planeta e, como tal, tem uma responsabilidade. 0 Brasil não tem ainda um quadro regulatório para acesso a recursos genéticos. Outra prioridade, que é um dos elementos da agenda do milênio, é a questão da água, que está se tornando rapidamente o recurso estratégico mais vital do planeta, mais até do que o petróleo. 0 Brasil detém um quinto das reservas de água do planeta e, no quadro intervencionista instaurado pelo governo Bush, pode até vir a ser um alvo caso persista na utilização irresponsável de seus recursos hídricos. É preciso organizar um quadro regulatório para o uso e a preservação dos recursos hídricos, área na qual países como Austrália, África do Sul e Canadá já estão muito avançados. Na questão da água, do clima, da mudança climática e da biodiversidade o Brasil deveria ser líder mundial e não é. Parecemos um bando de iniciantes, improvisadores. - A Flavio Lobo

Carta Capital, 20/10/2004, Seu País, p. 22-28

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