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Marco temporal: voto de Moraes dá brechas para 'premiar invasor' e traz insegurança jurídica aos indígenas, dizem entidades

O Globo - https://oglobo.globo.com/brasil/noticia/2023/08/29
29 de Ago de 2023

Marco temporal: voto de Moraes dá brechas para 'premiar invasor' e traz insegurança jurídica aos indígenas, dizem entidades
A pedido da Comissão Arns, Conectas protocolou no Supremo parecer de constitucionalista para sensibilizar o voto de outros ministros da Corte; continuação do julgamento está marcada para esta quarta-feira

Por Daniel Biasetto
- Rio de Janeiro
29/08/2023 04h00 Atualizado há 3 horas

Entidades indígenas e de direitos humanos temem pela "contaminação" do voto do ministro Alexandre de Moraes a seus demais pares durante o julgamento da tese do marco temporal no plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) marcado para esta quarta-feira.
Apesar de o voto de Moraes considerar que a data da promulgação da Constituição Federal (5/10/1988) não pode ser utilizada como ponto de definição da ocupação tradicional da terra por comunidades indígenas (contra a tese do marco temporal, portanto), sua proposta de conciliação e pagamentos de indenização sobre o valor das áreas a ruralistas com supostas posses dentro de território indígena pode trazer insegurança jurídica, avalia o jurista Daniel Sarmento, que a pedido da Comissão Arns fez um parecer técnico protocolado no Supremo sobre o voto do ministro. O placar está em 2 a 1 a favor dos povos originários.
Fachin e Moraes votaram contra a tese e o ministro Nunes Marques, a favor. Ainda faltam manifestar seus votos André Mendonça, Luís Roberto Barroso, Rosa Weber, Luiz Fux, Dias Toffoli, Cármen Lúcia e Gilmar Mendes.
No documento a que o GLOBO teve acesso, Sarmento tenta sensibilizar o Supremo sobre os seguintes pontos: que a indenização vai prejudicar as demarcações concluídas e as que estão em processo, além de trazer insegurança jurídica para os povos indígenas, uma vez que a ideia de pagamento seria "constitucionalmente inadmissível", desprotegendo-os do seu direito fundamental mais importante e afetando ainda mais o meio ambiente e a importância que esses povos têm para sua preservação. Tal "compensação", frisa Sarmento, ligada ao "interesse público" e à promoção da "paz social" como está escrito no voto de Moraes, está longe de atender aos requisitos necessários para restrição a direitos fundamentais na ordem constitucional brasileira e pode acabar por "premiar o invasor".
- Ele (Moraes) diz para assegurar o interesse público e a paz social, desde que com a concordância do povo indígena, a União pode trocar de terra. Essa possibilidade ela é totalmente incompatível com toda a filosofia constiticional de proteção das terras indígenas que pressupõe que há um vínculo muito forte, muito espiritual, muito profundo, entre esses povos e seus territórios. Se tem terra sobrando, como disse o ministro Moraes, é para trocar por boas terras eventualmente e não tirar os indígenas de lá - justifica Sarmento ao GLOBO.
De acordo com o constitucionalista e professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), os termos que o ministro Moraes utilizou sobre "interesse público e paz social" são muito vagos.
- Vamos imaginar um governo que não tenha nenhuma preocupação com a proteção dos direitos indígenas, como o governo que terminou agora. Se passar essa tese, qualquer empreendimento comercial ou energético, qualquer argumento serviria de pretexto para tirar dos indígenas do território deles e dar um outro território - afirma Sarmento, que prossegue:
- O ministro Alexandre fala em indenização sobre "terras nuas" e tal, mas em hipóteses muito específicas em que seja possível demonstrar que alguém fora atraído para o território indigena, não sabia que ali era território indígena, estava de completa boa fé e ficou muito tempo, várias gerações, é possível pensar numa ação, mas uma ação fora do processo de dermacação. Mas agora essa indenização não pode ser prévia. Assim você reconhece que alguém sofreu um dano por um ato ilícito e busca a compensação desse ato ilícito, como qualquer ato ilícito do direito brasileiro gera dever de indenização pelo Estado. Então é uma saída completamente compatível com a Constituição e não cria esse risco terrível para os povos indígenas. Que são primeiro o de não demarcar essas terras que estão faltando - e isso pode ficar para as calendas gregas. Segundo, o de criar um risco para as demarcações que já existem e, terceiro, essa ideia de remoção e troca de territórios. Isso não faz sentido - afirma.
O jurista reforça ainda que a questão dos pagamentos podem ser elevados e mais burocráticos, ampliando a insegurança jurídica.
- A Constituição é clara que tinha que ser feito o processo de demarcações em cinco anos e a gente já tem 35 anos e ainda faltam muitas terras para demarcar. Quando não tem que pagar é assim. Se tivesse que pagar dependendo de recursos fiscais e da boa vontade dos governos, e valor de "terra nua" muitas vezes é bastante alto, é um valor bastante significativo, certamente iria prejudicar um grupo que é vulnerabilizado, que não tem tanto acesso ao poder, então não vão mesmo acontecer essas demarcações. Você pagar de maneira tão ampla a demarcação de "terra nua" tem uma dimensão até ofensiva para os povos indígenas porque você vai acabar muitas vezes pagando para quem violou gravemente seus territórios, aquelas pessoas que usaram até de violência física para retirá-los das terras, numa espécie de "prêmio para o invasor". E como são categorias vagas e que muitas vezes dependem de provas isso pode criar oportunidades para pessoas, enfim, impugnarem demarcações ou processos em curso às vezes até para tentar ganhar dinheiro. Então isso gera uma insegurança jurídica no processo demarcatório muito grande - finaliza Sarmento.
Para a antropóloga Manuela Carneiro da Cunha, integrante da Comissão Arns, há um risco colocado no voto do ministro Alexandre de Moraes.
- Esse voto de conciliação não traz paz jurídica. Ele teve a virtude de rejeitar a tese do marco temporal, mas por outro lado trouxe condições que tornam praticamente inviável a demarcação de terras indígenas, cujos reais titulares não estavam no dia 5 de outubro de 1988. Diante disso, defendemos que o voto de Moraes merecia uma consideração mais aprofundada feita por um constitucionalista de grande peso e pedimos esse parecer ao professor Daniel Sarmento. Um modo pertinente sobre questões constiucionais que estão colocadas sobre essa proposta do ministro e eventuais alternativas referentes à possibilidade de indenização. Esses são os pontos centrais do parecer - afirma ao GLOBO.
Manuela acredita que esse parecer protocolado no Supremo consiga embasar e fundamentar argumentos junto a outros ministros que não votaram ainda para mostrar que há outras maneiras de proceder.
- E maneiras que igualmente contemplem a importância constitucional dos direitos indígenas, contemplem o papel que esses indígenas desempenham num momento de crise climática, num momento em que o mundo inteiro está preocupado com isso, e por outro lado contemple a possibilidade de pessoas não indígenas que se sentirem lesadas pelo Poder Público, que se sentiram induzidas a cometer o ilícito, que eles sejam indenizados por isso, mas em outro processo - finaliza.
Ganhar, mas não levar
Para o coordenador executivo da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), Dinaman Tuxá, o voto de Moraes traz preocupação e certeza de que terá impacto no processo de demarcação.
- O que os povos indígenas podem comemorar do voto do ministro Moraes é a rejeição à tese do marco temporal como ato inconstitucional. Mas por outro lado, ao mesmo tempo, ele trouxe uma discussão nova que é a indenização prévia. E nós entendemos que não pode se refutar o direito aos territórios pelos povos indígenas e que nada agrega essa indenização prévia, aliás traz inclusive um dano que, se porventura for aprovada, irá levar à paralisação dos processos de demarcação das terras indígenas. Então, nós estamos falando de direitos originários, um direito que não prevê a indenização prévia. O que prevê é a discussão num âmbito de um processo administrativo e possivelmente judicial após. Discutir uma indenização prévia fora do rito que já está posto vai impactar ou até mesmo inviabilizar as demarcações - afirma.
Já o coordenador jurídico da Apib, Maurício Terena, aponta equívoco no voto de Moraes quando nele se compara o direito civil ao dos povos indígenas.
- Nós temos um posicionamento contrário ao entendimento do ministro Alexandre de Moraes. Politicamente é um voto que agrada aos ruralistas e aos próprios ministros no sentido de não criar uma mal-estar entre as partes. Mas essa tentativa de conciliação sai do aspecto técnico e o processo não fala sobre indenização. Nós ficamos extremamente preocupados, porque no voto há algumas imposições sobre o processo de demarcação. Seria como ganhar, mas não levar. Ao propor a indenização prévia, o ministro confunde a posse privada protegida pelo direito civil com a posse tradicional indígena protegida pela Constituição Federal - conclui.
Um ofício elaborado pela Apib questiona com mais argumentos o voto de Moraes e pede atenção aos costumes e relação que esses povos têm com seus territórios. O documento reforça o parecer de Sarmento no que diz respeito à possibilidade - de acordo com a expressão considerada vaga e genérica do "interesse público" - de o estado brasileiro vir a realizar uma "compensação de Terras às comunidades indígenas", dando-lhes terras em outros lugares que seriam "terras equivalentes às tradicionalmente ocupadas".
"Essa proposta desconsidera por completo os Direitos Territoriais Indígena estabelecido na Constituição Federal, assim como a relação dos Povos Indígenas com as suas Terras Originárias, que são indispensáveis para a própria manutenção de seus costumes, línguas, tradições, identidades e à conservação dos seus modos de vida. Em outras palavras, a própria sobrevivência das comunidades indígenas está intimamente vinculada ao seu território de origem, de modo que se trata de uma relação espiritual, não tendo nada a ver com a mera aquisição do direito de usar a Terra", diz trecho.

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