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Mais obras, menos democracia

Vitae Civilis - http://vitaecivilis.org
24 de Jul de 2012

Mais obras, menos democracia
Portaria da Advocacia Geral da União restringe o direito das populações indígenas à consulta prévia sobre empreendimentos e à ampliação de terras demarcadas. Sociedade civil reage

Quando o Supremo Tribunal Federal arbitrou o conflito sobre a Terra Indígena Raposa Serra do Sol (RR), em 2009, estabeleceu uma série de condicionantes especiais para a demarcação contínua da TI. Agora, a Advocacia Geral da União (AGU), por meio de portaria, instruiu todos os órgãos jurídicos federais a seguirem as mesmas diretrizes para aplicação de salvaguardas às terras indígenas.
O que está em jogo são os direitos consagrados de uma minoria versus a facilitação de grandes obras. Uma das diretrizes da portaria estabelece que estradas, hidrelétricas e unidades militares poderão ser instaladas sem consulta prévia às comunidades indígenas, a despeito de impactos diretos e indiretos sobre suas terras e seu modo de vida. Bastaria que Ministério da Defesa e o Conselho de Defesa Nacional consideram os projetos "estratégicos", muito embora não exista nenhuma legislação nacional que confira essa competência aos órgãos citados.
Outra regra polêmica determina que a ampliação de terras indígenas já demarcadas só poderá ocorrer se forem verificados "erros jurídicos graves". Na prática, isso inviabiliza mais de 80 pedidos de ampliação já protocolados em todo o Brasil. Em nota, o Instituto Socioambiental (ISA) lembra que, muitas vezes, a demarcação oficial não compreende a totalidade do território tradicional, o que amplia riscos de mazelas sociais e culturais para os povos indígenas.
A novidade provocou uma saraivada de críticas. Entre outras entidades e movimentos da sociedade civil, a Rede de Cooperação Alternativa (congrega 10 organizações indígenas e indigenistas) e a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) manifestaram seu repúdio. Para a Funai, a portaria da AGU "restringe o reconhecimento dos direitos dos povos indígenas, especialmente os direitos territoriais, consagrados pela Constituição Federal, ao adotar como parâmetro decisão não definitiva do Supremo Tribunal Federal".
A orientação da AGU pode ser considerada inconstitucional, não apenas porque contraria preceito da Carta Magna, segundo o qual os povos indígenas devem ser consultados sobre projetos hidrelétricos que afetem suas terras, mas também porque o próprio STF já se manifestou sobre o alcance da decisão relativa a Raposa Serra do Sol. Recentemente, ao manifestar-se sobre uma ação movida por fazendeiros contra uma terra indígena no Maranhão, o ministro Ricardo Lewandowski reiterou que as condicionantes aplicadas em 2009 não se estendem para outros casos.
Déjà vu
O atropelo da AGU evoca uma indesejável lembrança dos tempos da ditadura, no que se refere à supressão de direitos sociais em favor do crescimento econômico. "O que assusta na portaria é seu autoritarismo. A AGU está se antecipando ao STF e adotando uma interpretação reacionária das condicionantes", disse à reportagem do ISA o coordenador adjunto de Política e Direito Socioambiental da mesma entidade, Raul do Valle. "Tudo isso fundamentado num nebuloso conceito de segurança nacional, o mesmo que foi utilizado para perseguir os dissidentes da ditadura".
A analogia foi também inevitável para o jornalista Leonardo Sakamoto, diretor da ONG repórter Brasil, em seu blog: "Muita coisa mudou desde que os verde-oliva deixaram o poder, naquela abertura 'lenta, gradual e segura', mas mantivemos modelos de desenvolvimento que dariam orgulho aos maiores planejadores daquele período: de que, para crescer rapidamente e atingir nosso ideal de nação, vale qualquer coisa, passando por cima de qualquer um".
Juntando as peças
A tentativa de restringir os direitos indígenas é mais uma peça no quebra-cabeça que levou diversas organizações socioambientais brasileiras a qualificar o atual governo como promotor do "pior retrocesso dos últimos 20 anos", na publicação conjunta Agenda Socioambiental: Avanços e Obstáculos Pós Rio-92.
Em comum, um conjunto de medidas recentes efetivamente enfraquece salvaguardas socioambientais de modo a facilitar projetos de infraestrutura e atividades econômicas. Pode-se mencionar a reforma do Código Florestal e a redução de sete unidades de conservação na Amazônia para dar lugar a novas hidrelétricas, sem que tenham sido feitos estudos técnicos ou consultas públicas,
"Pode ser uma iniciativa isolada [a portaria da AGU], mas também não descarto ser mais uma peça do conjunto de medidas para 'flexibilizar' os avanços e instrumentos institucionais de proteção do meio ambiente, de minorias tradicionais e do consumidor na era Dilma", diz Rubens Born, coordenador adjunto do Instituto Vitae Civilis.
A reportagem do ISA cita ainda a estagnação na criação de novas áreas protegidas e mudanças nas regras do licenciamento ambiental como exemplos da mesma lógica.

Vitae Civilis, 24/07/2012

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