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Liminar, índios e 426 hectares: a história do empreendimento que pode modificar o extremo sul de Porto Alegre

Gaúcha ZH
Autor: Jéssica Rebeca Weber
03 de Jul de 2018

Há seis anos em elaboração, um empreendimento que pode mudar a configuração urbana do extremo sul de Porto Alegre ganhou, em junho, um novo capítulo. Um projeto de condomínios com cerca de 1,6 mil casas, áreas para empresas, comércio e chácaras na antiga Fazenda Arado Velho, que divide opiniões e está embargado na Justiça a pedido do Ministério Público (MP), voltou a atrair a atenção em razão de uma ocupação indígena junto aos limites do terreno de 426 hectares em Belém Novo.

Integrantes da comunidade Guarani Mbya - pelo menos 10 pessoas, entre adultos e crianças - acampam à beira do Guaíba desde 15 de junho. Chegaram de barco à orla que contorna a propriedade da Arado Empreendimentos Imobiliários - um pedaço de terra do tamanho dos bairros Moinhos de Vento, Rio Branco, Independência, Bom Fim, Farroupilha e Cidade Baixa somados. Os indígenas reivindicam direito histórico e religioso sobre o local, segundo o coordenador da região sul do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), Roberto Liebgott - seria vontade de Nhanderu (Deus) que eles voltassem ao local de seus antepassados.

- Eles tentam resgatar áreas com condições necessárias para viver, com mata, água e terra boa. Argumentam que áreas que o Estado oferece são degradadas - acrescenta Liebgott.

Herança de quando a Zona Sul era toda composta por propriedades rurais, a Fazenda Arado Velho pertenceu ao empresário de comunicação Breno Caldas, dono do jornal Correio do Povo até os anos 1980. Em 2010, a Arado Empreendimentos comprou a área. Os planos incluem três condomínios com 450 lotes de 300 metros quadrados a 420 metros quadrados cada, cerca de 200 unidades em lotes abertos (sem muros cercando a área), além de chácaras para produção de alimentos e núcleos que misturam comércio, serviços e moradia. Segundo a empresa, as praias do Guaíba ficarão liberadas para acesso público, com preservação da natureza no entorno.

O haras e os prédios de ordenha seriam cercados por praças, e o casarão poderia virar um hotel. Outra área seria destinada a indústrias e empresas de tecnologia, ainda não definidas.

- A gente não consegue chegar a detalhes ainda, mas o mérito de um projeto urbanístico consistente é já designar as ocupações de uma maneira ordenada - afirma o gerente do projeto do empreendimento, José Paranhos.

Liminar impede instalação

A empresa também quer doar áreas para a construção de uma escola federal de estudos climáticos e agrotecnologia - o Ministério do Desenvolvimento Social informa que recebeu e analisa a solicitação para a construção -, além de uma estação de tratamento de água (o Dmae busca financiamento para a instalação de uma unidade na região). Como contrapartidas para o empreendimento, seriam duplicadas as avenidas Lami e Heitor Vieira, além de paradas de ônibus recuadas em vias como a Juca Batista.

Porém, o empreendimento depende de decisão na Justiça. Uma liminar obtida pelo MP suspendeu a mudança no Plano Diretor que permitiu aumentar o índice construtivo da antiga fazenda - e erguer o condomínio. Proposta pelo então prefeito José Fortunati em 2015, a alteração tinha por objetivo "regulamentar, através de ordenamento urbano específico, a ocupação de uma gleba com 426 ha de propriedade da empresa Arado Empreendimentos Imobiliários". O MP argumenta que não houve participação popular na aprovação do projeto. Segundo o promotor de Justiça de Habitação e Ordem Urbanística de Porto Alegre, Cláudio Ari Mello, o empreendimento "altera consideravelmente e definitivamente a estrutura urbana do extremo sul de Porto Alegre".

- Não somos contra (o empreendimento), mas achamos que precisa de uma análise muito criteriosa - destaca o promotor.

Um recurso da Arado Empreendimentos para derrubar a liminar foi negado no ano passado. O mérito da questão ainda não foi julgado pelo Tribunal de Justiça. Quanto à ocupação indígena, Paranhos entende que há "interesse de terceiros".

- Tenho fortes convicções de que eles não estão lá por alguém que adora a causa indígena ou que acredita realmente naquilo, mas por alguém que esteja incomodado com o projeto - afirma.

Na semana passada, a Arado obteve liminar proibindo a entrada dos indígenas na propriedade - a decisão não impede o acampamento na orla, onde estão no momento. No pedido, a empresa aponta a campanha Preserva Arado, que defende a criação de uma unidade de conservação no local, como responsável por incitar a invasão.

- Não temos nenhuma ingerência sobre a decisão dos indígenas, nem contato com eles - contesta Michele Rihan Rodrigues, integrante do movimento e moradora do Belém Novo.

No bairro, opiniões divididas

Em Belém Novo, bairro de 13 mil habitantes que preserva ares de interior na zona sul de Porto Alegre, a possibilidade da implantação de um bairro planejado na área de 426 hectares da antiga Fazenda do Arado divide opiniões. Na praça central da região, GaúchaZH conversou com 10 pessoas: quatro a favor, três contra e outros três nunca tinham ouvido falar do projeto.

- Sou a favor. A Zona Sul foi tomada por invasões. Prefiro que façam um condomínio direitinho. E é bom para o comércio - diz Ruben Breyer, 62 anos, dono de uma autopeças no bairro.

- Sou contra. Ali tem capivara, tem pássaros, uma grande diversidade. Que vão para onde quiser, não aqui - contrapõe Ivo Pimentel, 44 anos, técnico em rastreamento.

Presidente da Associação de Moradores do Arado Velho, Dinar Melo de Souza enaltece as vantagens do empreendimento para a região: cita a criação de empregos, as melhorias prometidas para as vias e o livre acesso às praias da Ponta do Arado.

- Precisamos de crescimento no nosso bairro - defende.

Contrários à urbanização, membros do Coletivo Ambiente Crítico, entidades ambientais como a Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural (Agapan) e o movimento Preserva Belém Novo mantêm a campanha Preserva Arado, que fez um abaixo-assinado com cerca de 2.5 mil adesões pedindo a criação de uma unidade pública de conservação. Michele Rihan Rodrigues, integrante do movimento, diz que há animais ameaçados de extinção na área, como o gato-maracajá, e tem áreas de banhado que precisam ser preservadas.

- Quem conhece a área e tem respeito ao ambiente não consegue conceber um empreendimento daquele porte ali - ressalta.

A Arado Empreendimentos garante que 228 dos 426 hectares da área serão preservados e afirma que, em parte do espaço, haverá uma Reserva Particular do Patrimônio Natural de 91 hectares, com o objetivo de conservar a diversidade biológica do local. A empresa diz que pretende regrar a visitação para garantir o respeito ao ambiente.

Indígenas querem criar aldeia

Em três barracas improvisadas com lonas, pedaços de bambu e madeira, um grupo de indígenas vindos do Cantagalo, em Viamão, acampa há mais de duas semanas na Ponta do Arado, junto ao terreno do empreendimento. Chegaram de barco, com colchões, cobertores, panelas, sacolas de roupas, um violão e pacotes de fraldas descartáveis para um bebê de dois meses, de uma das famílias. Líder dos indígenas, Timóteo de Oliveira Karai Mirim quer montar uma aldeia em uma área com qualidade de vida.

- No Cantagalo, a terra não é boa, ali tem só morro, não tem água, não tem peixe, não tem nada. E como que nós vamos viver lá para sempre? Por isso nós temos que procurar - diz, falando com dificuldade em português.

Timóteo nega que alguém tenha lhes sugerido ocupar o Arado Velho - ressalta que os indígenas buscavam áreas adequadas para criar uma aldeia e sabiam que há um cemitério guarani na área. A empreendedora confirma que foram encontrados vestígios. O líder diz que o grupo não tem intenção de deixar o local e quer, no futuro, trazer mais indígenas. Mas, primeiro, aguarda uma visita da Fundação Nacional do Índio (Funai). Indigenista do órgão, Francisco Witt afirma que a ocupação já é de conhecimento da Funai em Brasília, mas ainda não há data para o deslocamento de um funcionário.

- É uma manifestação muito recente - explica.

Dois dias depois da chegada ao local, Timóteo afirma que o grupo foi abordado por seis homens. Armados e dizendo vir a mando de um juiz, teriam exigido que os indígenas saíssem imediatamente do local. Polícia Civil e Brigada Militar negaram ter feito a abordagem.

O Núcleo das Comunidades Indígenas e Minorias Étnicas do Ministério Público Federal (MPF) busca informações sobre o fato. O departamento acompanha o grupo desde o ano passado. Segundo o MPF, os indígenas querem a formalização de um sítio arqueológico pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e o reconhecimento da terra como indígena pela Funai - a área pretendida se restringiria a pontos mais próximos ao Guaíba.

O Iphan confirmou que há um sítio arqueológico no local, mas não especificou se está ligado a comunidades indígenas. Há um "processo de licenciamento ambiental em andamento para avaliar o patrimônio cultural da área", informou o órgão. Fragmentos de cerâmica indígena encontrados no local estão no Museu de Porto Alegre Joaquim Felizardo. De acordo com a arqueóloga do museu, Fernanda Tocchetto, as peças são atribuídas a guaranis no período pré-colonial, antes da chegada dos europeus.

https://gauchazh.clicrbs.com.br/porto-alegre/noticia/2018/07/liminar-in…

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