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Investimento em poluição

O Globo, Economia, p. 16
21 de Mai de 2007

Investimento em poluição
Preso à burocracia ambiental, Brasil aposta firme na energia suja de termelétricas para crescer

Ramona Ordonez e Luciana Rodrigues

No momento em que, no mundo inteiro, cresce a preocupação com o aquecimento global, o Brasil caminha a passos largos rumo a uma matriz elétrica mais suja. Atrasos no licenciamento ambiental, falta de planejamento do governo, entraves na Justiça, além da disputa com a Bolívia sobre o fornecimento de gás e da perspectiva de que a economia brasileira cresça mais, estão empurrando o país para uma dependência maior de energia termelétrica. Nos três leilões de energia nova já realizados pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) para o período a partir de 2010, 57% da geração virão de termelétricas e 43% de hidrelétricas. Isso representará a emissão de mais 18,95 milhões de toneladas por ano de gás carbônico na atmosfera, segundo cálculos da Aneel que o GLOBO obteve com exclusividade.

É uma poluição equivalente à provocada por 3,79 milhões de automóveis, ou seja, mais do que a frota total de veículos leves da Região Nordeste do país. Serão mais de 30 novas usinas térmicas construídas ou reaproveitadas, que vão produzir também 39,8 mil toneladas de óxido de nitrogênio e 108,7 mil toneladas de óxido de enxofre, gases prejudiciais à saúde. Para se ter uma idéia, hoje a matriz elétrica do Brasil é uma das mais limpas do mundo, com quase 85% da geração de energia vindo da fonte hidráulica, ou seja, renovável.

Para o diretor-geral da Aneel, Jerson Kelman, trata-se de um "paradoxo ambiental". Nos três leilões já realizados, em 2005 e 2006, foram contratados 6.072 megawatts (MW) de energia, quase 60% eram térmicos.

- O rigor ambiental dos órgãos licenciadores, do Ministério Público e da Justiça, bem como os interesses específicos contemplados na legislação, têm provocado um paradoxo ambiental: é burocraticamente mais simples produzir energia elétrica no Brasil queimando derivados de petróleo ou carvão, que contribuem para o efeito estufa, do que utilizando água - afirmou Kelman.

Modelo para o setor demorou muito
Mas especialistas acrescentam que o Executivo também tem culpa.

O novo modelo do setor elétrico demorou dois anos para ser finalizado e isso atrasou os projetos:

- Agora o governo diz que é o Ibama que não tem agilidade. Os projetos demoraram muito e, aparentemente, acabaram mal feitos - afirma Roberto Schaeffer, professor de planejamento energético da Coppe/ UFRJ, e um dos três autores brasileiros do último relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas das Nações Unidas (IPCC, na sigla em inglês).

O pior é que, pelo menos a curto prazo, a situação tende a se agravar.

O coordenador do Grupo de Estudos do Setor Elétrico (GESEL) do Instituto de Economia da UFRJ, Nivalde Castro, alerta que, pelas empresas inscritas para os próximos dois leilões de energia que o governo realizará em meados deste ano, 75% são de energia térmica e 25% de hidrelétrica. Ele destaca ainda que, entre esses projetos de térmicas, metade prevê o uso de energia muito suja, como óleo combustível, diesel ou carvão mineral.

- Na geração térmica, a opção menos poluente é o gás natural. Mas ninguém quer investir sem a garantia do fornecimento, já que há um imbróglio com a Bolívia - completa Hélder Queiroz, do Grupo de Economia da Energia da UFRJ.

A tendência, daqui para frente, é que o avanço das térmicas seja por usinas a carvão, afirma Adjarma Azevedo, conselheiro da Abrace, associação que reúne as empresas que consomem muita energia. É a opção mais poluente: uma térmica emite em média 973 gramas de gás carbônico por quilowatt/hora (KW/h) de energia, contra 631 de uma usina a gás natural de ciclo aberto, tecnologia mais comum no Brasil.

Nos últimos leilões da Aneel, houve muita oferta de termelétricas a óleo. Mas, segundo Antonio Carlos Porto Araújo, consultor da Trevisan, trata-se, na maioria dos casos, de usinas construídas às pressas na época do racionamento e que, depois, ficaram ociosas.

Recentemente, tem aumentado a disposição das empresas em investir em térmicas a carvão. A Vale do Rio Doce anunciou no mês passado que vai importar carvão mineral da Colômbia para uma térmica de 600 MW a ser construída em Barcarena, no Pará, num investimento de US$ 600 milhões. A empresa planeja construir outras duas térmicas a carvão que, juntas, terão potência de mais 600 MW.

- As térmicas a carvão de hoje em nada se comparam com a tecnologia do passado. São muito mais eficientes e limpas. E com o crescimento que prevemos para o Brasil, é preciso somar todas as alternativas - argumenta Vânia Somavilla, diretora de Energia da Vale.

Entretanto, pelas estatísticas internacionais, a tecnologia mais moderna de geração de energia por carvão provoca uma emissão de 710 gramas de gás carbônico por quilowatt/ hora, ou seja, mais do que as usinas de gás natural, afirma Roberto Schaeffer, da Coppe/UFRJ. No caso da Vale, Vânia acrescenta que foi levado em conta também o fato de o carvão ser uma opção mais barata. O custo para geração de energia, neste caso, é de R$ 100 por MW/h, contra R$ 300 a R$ 500 no caso das térmicas a óleo.

O presidente da Empresa de Pesquisa Energética (EPE, responsável pelo planejamento do setor no país), Maurício Tolmasquim, lamenta o fato de o Brasil aproveitar pouco menos de 30% de seu potencial hidrelétrico.

E explica que as novas tecnologias das usinas a carvão buscam reduzir as emissões de nitrogênio e enxofre, nocivos à saúde, mas não as de gás carbônico, que afeta o ambiente.

Opção hidrelétrica é mais limpa e barata
Tolmasquim garante que as duas usinas do complexo do Rio Madeira, em Rondônia, cujas licenças estão atrasadas, têm um impacto ambiental relativamente pequeno. Para cada megawatt gerado, será alagado 0,08 quilômetro quadrado, em comparação com uma média no Brasil, em outras usinas, de 0,52 quilômetros quadrados.

- Fizemos uma projeção para 2016 de que, mesmo com os projetos do Rio Madeira, a participação hidrelétrica na matriz brasileira cairá dos atuais 85% para 70%. Sem o Madeira, cai para 56% e, assim, haverá uma emissão adicional de 177 milhões de toneladas anuais de gás carbônico - alerta Tolmasquim. - Não é racional se optar por uma energia mais cara e mais suja.

Tem que prevalecer o bom senso.

Todas as fontes têm algum tipo de impacto, é preciso escolher o menor - acrescenta.

A opção hidrelétrica é mais barata, lembram os especialistas. E, na média, mais limpa também, já que trata-se de uma fonte renovável. Porém, seu impacto ambiental é mais difícil de quantificar.

- Caso a caso, as hidrelétricas exigem estudos mais sofisticados, porque envolvem sedimentação de rios, eliminação de espécies e alagamento de áreas agricultáveis. Nas térmicas, é diferente, porque sabe-se exatamente qual será o impacto, medido pela emissão de gases poluentes. Assim, com o imbróglio no licenciamento das hidrelétricas, acabou sendo mais fácil conseguir aprovação para térmicas a carvão ou a óleo, o que é um absurdo - diz Schaeffer, da Coppe/UFRJ.

Especialista vê no bagaço da cana uma opção
Energia equivaleria a "mais que um Rio Madeira" somente em São Paulo

Diante das previsões cada vez mais otimistas sobre o crescimento da economia brasileira - que fazem crescer o temor de um novo apagão a partir de 2009 - empresários e especialistas do setor privado apostam na construção de térmicas como única saída para evitar um racionamento. Afinal, uma usina hidrelétrica leva de seis a sete anos para entrar em operação. As térmicas, por sua vez, podem ser construídas em até 18 meses. Mas consultores ambientais e acadêmicos vêem outras alternativas - em alguns casos mais caras, porém sempre mais limpas.

Roberto Schaeffer, da Coppe/UFRJ, acredita que o país tem um enorme potencial a explorar na co-geração de energia a partir do bagaço da cana-de-açúcar. Como a previsão é de franca expansão no setor sucroalcooleiro - devido à crescente demanda mundial por álcool - haverá mais matéria-prima para esse tipo de geração de energia.

- As usinas de açúcar e álcool, normalmente, são auto-suficientes em energia. Para exportarem energia ao sistema, gerando eletricidade extra, seria preciso fazer investimentos. Mas os empresários do setor estão interessados em investir apenas nos seus próprios negócios. Seria preciso planejamento e incentivos do governo - afirma Schaeffer, acrescentando que "há mais do que um Rio Madeira" em termos de geração de energia a partir de bagaço da cana-de-açúcar somente no Estado de São Paulo.

Antonio Carlos Porto Araújo, consultor da Trevisan especialista em meio ambiente, cita outra opção: dar mais potência às atuais hidrelétricas, substituindo ou adaptando suas turbinas para ganhar eficiência.

- Mas isso exige um investimento elevado. Quase todas as hidrelétricas do país poderiam fazer isso, inclusive Itaipu. Os dados são divergentes mas, dependendo do tipo de tecnologia empregada, seria possível aumentar a produção de energia em 33% ou mesmo dobrá-la.

Adriano Pires, do Centro Brasileiro de Infra-estrutura (CBIE), só vê uma alternativa factível para evitar um apagão em 2009 ou 2010: mais térmicas a óleo, fonte mais suja e mais cara. Adjarma Azevedo, conselheiro da Abrace, destaca que o Brasil está indo na contramão do mundo:

- Hoje, no mundo globalizado, quando os países tentam proteger as suas vantagens competitivas, o Brasil, ao contrario, está abdicando do seu vasto potencial da barata energia hídrica. Os atrasos nos licenciamentos, a falta de projetos hídricos e alguns aspectos regulatórios empurram a matriz para as energias mais caras e não renováveis. Mas, qual a opção? Energia ou não energia? - afirma.
(Luciana Rodrigues)

O Globo, 21/05/2007, Economia, p. 16

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