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Injustiças passadas e o direito das futuras gerações

Comissão Arns - https://comissaoarns.org/pt-br/blog/
Autor: DIAS, José Carlos; CUNHA, Manuela Carneiro da; VIERA, Oscar Vilhena
20 de Set de 2023

Injustiças passadas e o direito das futuras gerações

José Carlos Dias, Manuela Carneiro da Cunha, Oscar Vilhena Vieira
20 Set 2023, 9:48 WhatsApp Image 2023-09-20 at 08.12.39

A Constituição de 1988 reconheceu aos povos indígenas "direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam", sendo "nulos e extintos" quaisquer atos que tenham por finalidade permitir ou legitimar a ocupação dessas terras por aqueles que não são os seus legítimos titulares.

Nesse sentido, a Constituição de 1988 apenas consolidou, como direito originário, o direito dos indígenas ao seu território, que já havia sido reconhecido pelo Alvará Régio (1680), pela Lei Pombalina (1755), pela Lei de Terras (1850), bem como por todas nossas as constituições a partir de 1934.

A tese do marco temporal busca constranger esse direito originário, reconhecendo aos indígenas apenas direitos às terras que estavam ocupando ou defendendo em 5 de outubro de 1988. Trata-se de uma tese de natureza meramente política, que não encontra respaldo no texto constitucional, criada e patrocinada por setores predatórios do meio ambiente, que cobiçam explorar as terras indígenas, que redundará na restrição dos direitos dos povos indígenas à própria sobrevivência.

Para o ministro Edson Fachin, relator do caso que discute a constitucionalidade do marco temporal no Supremo, os direitos originários dos povos indígenas compõem o rol das cláusulas pétreas da Constituição. Portanto, não podem ser abolidos sequer por emenda constitucional, quanto mais por interpretação distorcida da Constituição.

O ministro Alexandre de Moraes também acertou ao não reconhecer nenhuma validade à tese política do marco temporal. Seu voto, no entanto, está eivado de uma contradição lógica insuperável. Embora reconheça que os indígenas têm direitos "originários" às terras que tradicionalmente ocupam, propõe indenização prévia àqueles que ocupam, de boa-fé, terra indígena em processo de demarcação, como se os direitos disponíveis daqueles que ocupam indevidamente as terras indígenas tivessem prevalência em relação aos direitos originários e indisponíveis dos povos indígenas às terras que tradicionalmente ocupam.

A proposta do Ministro Moraes, além de inviabilizar futuras demarcações, criará enorme insegurança jurídica. Incentivará a revisão de demarcações passadas, além de fomentar invasões e violência em terras indígenas em processo de demarcação, com o objetivo de alavancar indenizações ilegítimas. E isso não pode ser ratificado pelo Supremo.

Essa contradição identificada pelo professor Daniel Sarmento, em preciso parecer encomendado pela Comissão Arns, foi também evidenciada pelos votos dos ministros Luis Roberto Barroso e Cristiano Zanin. Como corretamente ressaltou Barroso, nos casos em que uma indenização seja reivindicada, essa não decorre da demarcação das terras indígenas, mas sim de atos pretéritos do poder público que alienou indevidamente terras das quais não era o legítimo dono.

Logo, é contra o ente que alienou a terra que não era sua que se deve buscar indenização. O que deve ocorrer em processo distinto. Jamais no processo de demarcação, criando obstáculo intransponível para a realização dos direitos originários dos povos indígenas.

O que está em jogo neste julgamento é a direito à sobrevivência dos povos indígenas, assim como a reparação pelas injustiças e violências a que foram submetidos. Importa destacar, no entanto, que esse julgamento transcende os interesses dos indígenas, pois também se refere à questão climática e ambiental, que a todos afeta.

As terras indígenas brasileiras, que se concentram sobretudo na Amazônia, têm sido as principais responsáveis pela preservação de nossas florestas. Menos de 2% do desmatamento histórico na Amazônia ocorre dentro de terras indígenas, que cobrem 25% daquele território.

Ao guardarem as florestas, os povos indígenas geram uma série de serviços socioambientais e benefícios econômicos para o resto do Brasil e para todo o planeta, como a produção e circulação de água doce, o resfriamento do clima, a renovação do ar, a proteção do solo, além da preservação da biodiversidade.

A julgar a inconstitucionalidade do marco temporal e da exigência de indenização prévia, o Supremo estará agindo não apenas como guardião dos direitos indígenas, mas também dos direitos de sobrevivência das futuras gerações neste planeta.

Artigo pubicado originalmente na Folha de S. Paulo, 20/9/2023

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