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Índios discutem biotecnologia

A Crítica, Cidades, p. C5
22 de Ago de 2002

Índios discutem biotecnologia

Durante milhares de anos, os índios, isolados ou não, vivem em harmonia e equilíbrio com a Mãe Natureza. O resultado desta sábia intimidade produz a magia, o alimento e a cura. Mais de 500 anos depois, os donos de conhecimento ocultos e valiosos se reúnem na 1ª Conferência de Pajés promovida pelo Governo do Estado, hoje. Eles ainda não conseguiram entender o homem branco agressivo que mata e polui, mas buscam o entrosamento do conhecimento indígena tradicional com a ciência traduzida em biotecnologia que respiram e sentem há milhares de anos.

Nos próximos quatro dias, cerca de cem representantes de lideranças indígenas, sendo 40 pajés, estarão discutindo a biodiversidade e o direito de propriedade intelectual dos habitantes mais antigos da região. Índios baniuas, barassanas, dessanas, caiapós, marubos, matis, ticunas, tucanos, tuiúcas, ianomâmis, terenas, caingangues, mundurucus, hixkarianos, piratapuias, saterés-maués, khahos e maiurunas estarão em Manaus participando do evento, que traduz a ousadia do Estado em promover a defesa dos direitos desses povos, cuja população no Amazonas ultrapassa os 120 mil habitantes, a maior do Brasil.

Ao criar a Fundação Estadual de Política Indigenista (Fepi), o Governo mobiliza esforços para que os povos indígenas possam contar com a sobrevivência de suas tradições, aliada à adoção de uma política de etnodesenvolvimento. No Brasil, o Amazonas é o primeiro a ter propostas governamentais, de respeito às especificidades das nações, de proteção à sabedoria e de desenvolvimento sustentável.

O fundamento da conferência é discutir e propor ações para proteção do saber milenar, que já existe há mais de 7 mil anos, enquanto a ciência, sistematizada como método, só surgiu no século 17, sendo consolidada após as teorias de Descartes e Galileu. O evento, entretanto, não se volta apenas para o Amazonas e o Brasil. Ele vislumbra o contexto internacional, abrindo caminho para os países membros do Tratado de Cooperação Amazônica (TCA).

Controle do hábitat aparece como meta

Hoje, pesquisadores, especialistas, lideranças indígenas, pajés, tradutores e autoridades participam da abertura dos trabalhos, às 8h, no auditório da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Após a solenidade, acontece um painel sobre a valorização da sabedoria tradicional, também chamada de etnobiologia, com expositores da Fiocruz, Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), Fundação Universidade do Amazonas (Fuam), Fepi e Fundação Nacional do Índio (Funai), dentre outros. À tarde estará em pauta "O olhar dos pajés", discussão somente entre índios, no Bosque da Ciência, no Inpa. Os moderadores são Marcos Terena, Amarildo Machado, Gabriel Gentil e Jorge Terena.

Amanhã, das 8h ao meio-dia, acontece a mesa-redonda "Conhecimento tradicional e seu valor de mercado: diálogo intercultural", seguida de debates. Entre os pontos comentados estarão "A pesquisa científica e seus benefícios financeiros"; o "Direito de propriedade intelectual e o mercado"; "Cosmetologia"; "Vigilância e controle sobre biodiversidade amazônica"; "Seleções genéticas das plantas"; "Política pública de biotecnologia para o Estado do Amazonas" e outros.

O penúltimo dia da conferência, sábado, terá em pauta a aprovação da "Carta de Manaus", um documento com as linhas mestras e propostas de ações para o etnodesenvolvimento, com discussão da legislação pertinente sobre o saber indígena, moções e estratégias de mobilização. Antes, os pajés e lideranças fazem uma visita, às 10h, ao Laboratório de Farmacologia do Instituto de Ciências Biológicas, no minicampus da Ufam. O domingo será dedicado à confraternização em um encontro de culturas promovido na maloca Tariano, no hotel de selva Ariaú Towers.

Dentre os pontos da carta, que estarão em discussão, constam a cobrança, do Governo Federal, de uma política pública de proteção ao conhecimento tradicional, assim como uma legislação específica; articulação, com as universidades e instituições de pesquisa, de centros de estudos do saber indígena; criação de uma câmara especial dentro da Fundação de Amparo à Pesquisa do Amazonas, e celebração de projetos de cooperação entre os países da Amazônia.

A conferência reúne ainda parceiros como Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), Projetos Demonstrativos para os Povos Indígenas (PPDI), do Ministério do Meio Ambiente, e Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas (Ipaam), a fim de estabelecer diretrizes para uma lei que garanta o direito à propriedade intelectual indígena e a repartição justa dos benefícios derivados do conhecimento tradicional e da apropriação dos recursos biogenéticos.

Pajés foram perseguidos

Os povos indígenas, numa relação estreita com a natureza, acumularam durante séculos conhecimentos sobre a biodiversidade amazônica, estabelecendo métodos de investigação e experimentos, desenvolvendo processos de classificação por meio de sua tradição, mitologia e formas narrativas de circulação de saber.

Mas durante os últimos 500 anos, principalmente os pajés foram muito perseguidos, não para apropriar o conhecimento, mas para negá-lo. "As igrejas, todas, ridicularizaram, desqualificando os ritos, destruindo suas casas, malocas, os locais de celebração. Hoje é mais difícil encontrar um pajé, reconhecido pela comunidade por causa da força da repressão sofrida", conta o professor Ademir Ramos.

Como se trata de um conhecimento repassado de forma histórica, de narrativa de antepassados, a iniciação dos pajés foi reduzida nas famílias tradicionais. Segundo o presidente da Fepi, há relatos, na região do Alto Solimões, frios e cruéis, da negação dessa cultura milenar. Há 30 anos teve início um processo de retorno às tradições indígenas, o que agora se volta mais para um resgate espiritual.

"O conhecimento adquirido não nega a ciência, o diferente. Eles se complementam, convergem. Até porque as doenças hoje, depois do contato, são novas. Isso é o diálogo para que haja reciprocidade", explica Ademir.

Na região do rio Negro, a reciprocidade vem sendo trabalhada através da educação, como método de levar às aldeias a defesa de seus direitos. No local vivem 22 etnias e quase 50 organizações indígenas, organismos interlocutores para a sociedade civil. Hoje, dentro das aldeias, há um processo de legitimação dos grupos políticos liderados pelos jovens índios. Uma organização só passa a ser reconhecida como legítima quando está associada ao conhecimento tradicional, o que é conferido pelos velhos das tribos. Os mais antigos começam a ser ouvidos pelas lideranças e acompanham o fortalecimento da cultura, principalmente através do ensino repassado.

Dois documentos são esclarecedores

Segundo o presidente da Fepi, Ademir Ramos, o conhecimento tradicional vem sendo discutido desde 1998, com maior ênfase, e há dois documentos consolidados, elaborados pelos próprios índios: "Carta de Princípios da Sabedoria Indígena (Brasília, 1998)" e "Carta de São Luís do Maranhão (2001)". "Como o Governo do Estado está promovendo a discussão da biotecnologia, o saber tradicional foi inserido, associado à biodiversidade. O governador criou uma Fundação de Amparo à Pesquisa voltada para promover ações de prospecção da biodiversidade, sobretudo de etnobiologia", diz Ademir.

Ao contrário dos demais, o Governo do Amazonas vem tomando a iniciativa sobre o controle e a proteção da sabedoria, até porque o Estado tem a maior população indígena do País: 120 mil habitantes, de 62 etnias. A conferência quer celebrar, principalmente, um diálogo horizontal entre a ciência, institutos de pesquisa, povos e tribos.

A meta é derrubar os preconceitos e deixar de tratar o conhecimento tradicional como "coisa de índio", algo subalterno. Para derrubar essas barreiras, a escolha de parceiros como Fiocruz e Inpa serve para validar a relação e estabelecer diálogos de igual para igual, entre produção tecnológica e etnobiologia.

Oficinas para três povos indígenas

Cerca de cem indígenas de três etnias, os suruís-aikeuaras, do Pará, os culinas e canamaris, do Amazonas, participam de oficinas de capacitação inicial para implantação de projetos. Até amanhã, em Marabá (PA), uma equipe técnica do Projetos Demonstrativos dos Povos Indígenas (PDPI) desenvolve ações de treinamento com os suruís-aikeuaras. No período de 26 a 31 deste mês, no Município de Eirunepé (AM), um grupo de 86 indígenas culinas e canamaris participará da última oficina deste ano, realizada pelo PDPI às comunidades indígenas que tiveram projetos aprovados, em junho passado, pela Comissão Executiva desse programa.

Os culinas e canamaris, da região do rio Juruá, representam o maior contingente de indígenas reunidos em encontros dessa natureza. Os projetos dos dois povos são os de "Atividades Econômicas Sustentáveis" e representam um dos passos que os indígenas querem dar visando reduzir a dependência econômica ao qual estão hoje submetidos, e construir alternativas que possam, no futuro, garantir qualidade de vida às comunidades.

Os primeiros projetos indígenas aprovados pela CE/PDPI, em número de nove, representam um volume de recursos da ordem de R$ 1.338 milhão. Uma dessas propostas refere-se ao fortalecimento institucional da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab). Os demais, das comunidades indígenas do Amazonas, Acre e Pará.

As outras quatro oficinas realizadas pelo PDPI foram em Boa Vista (RR) e no Amazonas, nos Municípios de Benjamin Constant, São Gabriel da Cachoeira e Manaus.

O PDPI está instalado em Manaus há oito meses. É um componente do Projetos Demonstrativos (PDA), desenvolvido pelo Ministério do Meio Ambiente (MMA) por meio da Secretaria de Coordenação da Amazônia (SCA) no âmbito do Programa Piloto para Proteção das Florestas Tropicais (PPG-7). Atua especificamente com as populações indígenas da Amazônia Legal (Estados do Amazonas, Acre, Amapá, Rondônia, Roraima, Pará, Mato Grosso, Tocantins e parte do Maranhão). Os principais parceiros do programa são os governos alemão e britânico.

A Crítica, 22/08/2002, Cidades, p. C5

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