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Ibama em palpos de aranha

OESP, Espaço Aberto, p. A2
Autor: NOVAES, Washington
28 de Jan de 2005

Ibama em palpos de aranha

Washington Novaes

Mesmo que o governo federal consiga afastar os obstáculos judiciais que impedem o avanço do processo de licenciamento do projeto de transposição de águas do Rio São Francisco pelo Ibama, vai ser muito difícil a vida desse órgão.
Para começar, terá de superar - para poder julgar com isenção - o constrangimento de autorizar ou não uma obra que teve o apoio público e prévio da ministra a que está subordinado, antes mesmo até da lamentável decisão da maioria governamental no Conselho Nacional de Recursos Hídricos, atropelando uma decisão do Comitê de Gestão da Bacia Hidrográfica (que por 44 votos a 2 já se pronunciara contra o projeto).
Depois, para cumprir a legislação - Resolução n.o 1/86 do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama), que regula a avaliação de impactos ambientais e menciona explicitamente transposição de bacias (artigo 2.o, inciso VII) - terá de começar examinando a chamada alternativa de não fazer, isto é, decidir se é melhor fazer ou não fazer a obra. E já aí precisará, no mínimo, apreciar vários estudos conhecidos que dizem ser a obra desnecessária. É o caso, por exemplo, dos pareceres do professor Aldo Rebouças, da Universidade de São Paulo, para quem o problema de água no semi-árido nordestino não é de escassez, é de má gestão. Também é o caso dos estudos do professor João Abner, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, e do professor João Suassuna, hidrólogo da Fundação Joaquim Nabuco, de Pernambuco. Para eles, não existem déficits hídricos globais nos Estados do Nordeste setentrional, onde os consumos urbanos (humano e industrial) e rurais (humano e animal) somam 22,5 metros cúbicos por segundo, para uma disponibilidade de 220 m3/segundo. Mesmo a demanda potencial para irrigação mencionada no projeto - 131m3/segundo, para atender a 226 mil hectares - pode ser atendida pela oferta já existente. E há outros estudos.
Se o Ibama julgar inconsistentes essas avaliações, terá, em seguida, pela mesma resolução do Conama, de examinar se não há alternativas mais adequadas que a proposta no projeto. E também aí são muitas as instituições que dizem não ser esse o melhor caminho. A começar do próprio Comitê de Gestão da Bacia Hidrográfica do São Francisco, que optou por maioria esmagadora pelo projeto de revitalização do rio, antes de qualquer outra iniciativa. E convém lembrar os pronunciamentos do então ministro do Meio Ambiente Rubens Ricupero, que já em 1993 dizia estar o São Francisco sob ameaça de "deixar de ser rio permanente para transformar-se em rio temporário". Porque a quase totalidade dos mananciais que o formam sofre as conseqüências do desmatamento do cerrado brasileiro (do qual restam, em fragmentos com possibilidade de sobrevivência, menos de 5% do bioma originário, segundo a Embrapa Monitoramento por Satélite). Quem duvidar disso deve ir ver os formadores do São Francisco na região de Paracatu (MG) ou na região de Barreiras (BA).
Não é só. Numerosas instituições têm mostrado que a anunciada justificativa maior da transposição - atender às vítimas da seca - não ocorrerá com esse projeto, já que 70% das águas transpostas irão para irrigação de grandes projetos e 26% para abastecimento de grandes cidades. Para milhões de pessoas que sofrem com a seca em pequenas comunidades isoladas - onde não chegarão redes da transposição - sobram 4%. E para estas pessoas o caminho indicado é o da construção de cisternas de placa em cada microcomunidade. Poderiam ser atendidas a um custo algumas vezes inferior ao da transposição.
Terá ainda o Ibama de examinar se procede a avaliação que tem sido feita pelos críticos do projeto de transposição de que a água assim obtida "seria das mais caras do mundo" e inviabilizará qualquer projeto de irrigação, com os custos entre o dobro e o quádruplo do que custa hoje a água às margens do rio. Quem pagará? Subsídios cruzados, com todos os consumidores, inclusive o doméstico, pagando a mesma taxa? Subsídios governamentais? Neste caso, a produção exportável obtida (frutas, algodão, camarões, etc.) estaria mais uma vez sendo subsidiada por toda a sociedade brasileira, para beneficiar apenas os exportadores locais e os importadores dos países industrializados? Seria mais uma vez o uso de "fatores espúrios" já apontado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) em seu relatório sobre o Brasil?
E o custo da energia elétrica que deixará de ser produzida, quem arcará com ele? Será substituída pelas caras termoelétricas? Quem pagará pela implantação e operação? E ainda haveria muitas outras questões a discutir e que o Ibama tem obrigação de examinar.
Quando se discutia o projeto de lei da Política Nacional de Recursos Hídricos, em 1996, o jurista Paulo Affonso Leme Machado e o autor destas linhas, chamados a opinar, apontaram reiteradamente a inconveniência de se ter um Conselho Nacional de Recursos Hídricos com maioria absoluta de membros do governo federal. Atentaria contra a própria lei - que atribui a gestão aos comitês de bacias, com representação de governos, usuários e da sociedade - e contra o princípio federativo. Foi inútil. E o resultado aí está agora, com uma imensa confusão jurídica, o Ibama em palpos de aranha (não lhe bastassem os dramas com hidrelétricas e outros), uma chuva de protestos pelas ofensas à Federação.
Que bom desfecho poderá ter a questão, diante da teimosia (para dizer pouco) de certas áreas do governo federal?

Washington Novaes é jornalista

OESP, 28/01/2005, Espaço Aberto, p. A2

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