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Gaia para presidente

FSP, Mais!, p. 8
Autor: LEITE, Marcelo
07 de Mar de 2010

Gaia para presidente
Pode-se chegar à ética diante da natureza pela pura força da razão

Marcelo Leite

Poucos filmes provocam uma cisão tão forte no espectador crítico quanto "Avatar". Os olhos se enchem com as imagens possantes e o emprego virtuoso, nada exibicionista, dos recursos tridimensionais (3D). Já o argumento...
Não é tanto a cópia constrangedora do motivo central da franquia "Matrix", o "upload" da mente do herói no corpo de um avatar (virtual ou de carne e osso, tanto faz). Nem só o previsível final feliz da historinha de amor impossível, ou a luta eterna do bem contra o mal.
Tampouco a ignomínia do capital, a irracionalidade da violência militar, as máquinas de "Guerra nas Estrelas", os dinossauros (aqui, alados) à moda de "Parque Jurássico" etc. O filme é um pastiche de todos os clichês e gêneros cinematográficos de sucesso, mas resultaria inofensivo se não fosse também a xaropada ambientalista.
O mito do bom selvagem rebrilha sob uma pátina azul, turbinado com a mística de Gaia. O povo na'vi, guardião do planeta Pandora (que não se perca pelo nome), vive em comunhão completa com a natureza. Caçadores debruçam-se em oração sobre a presa que acabam de imolar, compadecidos.
Para não deixar dúvida sobre a importância da interconexão, o povo de Cameron (James Cameron, o diretor) criou até uma trança USB, por assim dizer. Na ponta do feixe de cabelos, minhoquinhas brilhantes se fundem com as de uma antena em cavalos de seis patas, com as de dragões de montaria, até com as de árvores.
O exemplo cinematográfico de evolução convergente cumpre a função didática de sublinhar a comunicação direta entre "humanos" e a Natureza, com "n" maiúsculo. Em língua na'vi, com a divindade Eywa, a força telúrica que tudo interliga, ou religa. Sob sua égide, até as feras se submetem ao jugo dos insurgentes, numa rebelião cósmica contra as máquinas da destruição capitalista.
A mensagem edificante de "Avatar" combina tanto com o tema emergente dos limites da exploração da natureza que a pré-candidata a presidente da República pelo Partido Verde, Marina Silva, reservou tempo em sua agenda para dele tratar em seu blog (www.minhamarina.org.br/blog). O texto tem uma centena de linhas e o título "Avatar e a Síndrome do Invasor".
A ex-ministra do Meio Ambiente traça uma série de paralelos biográficos e amazônicos com a saga dos na'vi. Rola até uma identificação com a figura esguia dos gigantes azuis: "Quero confessar que aquele povo na'vi tão magrinho e tão bonito foi para mim um alento".
Quem conhece Marina Silva, porém, logo percebe que ela foi fisgada pela pedagogia mística de Cameron. A destruição se revela tanto um pecado quanto uma agressão contra a crença alheia identificada com o bem.
"No filme, como o valor em questão era a riqueza do minério, a floresta em si, com toda aquela conectividade, toda a impressionante integração entre energias e formas de vida, não vale nada para os invasores. Pior, é um estorvo, uma contingência desagradável a ser superada", escreveu. É uma maneira de ver -o filme, a Amazônia e o Brasil. Ou melhor, uma maneira de se expressar sobre o quanto há de irracional e insustentável no estilo de crescimento que assola o país e o mundo. Bem mais benigna do que outras ideologias por aqui, diga-se.
A componente mística e enaltecedora dos povos iluminados da floresta não é obrigatória para adotar uma perspectiva ética nas considerações sobre a relação entre homem e natureza. Pode-se chegar a isso pela pura força da razão, sem a fantasia deslumbrante de eleger Gaia.

MARCELO LEITE é autor de "Darwin" (série Folha Explica, Publifolha, 2009) e "Ciência - Use com Cuidado" (Editora da Unicamp, 2008). Blog: Ciência em Dia ( cienciaemdia.folha.blog.uol.com.br ). E-mail: cienciaemdia.folha@uol.com.br

FSP, 07/03/2010, Mais!, p. 8

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